Literatura x Realidade

A literatura como retrato da mulher na sociedade desde os tempos primórdios

Revista 21
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Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar.
Livro Dom Casmurro, 1899, capítulo “Olhos de Ressaca”

Essa famosa expressão de Bentinho sobre sua amada Capitu transpôs décadas e é tema de debate até os dias atuais. Dissimulada e adúltera? Ou vítima de um ciúme doentio? Os belos olhos de Capitu, aliados a seu ar de liberdade com tom de mistério faziam-na uma mulher de atitude duvidosa.

Dom Casmurro é um dos livros da literatura brasileira com uma das personagens femininas mais conhecidas. Numa época de recato, na qual as mulheres eram tidas como propriedade masculina, o livro teve uma boa recepção do público. Todas queriam ser a bela Capitu. Avassaladora e marcante para a época.

Engraçado se não fosse tristemente real, os homens queriam ter uma Capitu, mas não dentro do lar, não queriam ter que se preocupar como Bentinho. Realidade essa que se mantém.

Pergunte há homens na rua qual tipo de mulher é para casar e eles lhe traçarão um perfil tradicionalista, enquanto consideram mulheres livres e sensuais a opção ideal para manter um relacionamento informal ou extraconjugal.

Com sua característica de abordar tabus retratando uma realidade nua e crua, Jorge Amado retratou em seus livros mulheres de personalidades marcantes. Como a jovem Tieta de “Tieta do Agreste”, de 1977, que retratava uma adolescente escorraçada pelo pai por manter aventuras amorosas e almejar a liberdade.

Uma de suas personagens mais conhecidas é Gabriela do livro “Gabriela, Cravo e Canela”, de 1958, que colocava à mostra a Bahia da década, na qual prevalecia o regime dos coronéis que tinham o poder sobre tudo.

Gabriela era atraente e livre, não aceitava ser subjugada a homem nenhum e queria ter a liberdade de relacionar-se conforme seus desejos, assim como era permitido aos homens da época fazerem. O que não mudou muito atualmente, visto que a imagem do homem “pegador” que sai com várias mulheres é perpetuada e totalmente aceitável, enquanto a mulher que o fizer será taxada como “fácil” e sem valor.

Já Maria da Glória do livro “Lucíola” de José Alencar, é seduzida por um homem que faz sua vida desmoronar. Após muitas desgraças, a personagem, para se manter, torna-se prostituta adotando o nome de Lúcia. Numa espécie de instinto de sobrevivência aliada à revanche, Lúcia explora seus clientes ricos, tira tudo o que pode deles e os despreza.

Porém, sua vida passa por uma reviravolta, na qual se apaixona novamente, desta vez um amor verdadeiro. O triste é que no fim morre devido a uma doença. Lançado em 1862, Lucíola faz parte da coleção “Perfis de mulheres” criados por Alencar.

A personagem representava uma parcela de mulheres que ganhavam a vida em grandes cabarés da época. Mulheres que não viam outra saída na vida. Muitas delas, como Lúcia, não acreditavam mais no amor por motivo de desilusão e usavam seus amantes numa tentativa de vingança e proteção de seus sentimentos.

Na época, os cabarés eram muito frequentados, principalmente por homens ricos e de maior poder aquisitivo ou social. As prostitutas eram repudiadas na sociedade, mas em contrapartida, tinham o prestígio e confiança dos amantes que as visitavam com bastante frequência.

Atualmente, as garotas de programa, passam pelos mesmos dilemas. Precisam de sustento, sofrem preconceito da sociedade, e são procuradas por uma maioria de homens que querem uma mulher “do lar” e desejam realizar suas fantasias fora de casa.

A diferença é que hoje é uma atividade mais sigilosa visto que o aliciamento de garotas de programa é crime. Os mais antigos chegam a arriscar que é a profissão mais antiga que se tem conhecimento.

Todas as obras citadas tinham uma abordagem “despudorada” para a época, porém de grande repercussão, pois colocavam nos livros o que a sociedade não queria ver.

No decorrer dos anos, a mulher passou a ser retratada ora como “princesa” ora como heroína, a boa moça que fazia o bem e vivia o romance dos sonhos. Isso tem mudado na literatura moderna, com o aparecimento de personagens mais fortes e independentes, mas que ainda sim têm um homem à sua sombra, com uma história de amor como centro de suas experiências.

Tomemos como exemplo Anastasia Steele da trilogia “50 tons”, uma moça recatada que tem sua sexualidade despertada por um homem sedutor, experiente e dominador (não podia ela ser sexualmente resolvida sem a intervenção de um personagem masculino?!); e Katniss Everdeen de “Jogos Vorazes”, uma heroína independente e determinada que tem sua trajetória finalizada com um amor e rodeada de filhos no jardim, estilo comercial de margarina.

Para você, mulher contemporânea, a literatura tem nos representado?

Dicas de Leitura

DESTAQUE

Com um nome subjetivo e instigante, Outros Jeitos de Usar a Boca é um livro com uma seleção de poemas sobre experiências diversas de abuso, amor, perdas, violência e feminilidade. É dividido em quatro partes, cada uma delas com um propósito de ajudar o leitor a lidar com variados tipos de dor. O livro leva o leitor a um passeio à momentos difíceis com uma mensagem positiva.

Por: Aline Campos

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