Gabriel Lima
brasil LOVE
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9 min readSep 29, 2020

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Ilustração de Axoloti Kerope

CAPÍTULO 2: A Matéria

Link para o capítulo 1: https://cutt.ly/xf24VFd

Toda classe torceu a cabeça na direção de Melissa, aguardando, como era habitual, uma resposta rápida e precisa, mas os segundos iam passando e a resposta não vinha. A irmã, que até aquele momento mantinha seu olhar severo, fraquejou. Ela não sabia. Ela também não tinha prestado atenção. Melissa era como as outras: burra e desleixada. Aos poucos foi brotando no encontro dos olhos com um nariz da freira uma expressão de nojo. Um nojo tão latente e sincero que, na medida que era reparado pela turma, murchava as alunas em suas carteiras. Os olhos verdes de Melissa coraram junto com as suas bochechas. Houve lágrimas, me lembro da sensação. Uma atmosfera tensa e íntima se instaurou no ambiente; como uma oração, ou como o primeiro beijo. A culpa pousava como uma mão em nossos pescoços. Em nada censuro o grito de ódio da irmã quando se deparou com aquele braço levantado do outro lado da sala. Dessa vez a violência veio em nome do bom senso:

— O que você quer, sua rata infeliz!? — Joana, séria, engoliu a saliva e passeou o olho por toda turma sem pestanejar.

— Eu sei a resposta. — Voz fanha, mas sem o gaguejar típico.

— Ah, você quer responder?

— É. Eu sei essa resposta.

— A única entre vocês que prometia superar o analfabetismo acabou de me decepcionar. Eu sou uma palhaça mesmo.

— Professora, eu sei a resposta.

— Então diga pra suas colegas qual a resposta. Aproveite pra explicar por que você desenha nas provas ao invés de escrever, por que você dorme e baba na sua carteira durante a aula e por que você grita como uma demente quando lhe peço para ler.

— A resposta da questão é: Maria Quitéria e Joana Angélica. E eu desenho porque não quero escrever. Eu durmo porque estou com sono. E eu grito porque não quero que vocês olhem pra mim.

A resposta estava correta. Recebemos a orientação para copiarmos em nossos cadernos. A vitória de Joana era um sinal de declínio para todas. Como uma doente mental era capaz de saber mais do que qualquer uma de nós? Como ela poderia saber mais do que Melissa? A partir daquele dia, a sala estava em guerra. Melissa e, principalmente, seu secto, precisavam se vingar. Era o prenúncio de um período tempestuoso. Do fundo da sala, eu intuía a abertura da fresta da oportunidade.

***

“… e foi aqui, justamente entre as ilhas paradísicas da América Central, no mar azul do Caribe, que, contam os historiadores, houve o maior registro de ação pirata da história. Durante mais de cem anos a pirataria foi uma característica da região. Tortuga, hoje uma pacata ilha turística, foi o epicentro da ação dos bandidos do mar… Esse morador afirma ser um descendente direto de piratas. Segundo ele, o seu pai foi membro da frota pirata de Tuva, o Espanhol. Ele diz que o pai no final da vida sossegou. Comprou uma casa e vivia da pesca, mas morreu sendo respeitado e temido pela vizinhança. Em Tortuga corre uma lenda que a popularização da pirataria na região foi provocada por um naufrágio. Um navio, possivelmente de origem francesa, havia afundado carregado de ouro na proximidade da ilha. O que …”

— Aí, o aluguel desse mês é seu.

— O combinado era a energia.

— Me foi cem conto o conserto da TV. O aluguel é seu, já dormi no trabalho esse mês.

Flávia trabalhava só nos finais de semana e ganhava três ou quatro vezes mais do que eu. Não tinha estômago pra me prostituir e por isso tinha que penar até nos domingos e feriados. Naquele mesmo ano já tinha passado por três empregos diferentes. Trabalhei pra uma agência de modelos: panfletagem, banquinha de degustação nos supermercados, figuração em campanha publicitária de loja de móveis. Me pagavam como se eu fosse uma adolescente pedindo dinheiro pra comprar sorvete. Conheci um dentista que me chamou para ser sua secretária. Foram dois meses. Ele passou a mão na minha bunda e eu enfiei uma tesoura de papel no braço dele. Nunca mais apareci e nem ele me procurou. Agora era aquela coisa de atendente em loja de cosmético. Recebia um salário mínimo, duzentos reais; vale transporte, que dava pra trocar por cigarro; e vale refeição, que me convenceu que era um bom emprego. Domingos e feriados, verdade, mas ao menos lá, não tinha que enfiar a tesoura no braço de nenhum filho da puta.

A conta de energia me levava mais ou menos cinquenta reais, o aluguel seria mais noventa. Pro resto do mês, teria que dar os meus pulos. Às vezes sentia que Flávia me colocava nesse tipo de aperto pra quebrar minha resistência a fazer programa. Não gostava da ideia, tinha medo de ser reconhecida no futuro. Ela parecia nem sentir. Era puta há muito tempo. Fugiu de casa com uns quatorze anos e ganhou a estrada. Já conhecia o Brasil inteiro. Veio de algum interior do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai, mas passou um tempo amigada de um caminhoneiro em Palmas. Tentou a vida em Brasília, Curitiba e Campo Grande. Tinha olhos puxados de índia, o que lhe dava feições de gato. De tudo nela, isso era única coisa que nunca mudava. Nas sextas, passava o dia arrumando o cabelo, se depilando e fazendo as unhas. Saía de salto, vestido de lantejoula, bolsa mínima e maquiagem. Nos dias de semana, sequer se penteava. Usava shorts folgados de tactel e camisas de time. Em casa, acompanhava sempre um baseado. Dificilmente um dos seus clientes a reconheceria. Era um camaleão e essa era sua principal habilidade.

Já tínhamos visto duas chamadas comerciais onde Pedro Bial soltava algumas palavras de tensão, mas o Fantástico ainda estava nos gols da semana quando me veio algo a mente: “será que Flávia puxou aquele papo do aluguel para me desestabilizar antes do programa?”. Volta e meia me pego tomada por esse tipo de paranoia, mas, naquela situação, ela sabendo do meu desejo de ingressar e conseguir ascender pelo reality e eu sabendo do desejo idêntico dela, não é algo plausível? Olhei pra ela. Soltava fumaça e encarava uma página de revista.

— Cê prestou atenção na matéria dos piratas?

— Não.

— Tinha coisas ali.

— Tipo o quê?

— Não sei. Achei que você teria visto.

Ela tirou a cara da página e olhou pro chão, como se quisesse lembrar. Não sei o quanto aquilo seria capaz de distraí-la, certamente menos do que aquele papo da grana conseguia me atordoar, mas, por via das dúvidas, seguíamos empatadas. Antes do fim do Fantástico, capturei um pacote de cream cracker e uma caneca de café com leite. Precisava de algo para aplacar a ansiedade. Sentei no chão, em frente a TV com a comida na mão e, no primeiro acorde da canção de abertura, liguei a minha leiturinha no máximo. A partir daquele momento o meu esforço seria o de traduzir BBB para uma linguagem lógica: buscar sentido nas decisões dos participantes, da direção e do público, e começar a traçar uma estratégia.

A princípio, havia um nítido contraste entre a proposta gráfica do programa e o apresentador. Bial era um intelectual, com óculos de armação larga e com aquele jeitinho meio afrescalhado. O programa tinha cores vivas entrelaçadas com o cromado típico da Rede Globo. A proposta gráfica mirava no povão, aquele apresentador em um público que pseudo-intelectual. Isso me pareceu só um erro, mas a repercussão popular silenciava essa primeira conclusão. Talvez eles estivessem buscando justamente um amparo na figura dele. Uma forma de afastar a culpa pela futilidade. Bial falava frases cifradas e poéticas. Flávia, chapada, gargalhava, obviamente entendendo o jogo. Na matéria da revista, era citado que o nome do programa vinha de um livro, o 1984. Não tinha lido ainda. Era uma coisa dessas sobre futuro destruído onde tem um governo que vigia todo mundo. Essa reflexão parecia, dispersamente, nortear as falas do apresentador. Mas de resto, não tinha nada de caótico ou assustador. Quando Bial saudou os “brothers”, a impressão da casa luxuosa que tinha formado com base no plano de fundo de uma foto ou outra, foi superada. Era um sonho de lugar. Toda propaganda de “desafio do isolamento” veio por terra. Aquilo não era um desafio para maioria dos espectadores e a direção, por certo, sabia disso. Os competidores eram jovens e sarados. A moça que foi capa da revista estava lá, com a maquiagem borrada, explicando o motivo de ter chorado. Havia só dois negros: um homem e uma mulher. Ambos pareciam americanos de tão negros, como uma espécie de compensação por serem só dois entre doze. Seis homens e seis mulheres. Todos com um bom português, mas com múltiplos sotaques. Pareciam membros da classe média de suas regiões. Não eram exatamente figuras populares. No mínimo, gente bem informada, com cobertura de TV a cabo e viagens ao Rio ou São Paulo. Aspirantes a fama, sem dúvida. Dentre as mulheres, só mesmo a chorona se destacava. De resto, loiras sem muito o que dizer e morenas com cara de desaforadas. No meio dos homens, playboys, surfistas e um menino com pinta de escritor. Aquele dia era de formação de “paredão”, o momento onde os jogadores podiam escolher dois participantes para serem eliminados. Um deles era escolhido pelo “líder”, na ocasião, um bombado de boné que indicou o franzino com cara de escritor. O outro era selecionado por votação secreta da casa, um elemento de tensão no jogo. Um a um, foram levantando, se dirigindo a um quarto secreto e votando. Nesse momento, observei os olhos de Flávia, que piscavam sem parar. Entendia bem o que estava acontecendo, mas não podia me deixar desconcentrar. Ela estava conjurando a sua habilidade e eu deveria me concentrar na minha. Mordi uma bolacha e tomei um gole de café. Os argumentos se repetiam assim como os votos. Todos queriam que Xirlane, chorona, saísse. Pelo visto, ela tinha dormido com o líder, o que foi tomado por todos como um ato de conveniência e de jogo. Isso me pareceu um argumento absurdo, uma vez que essa era a proposta do programa: um jogo. Mas, pelo visto, além de mim, só Bial pensava assim. Chegou a tecer uma ou duas frases de efeito sobre o tema, mas foi ignorado. Xirlene votou em Raíssa, uma outra loira, que só recebeu esse voto. Depois de definido o paredão, ele foi anunciado para os brothers, o que fez com que a chorona chorasse outra vez. Na sua defesa, o branquela escritor disse que tinha muito o que mostrar ainda. Xirlene, previsivelmente, insinuou que estava sendo injustiçada. Assim que tudo foi encerrado, Flávia levantou e mostrou do que era capaz, compenetrada, reanimou em si todo gestual e fala que tínhamos visto na defesa da brother. Em seguida, gargalhou.

— É guria, tu sabes bem, não sou de fazer charme: tá lá, é essa a nossa primeira eliminada.

Uma boa amiga. Estava certa, sem dúvida. O Brasil é católico, só mesmo uma menina empolgada lança mão do sexo sem drama na primeira semana de um programa barroco como aquele.

Algumas coisas ainda precisavam ser descobertas: como funcionava a seleção de cenas do programa que iam ao ar nos dias de semana; como um brother se tornava líder; como era a rotina na casa; e, principalmente, como se fazia para entrar lá. Apesar disso, estava satisfeita, a complexidade espiral do game me animou. Parecia que no Big Brother tudo era diverso do que se anunciava e diverso do que se supunha imediatamente diverso. Um programa que caminhava em um terceiro grau de complexidade, um degrau em que caminhava eu mesma.

Lavei a louça, tomei um banho e me ajeitei pro sono enquanto Flávia se entretinha com um filme de drama esquisito que começou. Quando fui deitar, ela, discretamente, abaixou o volume. Peguei no sono com aquela luz azul bagunçando as sombras da sala. Foi uma surpresa quando, já na alta madrugada, me acordou sussurrando:

— Aê, foi mal, mas não tô conseguindo dormir. Qual foi a coisa da matéria do pirata que tu disse?

Sabíamos o ponto fraco uma da outra, a caminhada seria quase impossível se a gente não se unisse.

***

Link para o capítulo 3: https://cutt.ly/mgw942k

Gostaria de agradecer a todas e a todos que contribuíram para realização deste segundo capítulo. Dessa vez nossos patrocinadores foram:

— Ise Tha de Mendengkur

— Mariana Grano

— Simone Guerreiro

— Catharina Azevedo Ferreira Almeida

— Lilian Sais

— Waly Sailormoon

— Karine Monteiro Lisboa

— Paulo Sobral

Além de mais dois doadores que escolheram a opção de doação anônima.

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Gabriel Lima
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Formado em porteiro e vigia pelo SENAC. O nome do meu professor era Fredson. Gente boa, o Fredson.