Gabriel Lima
brasil LOVE
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11 min readOct 6, 2020

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Ilustração de Axoloti Kerope

CAPÍTULO 3: Sobre os Livros

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Saí correndo do trabalho e fui direto para biblioteca estadual que ficava a uma esquina de distância. Na entrada, um segurança velho dormia tão tranquilo que parecia já aposentado. Sempre me impressionou aquela estrutura gigantesca coberta pelo aspecto de ruína. Era um prédio elegante, trabalhado em concreto e mármore; mas apresentava aqueles desgastes típicos de departamentos públicos. Através das paredes altas de vidro conseguia ver um suporte para luz bastão florescente ligado ao teto apenas pelos fios. Na área aberta, a iluminação piscava. O jardim central era regado pelas águas dos ar condicionados e crescia desordenadamente. Depois das seis, era completamente vazio. De dia, os únicos visitantes eram políticos e intelectuais de cinema, que vez ou outra acessavam a sala de projeção e comentavam como aquilo precisava ser melhor aproveitado. A sala fechava às cinco, junto com o sol. Na noite, restavam só os poucos funcionários, que mofavam com os livros.

Estava com fome, mas, sabia que se não fizesse aquilo naquele momento, provavelmente, só voltaria a ter essa oportunidade no próximo mês. Cumprimentei a bibliotecária gorda que assistia a novela das seis comendo pão com café. Ela fingiu que não viu, mas eu sabia bem como lidar com aquele tipo de grosseria.

— Lúcia! Não me conhece mais não, mulher?

Toda estrutura do funcionalismo público no Brasil é uma cadeia de nepotismos. A dinâmica de prestação de serviços é muito mais próxima do pedido de um favor a um parente do que de fato um acesso a um serviço garantido. Quando não se tem dinheiro, morrer ou não morrer, comer ou não comer, ter abrigo ou não ter abrigo, são conquistas, principalmente, da sua habilidade em construir boas relações. Se quem tem boca vai a Roma, penso que Roma deve ficar bem perto do Planalto.

A gorda virou irritada, apertando o olho. Depois curvou a sobrancelha e abriu um sorriso só com os lábios, preservando a mastigação. Me reconheceu. Engoliu o pão e sorriu mais à vontade.

— Menina! — Levantou batendo o farelo que tinha caído na camisa, em cima dos peitos. — Zorra, achei que não ia te ver mais. Lembrou dos pobres, foi?

— Não foi o quê? Tô trabalhando no shopping aqui do lado agora.

— Cleice tá de manhã. Agora eu tô aqui sozinha, minha filha. Só me resta ver televisão mesmo.

— É. Nada a ver isso de ficar aberto até tarde, né?

— É o que eu falo. Mas também tem seu lado bom. Não fica aquela agonia daquele povo maconheiro que vem pro cinema. Se lembra?

— Claro. A gente dava era risada.

— Eu achei que você tinha virado freira.

— Que nada. Essa foi a outra.

— A outra!?

— Pra você ver.

— É mole? Mas me diga aí. Veio procurar alguma coisa?

— Tem um livro, Lú. 1984.

— Americano?

— Acho que sim.

— Ali, na sessão de estrangeiros, primeira estante. Pode jogar duro, as câmera não tão mais funcionando. Se puder, você devolve. Se não puder, bota pra sua prateleira lá.

Gargalhei. Compreender o poder dos gestos banais é uma habilidade essencial para quem quer chegar em algum lugar. Eu sei que pra maioria, aquilo era uma conversa equivalente a dar papo pro vendedor da barraca, mas não era verdade. Eu pagava o barraqueiro, ele me entregava os doces e a revista. Eu sorria. E esse era meu gesto de simpatia. Ser uma cliente simpática era o suficiente para torná-lo um sentinela que me protegia dos ladrões do Centro. Não fazia sentido esperar mais do que isso dele. Provavelmente, só consumiria meu tempo, papo e paciência. Conversar com Lúcia, guardar o seu nome, me davam acesso a uma biblioteca com mais de duzentos mil livros, e a uma sala de projeção cinematográfica funcional. Ela não fazia menor ideia do poder real disso. Se vendia barato e eu tinha disposição para pagar seu preço: uma troca de fofoca, uma reclamação e uma gargalhada.

Tomei um susto quando, virando pra estante, me deparei com um homem. Magro, negro, com cabelos rastafári e usando um óculos acompanhado por uma roupa social amarrotada. Ótimo. Um novo candidato a vereador pelo PSOL. Cheguei a sentir raiva de Lúcia por não ter me avisado, mas descartei quando notei que não fazia sentido nenhum cobrar um aviso desse tipo dela. Ele fingia integridade, não desviou a vista do livro, mas notei que estava mais rígido do que costumam estar quando não sabem que estão sendo observados. Na certa, pela minha desatenção, tinha me visto antes. Não recuei, mas mostrei insatisfação no passo. A merda era que tinha que achar o livro, o que implicava em ficar passeando pela sessão virada de costas. Não tinha nem tempo e nem disposição para lidar com aquela sensação de ter a bunda sendo devorada pelo olho do Bob Marley do Recôncavo. Em média, aquela situação poderia custar de trinta a quarenta minutos, ou uma grosseria. A grosseria, vejam vocês, me dava pena naqueles casos. Quer dizer, que tipo de sujeito se veste daquele jeito e se enfia numa biblioteca pública naquele horário? Sei lá, uma versão adulta dos meninos pretos que aparecem tocando violino na campanha do Criança Esperança? Pensei rápido e tomei as rédias da situação.

— Licença. Desculpa, é que estou corrida. Você viu o 1984?

— Desculpa, não entendi. — Claro, concentrado pensando em algum jeito de me convidar para tomar uma nos bares lá de fora e depois me comer.

— Você viu o 1984? O livro.

— Ah! — Sorriu e me levantou a capa do que estava lendo. Era a porra do 1984. Tirou a sorte. — Gosta de ficção cientifica?

— Não, não. É pro meu namorado.

— Porra.

— Porra o quê?

— Não. Não, nada. É que achei que você gostasse de ler.

— Gosto. Tem outro desse?

— Desse o quê?

— Desse livro, meu querido.

— Ah, tem sim. Mas me esqueci aonde, quer procurar?

— Não. Tô com pressa. Me dá esse e outro dia te pago uma cerveja. Pode ser?

Aprendam. Puxei o livro e ele deixou escapar com a mão mole. Adiantei o passo. Sabia que a pergunta era tão inevitável e indesejada como uma bomba. Já estava próxima a recepção quando ele disparou:

— Mas eu te encontro aqui!?

Lúcia olhou sorrindo. Eu levantei a sobrancelha e torci os lábios. Não respondi. Era o melhor pra ele e era o melhor pra mim. Virei pra trás, dei de ombros e saí.

Tinha pensado em parar no cachorro-quente da frente, mas, se ficasse ali, correria o risco do reencontro. Só fui comer quando cheguei no acarajé que uma baiana montava na rua do meu prédio. Era engraçada. Batendo a massa, me viu com o livro na mão e fez cara de susto.

— Oxe, virou crente, foi!?

Ao redor, as filhas que preparavam o acarajé pros clientes riram. Os clientes também.

— Tá doida, mulher?

— Ô, um livrão desses, achei que era a Bíblia. Já tava aqui me armando pra contar pra Tâninha.

— Que nada. Só livro normal mesmo.

— Que mal lhe pergunte, mas desde quando que você lê mesmo?

Só ri e peguei meu bolinho na mão da menina. Subi pra casa mastigando a memória da primeira vez que tinham me afrontado com aquela pergunta.

***

As internas se dividiam no intervalo. As que tinham a minha idade, geralmente, se juntavam pra jogar baleado e elástico, quando não, sentavam ao redor de Melissa para disputar a sua atenção. As mais velhas, se dispersavam em grupos menores. Iam, em três ou quatro, trocar suas fofocas, bajular umas as outras ou, secretamente, para o portão, fumar cigarros e paquerar os meninos que passavam. Esse grupo mais subversivo era liderado por Andreia, a menina de cabelos crespos sobre a qual já comentei. A única entre as três existentes que sumia fora da sala era Joana. Nunca tinha parado para segui-la, tinha medo de ser notada e taxada por ela, e, principalmente, pelas outras, como sua amiga. Constatava só a sua ausência. Desde a resposta fatídica, tinha feito um plano de escalada e, para começar a colocá-lo em prática, precisava desenvolver um novo hábito: a leitura.

Apanhei uma caneca de mingau de tapioca e uma broa de milho, lanche que distribuíam nos dias mais magros, e segui para o local que acreditava ser o meu novo espaço no intervalo. Na porta da biblioteca, Carmem, uma irmã espanhola, foi o primeiro indício de que nem tudo seria muito fácil.

— A dónde crees que vas, niña!?

Quando abri a boca os argumentos e as desculpas fugiram como sapos. Não sabia se era o sotaque ou aquela cara branca de estrangeira que me causavam maior temor em relação a Irmã Carmem do que a qualquer uma das freiras. Não estava pronta para ser vista por ela. Não que nunca tivesse acontecido, mas na ocasião, era só mais uma menina trêmula e parda perdida num mundaréu de outras meninas idênticas.

— Tienes en cuenta que este lugar es tan civilizado como tu hogar, salvaje? No sabes que no puedes comer en una biblioteca, o quieres desafiarme? A dónde crees que vas con esa taza en la mano? Ahora vuelve al infierno que te envié. Vuelve ahora.

E levantou me enxotando. Não tinha menor ideia do que tinha sido dito e o motivo de não ter sido aceita. Sabia só que vinha na minha direção uma mulher estupidamente alta, vestida de preto, com um coque na cabeça e furiosa. Precisava encarar. Me concentrei para não fugir e nem chorar.

— Irmã, eu quero ler.

Ao ouvir aquilo, parou e bufou.

— Hace doce años empecé a cuidar de aquí. Nunca he visto a nadie como tú leer. Desde cuando lees?

— Desde agora.

Me olhou com uma cara de desafio. Depois pegou um livro que estava na mesa ao lado da porta.

— Ves eso? Es papel. Si te ensucias con tu comida, se terminará. Entre él y tú, estaré en defensa del libro. Bebe tu porquería y vuelve.

Engoli o mingau na frente dela. Acho que foi um dos momentos mais honestos da minha vida. Precisava fazer aquela mulher aprender a me respeitar.

— Eu sou inteligente e também sei ler, a senhora vai ver.

Ridículo, não é mesmo? É o preço da sinceridade. Cheguei ensaiar o movimento de dar as costas para devolver a caneca na cozinha, mas ela, pelo que entendi, teve certa compaixão.

— Quién es inteligente no habla, quién es inteligente muestra. — Veio até mim e tomou a caneca — Puedes dejarme la taza. Cuidado con la loca.

Atrás dela, uma biblioteca vazia com mesas e cadeiras de madeira. Tudo era castanho encerado e parecia novo. No teto, dois imensos lustres desligados. A luz, naquela hora, entrava junto com o vento pelas janelas enormes. Era um cenário calmo e cheio de importância. A única coisa que destoava do ambiente eram aquelas duas pernas brancas e magras que saltavam de um dos corredores de estantes se estendendo pelo chão. As pernas de Joana.

***

Antes de abrir o apartamento, respirei fundo. Ainda na escada tinha ouvido os barulhos de risada que vazavam da porta. Flávia não estava só. Destranquei com raiva e sorri um sorriso falso para visitante, que foi a primeira que se mostrou. Era uma dessas meninas carecas cheias de tatuagem com piercing no nariz.

— Olá! — Levantou a mão acenando como quem diz tchau, em seguida, parou o sorriso e o movimento numa teatralidade infantil. — Fau, alguma menina abriu sua porta!

Flávia saiu da cozinha rindo, com um baseado na mão e a tomou pela cintura lhe dando um beijo entre a bochecha e o cangote. Sorriu pra mim, confrontando a minha irritação.

Coloquei a bolsa e o casaco pendurados do lado da porta e tomei o baseado da mão dela. Traguei e devolvi. Deixei o livro e apanhei umas roupas na caixa que fazia de guarda-roupa e segui pro banho. Fechei a porta e, antes de tirar a roupa, lavei o rosto. De lá de dentro consegui escutar a piadinha que achei que, ao menos, dentro de casa estava a salvo.

— Fau, escuta. Não fica com ciúmes, mas sua amiga pode mesmo ajudar? — Riram juntas.

— É, ela sempre me ajudou. — E as risadas foram cortadas por sons de lábios se encontrando.

Ajudei, realmente, mas não daquele jeito. O que me irritava era a bagunça mental que essa visitas provocavam. Flávia, ao contrário de mim, parecia conseguir desligar a sua habilidade. Eu era atormentada pela minha. Ter uma visitante numa casa com apenas um cômodo, além da cozinha americana e do banheiro, significava, para mim, uma experiência exaustiva. Cada novo movimento, cada frase, cada olhar, cada opinião, comportamento, seriam objetos de leitura. Precisava de uma ausência de novidades para me recompor. Não faço a menor ideia se ela pretendia alguma coisa com aquilo. De qualquer forma, tinha outros planos para aquela noite.

Saí do banho e joguei minha farda no tanque. Apanhei uma mochila rosa onde Flávia guardava o secador, as escovas e a prancha. Catei a chave em cima da mesa.

— Aí, guria, onde tu vai com minhas coisa?

— Em Carla.

— Trabalho?

— É sim.

— Pô, pode crer. Tranquilão. Era só que Larissa queria te fazer uma proposta.

A amiga, rindo, pulou com a mão na sua boca a derrubando de volta no colchão.

— Fau! Se você contar eu vou embora! Sério! Não conta! Não conta se não eu vou!

Flávia aplicou algum golpe de jiu-jitsu e inverteu a posição.

— Eu vou contar sim! Eu vou contar agora e tu vai ficar. Tu vai ficar onde eu mandar.

Bati a porta e abafei as duas junto com a fumaça. Subi um lance de escadas e toquei na campainha: parecia uma outra versão do mesmo inferno. Me atendeu uma menininha despenteada que vestia uma camisa longa com a estampa do Frajola. Ela devia bater no meu umbigo. Olhou pra cima e, com todo desaforo perguntou:

— O que é? — Respirei fundo, mas respondi.

— Sua mãe.

— Menina! Eu já não te disse pra não abrir a porta!? — E Carla brotou, preparada pra acertar um tapa. Em tempo, a menina correu.

O desafio agora seria grande. Três vezes por semana, assistiria o programa de dentro da casa de Carla. Ela gritava, corria atrás da filha e dava opiniões a respeito do que passava na TV. Isso tudo acompanhado pelo barulho do secador e pelo meu cansaço. Não tinha jeito, precisava do dinheiro para o aluguel. Flávia costumava cumprir com as determinações que lhe pareciam justas. Se não pagasse, seríamos despejadas.

Havia, no entanto, naquela situação, uma oportunidade para estudar melhor um dos pilares do jogo: o público.

***

A cena foi exatamente como a primeira: a sala inteira virada para Melissa, implorando uma resposta, enquanto Joana, soberana, com firmeza no olhar e com os dentes saltados da boca, aguardava a sua costumeira vitória. Dessa vez, no entanto, nós tínhamos uma nova jogadora. Do fundo da sala, levantei o braço sugando imediatamente o olhar de todas colegas, como um ímã numa caixa de clipes. A maioria, reagia como se nunca tivesse me visto ali. Até mesmo a professora teve que apertar o olho para entender de quem se tratava. Sim, era eu, a mulata calada do fundo da sala. Sim, era meu braço levantado e a resposta na minha garganta. Eu existia.

***

Link para o capítulo 4: https://cutt.ly/fgsxyWW

Gostaria de agradecer a todas e a todos que contribuíram para realização desse terceiro capítulo. Nossos abraços e agradecimentos para:

— Cauã Liberato

— Mariana Grano

— Karine Monteiro Lisboa

— Liz Almeida

Além de mais três doadoras e doadores que escolheram a opção de doação anônima.

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Gabriel Lima
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Formado em porteiro e vigia pelo SENAC. O nome do meu professor era Fredson. Gente boa, o Fredson.