Gabriel Lima
brasil LOVE
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9 min readOct 21, 2020

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Ilustração de Axoloti Kerope

CAPÍTULO 5: Os Olhos

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Gargalhei, a felicidade foi incontrolável. Flávia deixou transparecer certo desespero, mas não pude me conter. Larissa, depois de passear o olho duas ou três vezes entre a minha reação e a de Flávia, não resistiu e, com olhinhos vermelhos quase fechados, começou a gargalhar também. Os boys, deitados em suas espreguiçadeiras soltaram pequenos pacotes de sorrisos com os dentes fechados. Só mesmo o tal Raoni mantinha o jeito sério, com o canudo na boca, como se estivesse pensando. Em seguida, rolou a cabeça sobre o próprio peito e encaixou o olho direto no olho de Flávia, que ficou nitidamente aterrorizada.

— O acerto é um projeto, mas o erro é uma dádiva, meu bem. Você é muito boa. Veja, eu também estou pelado. Não precisa ter vergonha de mim. Um jornalista bêbado em Salvador, é isso que eu sou. Uma lésbica que namora a minha sobrinha, é o que você é. — Rolou o olho e o encaixou em mim — E você, o que você é?

Não é a pergunta mais gentil para sentir descendo, sem aviso, a garganta. Ele era muito bom, mesmo bêbado. Com dois movimentos tinha cortado a nossa sensação de superioridade e proposto bons acordos.

Deixei a bag no chão e soltei o cabelo.

— Eu sou uma mulher que acabou de ser demitida e está louca pra começar uma vida nova.

Ele gargalhou só.

— Tieta! — Apontou pra mim disse — Uma bela Tieta!

Me limitei a sorrir enquanto passava protetor no rosto. Acho que nessa altura vocês devem compreender que Tieta de Jorge Amado não tinha nada a ver comigo. Mas, se esse era o fetiche do turista, não teria muitos problemas em cumprir. Por tás das maçãs do rosto avermelhadas e contemplativas de Flávia, os olhos disparavam uma espiral de insultos. Não tinha culpa, não sabia nem se isso era só uma jogada dele. Sei que não tinha condições de recuar. Não podia, por amizade, abrir mão do meu objetivo, até porque isso não garantiria um acesso dela. Ao mesmo tempo, era uma má ideia comprar essa rivalidade sem nenhuma garantia.

— Tô indo pra água. Alguém vem comigo!? — Larissa era incapaz de se opor a qualquer proposta que quicasse na sua frente. Desceu a areia pulando e latindo do meu lado. Atrás, os boys, possivelmente dispensados para dar mais intimidade para o chefão.

Afoguei a ansiedade na água do mar e senti o corpo leve sendo totalmente abraçado. Emergi do lado de um barco que flutuava ancorado a alguns metros da areia e mirei a praia. Daria a Flávia o direito de negociar em paz, mas, depois que o jogo estivesse empatado, teria que lutar com tudo.

***

Não consegui voltar na biblioteca naquela semana. Deixei o livro de geografia aberto em cima da mesa, Carmem me mataria assim que me visse. Pelo menos do lado de fora podia arriscar pegar duas remessas de lanche. Estava na fila pela segunda vez quando notei duas colegas quaisquer rindo atrás de mim. Conferi minha saia, estava limpa.

— Que foi?

— Nada.

— Nada.

— Então cês tão rindo do quê?

— É que a gente queria ser sua amiga e a gente nunca te achava.

— É. Melissa tá chata.

— Por quê?

— Ano que vem vai entrar meninos no colégio.

— É!

— Aí ela disse que vai entrar um namorado dela, Leandro.

— Aí ela só fica, “Leandro pra cá”, ai, “Leandro pra lá”, e não liga mais pra nenhuma amiga. E deixa a palerma ganhar ponto. Se não fosse você, Joana ia acabar sendo a representante da turma no final do ano.

Ainda não sabia medir a relevância dos convívios, mas já valorizava boas informações. Não soube acolher elas, mas passei a discernir seus rostos no meio da multidão. Notei como o núcleo menos prestigiado de Melissa estava se fragmentando. Restaram só as nitidamente apaixonadas, que lhe traziam lanche e água, e as três que a imitavam. Ela, no entanto, parecia sinceramente melancólica. Por trás do uniforme branco, conseguia ver o desenho do seu sutiã, peça a qual ainda passava longe das demandas do meu corpo. A entrada dos meninos no próximo ano reconfiguraria todo nosso jogo. Ela já caminhava pra se tornar uma mulher, eu ainda era uma menina. A disputa entre eu e Joana pela vaga de representante da turma deveria acirrar ainda mais. Ser o segundo lugar num local de prestígio secundário era, muitas vezes, uma derrota pior do que a não existência.

No início da outra semana, voltei a biblioteca e fui recebida pela saudação irônica da irmã.

— Pois um bom filho a casa torna!

Me espantei por não comentar nada sobre o livro abandonado. Sentei no lugar de costume e observei as pernas cínicas de Joana, que batiam no ar, como se pertencessem a um inocente tronco de menina. É isso, só tinha que não incomodá-la. Ela poderia saber mais do que eu, mas só teria chance quando eu falhasse. Tinha a turma e a professora do meu lado. Melissa seria a bonita, Joana a bizarra e eu a inteligente.

***

A riqueza nunca foi uma grande questão pra mim. Me sentia habituada aos ambientes de luxo tanto quanto aos cortiços. Vez ou outra, tomava um susto com alguma nova tecnologia, mas, em geral, parecia sempre a par de tudo. Sabia, por exemplo, como meu corpo soava bem ali, encostado no parapeito de uma cobertura no Corredor da Vitória, em frente a Baía de Todos os Santos, com um cigarro na mão, em plena madrugada, por mais que a fumaça que subisse fosse da marca mais fuleira. Sabia também que só os mais fúteis acreditavam que a sedução era uma ferramenta exclusivamente sexual. Raoni era nitidamente gay, mas tinha certeza que olhou para mim durante a noite toda e que apareceria ao meu lado a qualquer momento se me visse só ali.

— Flávia é muito boa.

— É sim.

— Mas vim pra Bahia encontrar a minha Tieta. A mulher que foge das bordoadas do conservadorismo provinciano e volta pra casa rica.

— É bom. Também sei ser.

— Mas e ela? Flávia. Vai abandonar sua amiga?

— Você conhece Flávia?

— Seria um atrevimento dizer que sim.

— Se você fechar a porta, ela vai arrombar a janela. Não é o tipo de pessoa de quem preciso ter pena.

— É o que você vai dizer quando estiver lá dentro?

— Lá dentro não vou ter Flávia. Lá dentro, vou me curar das bordoadas e conquistar minha independência.

Devia ter pouco mais do que um metro e sessenta, era uma figura engraçada de se ver embalada num roupão.

— Okay, mas Tieta nunca diria isso, meu bem.

— O erro é uma dádiva?

Balançou a cabeça e me pediu o cigarro com um gesto, tragou e tossiu.

— Que merda é essa!? — Tragou de novo, bateu a cinza, cruzou os braços e me olhou sério por detrás dos óculos. — É o seguinte, baby: você está acostumada a ser esperta, mas com esse comportamento você não vai longe. Você já experimentou ter uma inimiga como Flávia? Porque do jeito que fala, parece que não. Eu ainda quero você, mas ela é uma questão a se resolver. Não fosse sua risada descontrolada, ela realmente ia me enganar. Tenho que arrumar um jeito dela entrar também, ou ela vai me foder. — Jogou a bituca longe, na direção do mar apagado. — E você precisa parar de fumar. Isso vai te tirar tempo de câmera lá dentro.

O Victória Marina era um hotel carregado com a estética moderna espelhada dos anos oitenta, mas ainda fazia relativo sucesso pela localização. Fincado entre prédios tradicionais da velha elite soteropolitana, era próximo do circuíto de carnaval. Além disso, tinha o pier mais famoso da região, o Mahi Mahi. Descemos em um bondinho antigo que parecia saído de um filme de 007. Tinha dormido mal no sofá. Os dois meninos entraram com Raoni para a suíte principal e o quarto para visitas ficou com Flávia e Larissa. Agora todos ainda pareciam estar dormindo, trepidando com olhos entreabertos naquele bondinho com cheiro de bronzeador. Gostei daquilo.

Devia ser umas oito ou nove da manhã, serviam um buffet de café da manhã no restaurante do pier. Apanhei um prato. Aipim, carne do sol, manteiga de pote. Larissa, obviamente, seguiu meus passos sorrindo. Flávia se limitou a um copo de mingau de milho. Os meninos pediram uma jarra de vitamina e Raoni suco de laranja e um misto na chapa, que me fez inveja quando chegou na mesa. Fiz questão de pedir um igual assim que acabei o meu. Me olharam assustados quando, depois de todos satisfeitos, voltei na mesa para pegar uma fatia de cuscuz de tapioca regado com leite condensado.

A água do mar parecia fazer as tábuas de madeira do pier balançarem. Um dos meninos se levantou disposto a um mergulho. Atirou a regata na cadeira e ficou só de sunga. O outro, incapaz de respirar sozinho, repetiu o movimento. Iam lá, duas bundas lindas atochadas em sungas boxers: uma preta e outra vermelha. Atrás, Larissa.

Estávamos sós. Flávia me olhou, parecia, em alguma medida ferida com a coisa toda. Talvez eu devesse ser mais humana com ela. Digo, meus movimentos faziam sentido, mas eu não sabia como ela estava lendo o jogo. A única coisa que conseguia discernir é que, por detrás dos gestos e do semblante satisfeito, seus olhos eram os de uma gata assustada. Não parecia tramar nada mal, mas, por extinto, poderia voar em minha garganta.

— Então. Vocês são uma dupla muito boa. — Raoni levantou a mão e pediu um cinzeiro, em seguida tirou da necessaire um charuto — Mas não estão trabalhando juntas. Flávia, você é péssima em compartilhar informações. Ela fica completamente perdida, recebe suas coisas sempre no improviso e isso pode acabar ferrando você mesma, como aconteceu. — Preparou o charuto, passou um tempo acendendo e depois virou pra mim. — E você é muito individualista. O Big Brother é um programa popular, se você não tiver espaço na sua vida pra mais ninguém além de você, vai ser eliminada na primeira semana.

— Bá, mas como é que vai ser? Tu vai butar nós duas mesmo? — Tinha mais impaciência do que esperança na fala dela. Chegou a correr a vista na perna de uma argentina que ia passando enquanto falava.

— Não, é uma pena mas não dá. Acho que ia ser uma sacada genial produzir vocês duas, mas, infelizmente, cada olho só pode assinar a produção de uma aspirante.

— É o nome que dão pra vocês?

— É, meio que sim.

Sentia uma vontade terrível de mastigar aquela comida de graça enquanto pensava.

— Você produziu quem?

— Ninguém que você conheça. Minha concorrente não passou da Cadeira Elétrica.

— Que porra é essa? Tudo de vocês tem esses nomes esquisitos?

— Por aí. A Cadeira Elétrica é a última triagem antes da definição do elenco. A primeira é o De Olhos Bem Fechados, dinâmica de grupo, e a segunda, Mix Tape, onde uma equipe vem e prepara um material visual sobre você.

— E todos são produzidos por um Olho?

— Não, não. Alguns são escolhidos pela própria produção interna, pelos vídeos caseiros. Aquele fiasco daquele menino metido inteligente: dedo do Bial. São selecionados milhares de Tiros Surdos que nem esse, sem produção. Somos só trinta olhos. Com sorte e algum apoio desse tipo, eles podem chegar lá. Competimos entre nós e com eles. Lógico que a chance deles é bem menor. Eles não tem informações básicas, como a das cotas. Só temos uma vaga para candidatos da Bahia, por exemplo. Sem saber disso, acabam rivalizando com outras cotas durante o Olhos Bem Fechados.

— E tu veio pá pra pegar a tua baiana, então?

— Isso.

— Bá, então pra quê tu te expõe mais comigo?

— Calma, menina. Seu presente já está pago.

— Que presente?

— A sua passagem, ué. Lari me deu seu CPF. Já tá paga.

— Como é!?

— Tu vai concorrer pela cota do Centro-Oeste, piá!

Flávia recostou na cadeira como um homem e, depois de muitas horas, voltou a me olhar como amiga. Eu também estava satisfeita com a proposta. Raoni, soberano, soprava uma cortina de densa fumaça cubana. Ao fundo, Larissa empurrava um dos meninos dentro do mar.

Agora poderíamos estar juntas na próxima edição do BBB. Era uma vantagem, mas, a qualquer deslize, poderia se tornar um risco.

***

Meus bebês, hoje vou ter que parar por aqui.

Pra quem ainda não conhece o formato aqui da Folhetim, funciona assim: toda semana estipulo uma meta simbólica lá no catarse ( https://cutt.ly/zgxKlhC ), o próximo capítulo será lançado na quarta-feira que vem se a meta for batida. Se a meta não for batida, minha história é descontinuada. É uma forma de descobrir o valor do meu trabalho e de verificar se tem alguém aí do outro lado. A doação mínima no Catarse é de 10 reais, mas a máxima é ilimitada. Fiquem à vontade. Os doadores serão creditados aqui na semana que vem. Caso queira contribuir em sigilo, o Catarse oferece essa opção.

Já contribuiu na primeira campanha e está apertado agora? Não me abandone, meu bem. Indique o Uma em Mil para uma amiga ou amigo. Ele com certeza vai nos ajudar a continuar essa história.

Gostaria de agradecer a todas e a todos que contribuíram para realização desse quinto capítulo. Nossos abraços e agradecimentos para:

— Tadeu Bruno da Costa Andrade

Além de mais um doador que escolheram a opção de doação anônima.

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Gabriel Lima
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Formado em porteiro e vigia pelo SENAC. O nome do meu professor era Fredson. Gente boa, o Fredson.