#tbt — o dia em que Pelé fugiu do Itamaraty

Waly Ferré
brasil LOVE
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10 min readOct 24, 2020

Hoje, o #tbt está sendo publicado na sexta-feira, dia em que meu gigantesco amigo Pelé completa 80 anos. Um evento extraordinário. Viva ao Rei. Viva ao maior de todos os tempos.

Foi assim: o ano era 1995, e eu estava no Palácio do Itamaraty, participando de uma grande festa que o governo brasileiro promovia em favor do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância — a Unicef. O evento era o grande cartão de visitas do então Presidente recém-empossado Fernando Henrique Cardoso, que desejava apresentar ao mundo a nova cara de um Brasil fino e elegante; e com educação suficiente para não fazer desfeita na mesa de jantar de qualquer país europeu. Para isso, convidou autoridades do mundo todo, entre as quais o presidente estadounidense Bill Clinton, e diversas celebridades que comporiam a constelação luxuosa prometida para a noite. Havia a expectativa de que até Michael Jackson estaria presente, e os rumores sobre sua suposta aparição se multiplicavam tanto que passavam a ser um atrativo da festa. O boato circulava tão intensamente que passei a ter certeza de que eu mesmo tinha visto Michael Jackson num heliporto de Brasília, ou num pequeno sítio nos arredores da Lagoa do Jacuba, e espalhado a notícia para as pessoas. Mas se a presença do Rei do Pop estava ainda envolta de seus muitos mistérios, a presença do nosso Rei era certa e luminosa: Pelé, no cargo de Ministro Extraordinário dos Esportes, era a figura mais ilustre do palácio.

Todos queriam um pouco de sua atenção. Os jovens de hoje talvez não tenham tanta ideia, mas Pelé é um dos ícones mais conhecidos em todo o planeta. Nenhum brasileiro serviu tanto de sinônimo para seu país como o nosso Rei do futebol. Todos os estrangeiros o reverenciam. Bill Clinton, antes mesmo de cumprimentar o nosso Presidente da República, foi se esgueirando entre as pessoas para conseguir um aperto de mão de Pelé. FHC parecia um vereador ao seu lado. Eu juro, nem quando Pelé ainda jogava ele chegava a ser tão aclamado quanto estando aposentado e ocupando um cargo num ministério. Sua influência ia aumentando como se o seu mito crescesse na medida em que suas realizações materiais se distanciavam no tempo, e passavam a habitar memórias mais profundas dentro de nossas saudades. Eu tive que esperar muito e cotovelar alguns bocados até enfim conseguir uma oportunidade de dar um abraço carinhoso nesse meu querido e mítico amigo.

Pelé e eu nos conhecíamos havia muito tempo, creio que desde o início dos anos 60, e tínhamos uma relação especial, embora distante. Se eu tivesse o dom da bola, certamente seríamos uma dupla de entrosamento excepcional. O abraço que dei nele, entretanto, foi menos caloroso do que minha saudade esperava. Ou melhor, o que eu julgava como ausência de calor era justamente a chama de seu espírito me fazendo sentir que alguma coisa não estava bem. Pelé sempre foi criatura de muita sinceridade nos gestos, provas disso são seus mais de mil gols. No seu rosto, vi um sorriso lutando contra as bochechas para existir, e dois olhos fazendo esforço para se esconderem. Não consegui trocar muitas palavras com o Rei, pois logo seu cargo de figura pública o convocou para atender aos compromissos com outras autoridades. Compreendi, mas me decepcionei um tanto. Jamais iria pensar que aquele não era mais o mesmo Pelé, ou que nossa amizade tinha ficado no passado, mas fiquei de longe observando-o e refletindo sobre as coisinhas mais simples da vida, como as mudanças. Meu amigo ali, posando para as fotos, e tendo o sorriso desfeito nos instantes em que as luzes dos flashes deixavam de lhe tocar o rosto. Não podia lamentar por ele, afinal, eu já tinha aprendido a não ser teimoso com o destino. No meio desses pensamentos, recebo um beliscão nas costas, acompanhado por uma voz inconfundível:

— É você que é o tal do Michael Jackson, rapaz?

Era Renato Aragão. Toda a força que meu abraço não pôde ter com Pelé foi aproveitada no apertaço que dei no nosso grande Didi Mocó. Que alegria. Como Daniela Mercury só viria a ser empossada como embaixadora no final do ano, Renato Aragão era o único embaixador oficial da Unicef no Brasil. Honra concedida devido a suas ativas colaborações, sobretudo no Criança Esperança. Dei-lhe os muitos parabéns e depois de uma boa conversa eu comentei sobre o que estava refletindo a respeito de Pelé. Meus olhos se encheram de lágrimas, eu estava tomado por uma imensa nostalgia brasileira. Foi quando Renato me disse:

— Waleluia, eu estava com o Pelelé mais cedo, antes de começar a festa, e ele chorou nos meus ombros, rapaz. Mas vou te dizer o porquê: hoje a mulher dele vai fazer um show, e aí ele tá assim triste porque não vai poder assistir. Ela foi cantora de igreja há muito tempo, e agora tá voltando a cantar, essas músicas Gospel. É o primeiro show dela. E o Pelé, coitado, você sabe que o casamento com a Rose acabou porque ele não conseguia estar presente, e agora com a Assíria ele tinha prometido pra si mesmo que seria tudo diferente. Aí logo nesse momento importante pra ela, rapaz. Os dois não tem nem um ano de casados. O cabra tá todo traumatizado.

— E ele não pode ir embora daqui? — perguntei, ingenuamente.

— Como? Ele é o Pelé. Ninguém deixa o homem em paz — Fez um silêncio e depois completou: — Olha, o que eu acho é que todo rei no fim das contas é um escravo.

Podia ser que sim, mas ele não deixava de ser o Rei, e eu, portanto, não deixava de ser seu súdito. Eu queria ajudar, só não sabia como.

Até que em meio aos convidados da festa, Renato me apontou o grupinho do SBT que dava as caras por ali. Toda emissora de TV dava seu jeito de levar algumas de suas celebridades para esse tipo de evento. Era uma forma de afirmar prestígio e aproveitar os espaços nas revistas de fofoca para promover suas estrelas. O SBT foi representado pelo próprio Silvio Santos, acompanhado de perto por figuras como Jô Soares e Serginho Groisman, além de uma moça jovem que era então a grande promessa de queridinha da casa, a Ana Paula Arósio. Quando eu bati o olho nela, senti todas as engrenagens de minha cabeça funcionando ao mesmo tempo, lubrificadas pelas três ou quatro taças de champanhe que já tinha tomado. Aquela pele da cor de neve macia; aquele nariz e aqueles lábios da delicadeza de uma poesia; aqueles cabelos pretos, de uma absoluta ausência de luz. Tudo nela era a perfeição que eu buscava. Num devaneio certo, disse a Didi:

— Para esse povo, só um rei pode substituir outro. Aquela menina é o nosso Michael Jackson. Ela vai salvar Pelé.

Didi, com sua alma de trapalhão, observou ela com calma e sorriu. Já tinha começado a andar quando respondeu: — Então me siga.

Fomos nos movimentando calculadamente pela festa. Um tira-teima apurado mostraria perfeitamente a engenhosidade de nossa tática ofensiva. As câmeras do National Geographic teriam capturado em nossos olhos a espera ansiosa pelo momento exato em que interceptaríamos a nossa sósia do Michael Jackson. Foi só Silvio Santos se distrair com alguém, e deixar os seus protegidos livres, que avançamos na moça encostada na mesa das saladas. Depois das apresentações e de alguns contornos, Didi foi reto no assunto:

— Então, moça, eu te vi algumas vezes na televisão. Não conta pro meu patrão não que eu tô dando audiência pra concorrência. — Ela riu, Didi continuou: — Achei você muito bonita, obviamente, e muito talentosa também. Não sei se você está sabendo, mas o Boni tem conversado bastante com o Jô e o Serginho. Em off, sabe como é. A Globo tá assim interessada em trazer algumas pessoas do SBT, e eu estava falando ali com Waly que você tem tudo a ver com o Projac. Você tem a cara da Globo, me entende?

Naquele momento, os olhos de um ser ambicioso se revelaram. Brilharam e denunciaram a inteligência de uma atriz iniciante. Afinal, nenhum jovem ia para um tipo de evento como aquele só para tomar champanhe e ouvir sobre as criancinhas de países subdesenvolvidos. Aquilo era um cassino de oportunidades para os verdadeiros cobiçosos, e Ana Paula Arósio era a grande sortuda da noite. Didi prosseguiu:

— Só que acontece o seguinte, Ana Paula: pra eu conseguir te ajudar nisso, eu preciso que você me ajude numa coisa antes.

— O que for preciso, Seu Renato — respondeu prontamente a atriz

E aí Didi explicou todo o plano. Ele daria a chave do seu carro para que eu e Ana Paula pegássemos os figurinos que ele guardava no porta-malas e montássemos um Michael Jackson da melhor forma possível. Depois eu dirigiria até a frente do palácio, de onde Ana Paula desceria do carro, e viraria a esquina para esperar até que Pelé, ciente do plano, conseguisse sair pela lateral direita do prédio, em meio ao tumulto, e entrasse no carro. Depois, daríamos a volta no quarteirão e pegaríamos Ana Paula Arósio, que iria ter saído pela lateral esquerda do palácio, depois de passar no salão fazendo o alvoroço. Só precisávamos ser rápidos para que Silvio Santos não percebesse o sumiço de sua atriz.

Estava tudo certo. Didi nos deu a chave do carro e foi usar sua credencial de embaixador para conseguir um espaço com Pelé, e avisá-lo do plano. Saímos Ana Paula e eu, e ardidos de pressa em direção a garagem. Mas antes cabia a mim atuar como um personagem fundamental da trama: uma autoridade qualquer. Era simples, bastava ser firme e flexionar algumas consoantes em tom de raiva. Dizer tudo em tom de ordem, até um Por Favor. Procurei pelo segurança mais frágil. Intuí que seria o baixinho que piscava os olhos numa frequência maior. Cheguei muito perto dele e lhe disse como se contasse um segredo:

— Camarada, eu sou da organização do evento. O Michael Jackson está chegando dentro de dez minutos. Eu preciso que você reúna imediatamente dez pessoas para fazerem a segurança dele até o palácio, e o conduzirem até a saída da esquerda, entendeu? Adiante.

Estava feito. Eu tinha dado àquele homem o poder de uma grande responsabilidade. Ele saiu com seu walk talkie mais poderoso que qualquer autoridade naquele palácio. Pronto. Já no carro, eu e Ana Paula Arósio abrimos o porta-malas imenso do Opala de Didi e começamos a revirar as pilhas de sacolas com vários e vários de seus figurinos. O grupo de seguranças já deveria estar posicionado para a nossa chegada, já que certamente demoramos mais do que dez minutos para montar um Michael Jackson decente. Conseguimos luvas vermelhas, um chapéu preto com um penacho no topo, indispensáveis óculos escuros, e um belo conjunto de jaqueta e calça dourados. Para os pés só achamos um par de botas de boiadeiro, que torceríamos para que não fosse descoberto por ninguém. Mesmo naquela situação, Ana Paula Arósio precisava ficar de cabeça baixa o tempo todo, e cobrindo o máximo que pudesse o seu rosto com as mãos. Ao todo, a operação não deveria durar mais de dois minutos, o tempo limite de uma boa ilusão.

Entramos no carro e fomos em direção ao grande momento. No banco de trás, a atriz já estava completamente entregue ao personagem que carimbaria o seu passaporte para a Rede Globo. Os seguranças de fato já estavam posicionados, e pareciam estar em maior número que os dez que eu havia solicitado. Certamente alguns outros fizeram questão de sair de seus postos, já que, imagino eu, proteger Michael Jackson do assédio de deputados do PSDB deve ser o auge da carreira de qualquer segurança brasileiro. Aquele grupo de homens uniformizados já estava chamando a atenção das pessoas presentes na frente do palácio. Era a hora. Parei o carro e o segurança baixinho veio prontamente abrir a porta traseira. Nosso Michael Jackson saiu e não foi necessário nem começar a andar para que a primeira pedrinha rolasse e desse início à avalanche. Antes de acelerar o carro, ouvi um grito:

— É o Michael Jackson!

Fui embora. Enquanto contornava o palácio eu ia acompanhando pelo retrovisor a destruição que eu havia provocado só para que Pelé pudesse assistir a um show Gospel. Em menos de vinte segundos eu já tinha afogado todos planos diplomáticos de Fernando Henrique Cardoso. Como um grande corpo maciço, Ana Paula Arósio ia atraindo os corpos pela passarela e criando uma massa humana que até o portão do palácio poderia já estar do tamanho de um planeta. Havia pessoas tropeçando e caindo no espelho d’água, subindo umas por cima das outras. Será que imaginavam que vendo o esforço que faziam, Michael Jackson faria como Jesus fez com Zaqueu, e tiraria uma tarde para visitar suas casas? Não sei. Encostei na lateral do prédio, de onde já não podia visualizar a via crucis, e não precisei esperar quase nada até que o verdadeiro Rei viesse correndo, livre, e entrasse no carro. “Mete o pé”, foi a única coisa que disse, e saí em disparada para o resgate da atriz. O cálculo tinha sido exato. Quando chegamos do lado esquerdo do palácio, Ana Paula Arósio vinha correndo, completamente descaracterizada — sem luvas, sem chapéu e, inexplicavelmente, sem as botas de boiadeiro — e seguida por uma procissão infernal de fiéis. Pelé se apressou em deixar a porta aberta para que num mergulho a atriz se enfiasse dentro do carro e fugíssemos do local, não sem antes passar por cima do pé de algumas pessoas e atropelar um senhor que no momento jurei ser o ACM.

No carro, só conseguíamos rir. Éramos três em puro êxtase de satisfação. No fim das contas, parecia ser a única coisa que eu buscava com aquilo tudo: um momento de diversão, mesmo que breve, com um velho amigo. Ele me perguntou da minha família, das coisas da minha vida, e lhe respondi que tudo bem. Não conversamos mais muita coisa. Chegamos no templo e ele desceu do carro, e o que me disse na despedida é um segredo que quero guardar pra mim (não sei se Ana Paula Arósio chegou a contar para alguém). Mas posso dizer que duas coisas ali ficaram certas: que o tempo passa, e que sou um caçador de juventude. Quando Pelé entrou no templo, eu e Ana Paula Arósio, toda de dourado, fomos comer cachorro quente.

Pelé, eu ainda sinto saudades.

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