#tbt —o dia em que Ariano Suassuna consagrou Romero Britto

Waly Ferré
brasil LOVE
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8 min readOct 8, 2020

Dia 8 de Outubro é dia do nordestino, e o #tbt de hoje é especial porque além de celebrar esta importantíssima data, aproveita para comemorar o aniversariante do dia 6, o grande e internacional, meu amigo Romero Britto.

Foi assim: era bem no início dos anos 70. Se fosse pra chutar, diria que foi em 1971. Não vem ao caso. O fato é que eu estava em Salvador e recebi um convite para um evento no Recife, promovido pelo Conselho Federal de Cultura, escrito a punho pelo então reitor da Universidade Federal de Pernambuco, Doutor Murilo Guimarães. Tratava-se de um intercâmbio cultural entre os estados do nordeste, idealizado por Ariano Suassuna para apresentar e difundir as diretrizes estéticas do que ele chamava de Movimento Armorial.

Já naquela época esse tipo de coisa não me entusiasmava mais. O exílio de Caetano e Gil tinha deixado um vazio danado em mim. Por mais que a gente segurasse a barra por aqui, nada havia de novidade que matasse a fome de sonhos que eles tinham deixado. Era como se tivesse ficado só o cheiro de uma pizza da qual não se havia terminado de comer nem o primeiro pedaço. O show de Gal, por exemplo, o Fa-Tal, vi umas cinco ou seis vezes, tinha nem mais graça. Povo peludo andando de microssunga em Ipanema já era mais demodê que a própria Garota de Ipanema. Agora imagine um evento universitário encabeçado por Ariano Suassuna. Até um jantar com Garrastazu Médici seria mais leve e descontraído. Mas como o então presidente não me convidou, não havia álibi para fugir dos pernambucanos. Seria de uma indelicadeza enorme recusar o convite.

Nossa comitiva baiana tinha em torno de vinte e cinco pessoas, desde Capinan até Mário Cravo Júnior, portanto, no mínimo, a conversa boa estava garantida. Na viagem, o assunto era o tal projeto do Movimento Armorial de Suassuna, um negócio sobre construir uma expressão erudita baseada nas tradições populares nordestinas. A ideia era até interessante, mas o que se comentava era da paranoia de Suassuna em torno dela. As histórias eram variadas: João Ubaldo contou que aguentou quatorze horas de pregação contra Walt Disney no telefone; Smetak mostrou uma carta em que se lia que ele só inventava aqueles instrumentos boçais porque era um gringo que não tinha competência para tocar uma rabeca. Ríamos de tudo. Afinal, sabíamos que aquilo fazia parte do carisma intenso de Suassuna, e que acabava sendo o grande atrativo do evento.

O evento em si durou a semana inteira, e o melhor testemunho possível de seu conteúdo está integralmente colocado na obra de Ariano Suassuna. No fim das contas, foi de fato mais proveitoso que jantar com um ditador militar. Mas o episódio em especial que quero destacar aconteceu na sexta-feira, num dia em que fomos levados a uma escola pública, onde estavam desenvolvendo um desses projetos culturais com as crianças, com teatrinho, coral e violinos. Um dia lindo, recheado de alegria. No meio das muitas atividades, havia a oficina de pintura onde a professora ensinava artes plásticas aos pequenos. Suassuna estava lá, junto a Brennand e mais um tanto de gente que não dá nem pra começar a listar. Estava eufórico. Discursou orgulhoso, garantindo que dali sairiam os maiores artistas plásticos do Brasil, e consequentemente do mundo. Encheu a boca para dizer que a arte pernambucana não só estava apossada de suas raízes, como já produzia os suculentos frutos de seu futuro. Coisa de Pernambuco. E confiante de suas promessas, propôs que as crianças pintassem cada um dos convidados dos outros estados ali presentes. Propor é até uma palavra delicada, porque Suassuna ia mesmo puxando cada um de nós, e nos distribuindo pela sala. Só faltou nos sentar nas cadeiras. Acabou me colocando no fundo da sala, de frente para o fundo de uma tela que só deixava revelar, por cima dela, um cabelinho sarará.

A sala já estava tomada pelo silêncio atencioso do trabalho das outras crianças, enquanto que a minha, da testa para baixo, permanecia escondida. Olhei para o lado e vi que só para pintar a cabeça de João Ubaldo uma menina precisou desenhar um balão que tomava metade da tela. Dei risada, a menina era realmente sensível. E quando enfim voltei os meus olhos para frente, outros dois olhinhos já estavam me esperando, embora rapidamente tenham se escondido assim que os encontrei. Entendi que deveria ficar de olhos baixos por algum tempo, até que aqueles se acostumassem com os meus. Foi o que fiz. Quando voltei a levantar a visão, eu já estava sendo pintado. Perguntei:

— Qual o seu nome?

Um múrmurio.

— Não ouvi.

— Romero.

— Romero? Que nome lindo.

Foi a única coisa que conversamos durante a pintura. Ao todo, não deve ter durado mais que uma hora. Suassuna ia passando de tela em tela, mostrando aos colegas os incríveis feitos de seus prodigiosos pupilos. Um grande pai coruja, nunca o vi tão jovem. Brincou que a cabeça de Ubaldo tinha até ficado pequena, e que dá próxima vez daria o muro da escola para a garotinha pintá-la propriamente. Sempre arrancava risos. E ainda estavam todos a sorrir quando chegaram para contemplar a obra que o pequeno Romero tinha feito. Aí, o sorriso derreteu. E a expressão do velho Suassuna voltou a dominar aquele rústico rosto sertanejo.

— Que diabo é isso, menino?

— É o rosto do tio, Seu Suassuna.

— Ói, se esse cabra que é até bem apessoado tu pintou parecendo um jumento parindo ostra, eu não quero nem ver o que você vai fazer com a minha cara. Tua mãe bota pra tu ouvir os “Bítous” é, meu filho?

De novo o humor de Suassuna arrancou algumas boas risadas, mas agora abafadas pelo silêncio constrangido do menino. Para tentar consertar um pouco o momento, pedi para ver o quadro, e o pequeno Romero, com a alma já ausente de tanta vergonha, quase não teve braços para virar a tela para mim.

Vou dizer com sinceridade a primeira coisa que pensei: simplesmente, a imagem mais horrorosa que eu já tinha visto em toda a minha vida. Depois, todos os outros pensamentos foram meros desdobramentos dessa certeza. Era tanta feiúra que perdi a fé na humanidade. Porque, vejam bem, o senso comum sempre afirma a pureza das crianças, e a sua capacidade angelical de enxergar o mundo livre de maldades. Então se aquilo era um espelho do que eu tinha de mais puro, o que mais eu poderia pensar? Só me restava torcer para que o mundo fosse consumido em pecado e que só restassem os olhos que me vissem da forma mais corrompida, poluída e maligna possível. Fiquei puro amargor. Preocupado com o futuro da minha autoestima, nem tive tempo de elaborar alguma palavra de conforto ao menino, e Suassuna continuou com sua irrefutável razão.

— Qual o pintor que tu se inspira, meu filho?

— Pablo Picasso, Seu Suassuna.

— Menino, então é bom você passar longe de um tal de “Êndi Uórro”, porque se isso aí você tá dizendo que é Picasso…

Eu precisei intervir. Poxa, a criança tinha dedicado um tempo naquilo. Era difícil de acreditar, mas devia haver esforço e carinho investidos ali. Como não podia ser leviano em minha defesa, raciocinei rápido para juntar alguns pedaços de argumentos minimamente coerentes para conter o severo Suassuna.

— Olha, eu achei o conceito bom. Até me lembrou um pouco de Anita Malfatti. E eu adoro coisas assim coloridas. Os corações no cabelo, também achei interessantes. Só acho que precisa de aperfeiçoamento técnico, que virá naturalmente com a prática…

— Conceito? Era só o que me faltava. Esses baianos cabeludos tem mania de dizer que gostam de tudo, pra se sentirem os homens mais modernos e vanguardistas do mundo. O outro lá mesmo, o Veloso, tá até cantando em Inglês, parecendo um sariguê fugindo de cobra.

Sempre muito generoso e atento, Brennand não deixou o amigo cometer a injustiça. Pontuou sorrindo: — Mas eu soube que você chorou ouvindo ele cantar Asa Branca, hein companheiro?

— Chorei mesmo. Eu não tenho vergonha de admitir não. Porque aquilo sim era brasileiro de verdade. E quando é bonito assim eu choro mesmo. Agora, cantar em inglês, cantar música falando de Cola-Cola, de Batman… Vou dizer uma coisa: lá em Taperoá, se um sujeito aparece vestido de morcego o delegado prende na hora, porque lá não tem hospício. E pra você ver como é coisa de doido, se o herói do gibi é um homem que se veste de morcego, o vilão se veste de quê? De lagartixa? O lagartixaman. Aí ficam achando isso normal e vão ensinando para as crianças, e dá nisso.

— Mas Suassuna, o menino não tem nem dez anos — insistiu Brennand.

— E eu tenho quarenta e quatro. Perdi meu pai com três, e ninguém nunca passou a mão na minha cabeça não. Quando fiz seis anos eu escrevi meu primeiro cordel. Rimei abóbora com dobra e quase apanhei de bambu. Eu estou falando isso pelo bem desse menino, porque o povo nordestino não pode aceitar as coisas feitas sem seriedade e comprometimento. — E olhando fundo para o menino quase petrificado, acrescentou: — Onde você quer chegar com essas coisas, meu filho?

Romero estava na beira de bater uma continência. Mas sem desviar os olhos de seu superior, respondeu: — Eu quero colorir os carros de polícia, Seu Suassuna.

A tal pureza da resposta das crianças. Olhei para os que estavam em volta, e percebi que sentiam o mesmo que eu. Uma felicidade boa. Só não sorrimos por respeito ao homem desarmado que torcia a cara ainda absorvendo o golpe. Ariano Suassuna, parado, parecendo, além de velho, um homem imundo em contraste com o sonho infantil de uma viatura colorida. Restava ainda com ele, porém, a autoridade, e com ela o dever de ter a última palavra: — Pois só se for a polícia dos Estados Unidos, porque aqui você não pinta nem carroça. — E saiu, levando consigo a sua tropa.

Antes de ir, examinei melhor o garotinho. Reparei nas bochechas enormes, no rosto quadrado. Ele também me examinou, mas não sei o que chegou a reparar. Senti que se ele me pintasse de novo naquele momento o resultado já seria um tanto mais bonito. Pelo menos os olhos ele talvez conseguisse fazer mais juntos. Depois de nos examinarmos, ele me perguntou: — Tio, onde fica os Estados Unidos?

— Fica lá em cima.

— No céu?

Não podia responder outra coisa que não: — Sim.

— Então é pra lá que eu vou quando eu ficar grande.

— Tenho certeza. Você pode assinar o quadro pra mim, antes de eu ir?

E com o primeiro giz de cera que encontrou na frente grafou suas iniciais. Perguntei: — O “B” é de quê?

— Britto, com dois Tês.

Nos despedimos, e o resto é história.

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