FOLHETIM: Uma em Mil — Capítulo Piloto

Gabriel Lima
brasil LOVE
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8 min readSep 15, 2020
Ilustração de Axoloti Kerope

CAPÍTULO 1: Revista

Outro dia, estava sentada na praça de alimentação de um shopping mastigando uma mistura confusa daquelas que a gente monta nos bandejões de comida a quilo, quando notei uma senhora de meia idade me olhando estranho. Aquilo pareceu uma premonição, um dejavú às inversas. Era como se aquele momento fosse um portal na história e unisse o fim e o início de tudo. Aquela mulher me olhava como se me conhecesse, como se quisesse conter a sua admiração e constrangimento por me ver naquela situação. Não sei dizer se o sentimento que me invadiu foi o de orgulho ou vergonha.

Naquela altura, eu era uma vendedora de uma loja de cosméticos que superlotava nas quintas-feiras, quando “toda linha de reconstrução capilar tinham um mega desconto de 30%”. Me espremia entre as bundas enormes das cabeleireiras locais e desviava dos ataques voluntários e involuntários do mega-hair das bichas para fazer valer aquela pergunta maldita que a camisa pichava em minhas costas, “Posso ajudar!?”. O lugar cheirava a chulé e acetona. Vivia com meus cabelos presos para fugir do calor e para evitar que aquela atmosfera me acompanhasse até em casa. Meu horário de almoço era de uma hora, mas gastava mais da metade do tempo na fila do restaurante; muitas opções, mas poucas que por quinze reais me davam comida o suficiente para descontar a minha insatisfação. O trabalho e a rotina torturavam a minha pele, minhas expressões e meu humor. De repente, o olhar familiar daquela moça. O tipo de coisa para qual não estamos preparadas. Ela me viu, sorriu, comentou com uma menina mais jovem, provavelmente a filha, que me encarou tentando disfarçar. Depois disso, mergulharam as duas em uma nuvem de cochichos, risadinhas e olhadelas. Terminei de engolir o que estava no prato, tomei o último gole de refrigerante, limpei a boca e recolhi a bandeja. Precisava fazer alguma coisa, caso contrário, seria uma eterna desconhecida.

***

Se uma árvore cair no meio da amazônia e não for vista por ninguém, se nem seu barulho for escutado, nem os danos da sua queda vistos, nem vestígios da sua existência forem encontrados, essa árvore realmente existiu?”

E de repente, minha vista tinha abandonado a paisagem da janela e estava agora concentrada na cara da freira irresponsável que tinha me forçado a pensar naquilo. Era óbvio que ela não tinha dimensão real da profundidade do que tinha falado. Só repetia com a cara irônica e convencida o que alguém muito mais inteligente tinha lhe dito. Mas isso não vem ao caso, o fato era que minha vida tinha mudado.

Sentei no intervalo na companhia de um sanduíche que fiz sumir entre os dedos enquanto constatava que naquele mundaréu de meninas que riam e gritavam só três realmente existiam. Melissa era rica, loira, bonita, disciplinada e orbitada por um complexo de meninas que buscavam a sua aprovação. Na ausência de garotos, eram os sorrisos dela que arrancavam suspiros e faziam valer a vida das internas. Mesmo com toda dor da inveja, seu português claro e seu hálito de menta tinham cadeira perpétua no imaginário de todas. Da mesma forma, por uma métrica inversa, Joana era inesquecível. O tipo de figura que expressa a maldade na mesma dimensão da feiura. Ainda hoje levo a mão no braço, onde ela, certa feita, pegou. Um daqueles flashes que brotam na mente como um grito e a gente luta pra apagar. Era uma menina que deslizava pelos corredores espalhando aquele cheiro injustificável de peixe por onde passava. Uma lesma que tornava a biblioteca um campo inabitável e que punha em imediata quarentena a todas que tocava. A outra era Andreia, uma menina de cabelos crespos e olhar atento que gargalhava alto e se misturava no meio das outras. Andreia liderava revoluções, pulava muros para se encontrar com meninos de outras escolas, tinha o carinho e cumplicidade da maioria das internas e das freiras, mas sofria com o peso da formalidade da disciplina. Todo o resto, eram rostos apagados que só ganhavam relevância como testemunha dos fatos protagonizados por alguma delas. Todo resto, menos eu.

***

Sonhava com flocos de neve quando fui acordada por pingos d’água. Acabei dormindo de janela aberta, ou Flávia abriu pra fumar e se esqueceu, ou alguém tinha entrado e roubado tudo de novo. Não sei. Me lembro só que estava chovendo. Coloquei o corpo pra fora, tentando buscar as bandas da janela que, por pouco caso de quem fez, abria pro lado errado, quando, sem querer, flagrei uma discussão esquisita da vizinha de baixo, manicure, com uma colega de Flávia que vinha chegando do trabalho.

— Que nada! Eu quero mais é que ela saia! Mulher insuportável, nojenta.

— É porque você não vê a injustiça que aquelas duas ficam armando pra ela!

Era um pé d’água tamanho que fazia sumir a Igreja da Nossa Senhora da Piedade, que devia ficar a uns duzentos metros da minha casa e era do tamanho de um shopping, mas as duas pareciam não ligar. Uma garota de programa cansada, voltando do serviço e uma manicure com quatro filhos, gritando fofocas desconexas no meio de um toró. Hoje consigo entender, mas na época, só me chamou a atenção da amiga ter voltado sem Flávia. Cheguei a planejar um grito, mas não ia ter como disputar com a chuva e com aquela algazarra. Antecipei a derrota e só fechei a janela.

Era um quarto e sala desarrumado, sem rádio e com uma televisão quebrada. Potes de creme, baganas, revistas e calcinhas emboladas por todo lado. O tipo de sentença que te ameaçam quando você se recusa a morrer sem ser alguém. Em todas as tentativas até ali, tinha fracassado. Doía, mas sentia, no fundo, que era o tipo de derrota que antecede o sucesso.

Perdoem minha falta de pudor com termos tão resolutos como “sucesso” e “ser alguém”, mas é o tipo de pungência que sinto falta no meu vocabulário de hoje. Parece que, com o passar dos anos, o medo e a decepção vão arredondando nossas ideias e, aos poucos, nos tornamos incapazes de talhar a vida. Quando vemos, estamos inofensivos e derrotados, confundidos com uma multidão qualquer que, sob o mando e desmando de um subsecretário de um subgerente de uma pessoa que realmente importa, nos diz o que devemos fazer. O tipo de desastre intolerável para mim. Preciso desse espaço para afiar as unhas. Peço sua tolerância e conto com sua generosidade.

Esse dia foi um dia importante, lembro realmente de quase tudo. Mesmo sem chuva, era hábito cobrir a farda da loja com um casaco. Uma forma de evitar as cantadas redundantes e fazer sumir aquela cruz das minhas costas. Os cabelos seguiam igualmente presos, agora por outro motivo: encolher a minha existência. As ruas do Centro, eram e ainda são horríveis para se caminhar. Em dias de chuva, é indispensável o uso de sapatos. O tipo de coisa que só quem passou sabe. Aquele abre e fecha de guarda-chuva para passar entre o poste e o ambulante, os trechos absolutamente alagados, os carros que esparramam água, os cachorros, os mendigos e a impossibilidade de acender um cigarro. No caminho, parei numa barraca pra ver as capas da semana. Com os anos, tinha desenvolvido um método pra maximizar meu desempenho naquela atividade. Primeiro, me desfazia do atendente da banca pedindo sete chicletes, cada um de um sabor e pagando com uma nota de um real. Assim que ele se afastava para pegar o troco e os doces rompia o diálogo, para evitar que roubasse meu tempo falando besteiras. Em seguida, corria o olho em tudo, da esquerda pra direita, de cima pra baixo. Comparava com a última foto mental e excluía as revistas antigas. Em seguida, excluía todas as especializadas em gastronomia, saúde, decoração, arquitetura e religião. Por fim, pinçava somente as novas que se dedicavam a tratar sobre figuras públicas, o que geralmente dava umas dez, e tentava encontrar o que havia em comum entre elas. Chamava isso de “leiturinha”. Era uma forma de buscar saídas. Tinha poucos recursos desde a última queda e não era prudente desperdiçar energia e tempo com empreitadas injustificadas. Oito das dez revistas tinham tons claros e detalhes cor de aço, estampavam o rosto choroso de uma mulher e traziam a sigla com três letras “BBB”. Enquanto recebia o troco e os chicletes, selecionei a que reunia mais elementos que apareciam dispersos em outras: dimensão das letras, ângulo da foto, termos chavão. A escolhida foi uma “Quem”. “Glayse, injustiçada ou vilã? Entenda a trajetória da BBB”.

— Essa tá quanto?

— Onze e noventa. — Abri a bolsa, flagrei o abismo de uma nota de cinco abraçada com uma nota de dois.

— O senhor sabe o que é esse BBB? — O tipo de pergunta que é difícil de acreditar que um dia eu já fiz.

— É tipo um programa da Globo. Fica todo mundo preso na casa, sendo filmado. Baixaria. Quem ganhar, eles dão um milhão. Mas o povo tá vendo. Tá saindo muito aqui, principalmente a Gente, que fez entrevista com os pais da moça.

— E como ganha?

— O povo liga e vota.

— Certo. O senhor me empresta seu isqueiro?

Passei a primeira metade do expediente colhendo informações com colegas de trabalho. Era como se finalmente estivesse reparando que aquelas pessoas estavam ali, que elas falavam, pensavam, eram mais do que um estorvo entre eu e a demanda de outros fantasmas que me pediam para buscar produtos. Fiquei próxima de uma bicha loira que rodava sobre os assuntos como um peru tonto. Ela parecia ficar empolgada com minha atenção. Recortando e reformulando as frases passionais dela, consegui entender a estrutura do programa. Estava no ar há duas semanas, era transmitido pela Rede Globo, protagonizava anônimos e tinha como apresentador um jornalista com pinta de intelectual. Ia além das oportunidades que estava procurando.

— Eu te vendo meu vale-refeição por dez reais.

— É o que, menina, tá doida?

— Não. Preciso do dinheiro. Te vendo por dez.

— E você vai almoçar o quê!?

Cigarro. Foi difícil conter aquela vontade de fugir pra banca depois de ter o dinheiro. Batia os pés sem parar. O segurança do shopping me olhava como quem quer puxar assunto, mas deixei escrito no olho que ele morreria eletrocutado se chegasse mais perto. Estava a mil por hora.

Tive que aturar a ladainha da bicha até o horário de saída. Me consolava o fato dela ter sido útil em algum momento, mas afligia a possibilidade daquela demanda de atenção se tornar uma constante. Se fosse o caso, teria que procurar outro emprego. Precisava da minha mente mais do que nunca. Fingi que não ouvi ela me perguntando onde morava e, numa despedida apressada, me perdi no meio da muvuca que se forma no final da tarde no centro da cidade. Precisava mesmo correr. As ruas molhadas agora pareciam um cenário promissor, o tipo de coisa que a gente relata no futuro pra mostrar que nada foi fácil. Alcancei o barraqueiro ainda aberto e recuperei a minha revista. Notei que estava com muita fome quando abri pra dar a primeira folheada e vi as letras embaralharem. Pra ler, precisava comer.

Houve uma época que com cinco reais você conseguia comprar pão e café. Subi as escadas do prédio com medo de desmaiar, senti cheiro de mato queimado na porta de casa e, com muita dificuldade, acertei o buraco da chave.

— Trouxe bolo, guria.

Flávia estava sentada na janela, tinha uma revista em uma mão e um cigarro de maconha na outra. No chão, todas as oito revistas que havia listado na banca e um bolo de chocolate partido em fatias dentro de um prato. Larguei a sacola e a bolsa do lado da porta, joguei o casaco por qualquer canto, ajoelhei e comecei a comer. Ela não se espantou nem fez nenhum comentário inútil, só, como sempre, entendeu. Era a minha única amiga. Além de mim, num raio de muitos quilômetros, a única pessoa que existia. Depois de três fatias, sentei. Puxei a revista de dentro da bolsa e ela sorriu.

— Tu sabe que agora nós vai ter que consertar a TV, né?

Olhei pra aquela tela preta e me vi refletida.

— É, tô sabendo.

***

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Gabriel Lima
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Formado em porteiro e vigia pelo SENAC. O nome do meu professor era Fredson. Gente boa, o Fredson.