Quem somos

Oi

Revista Chão
revistachao
3 min readDec 16, 2019

--

[Quando era pequena, chamava estrada não-asfaltada de “estrada de terra”. A minha rua dava em uma e foi lá que eu aprendi a andar de bicicleta, empinar pipa, jogar bolinha de gude e basquete. Porque meu pai nunca viu em nós 3 meninas. Via três crianças. Hoje meus pais não moram mais lá. A estrada de terra não está mais lá também. E sigo procurando outros lugares onde possa existir com um passo solto. Andando por outras estradas de terra, encontrei pessoas que chamam elas de “estrada de chão”. É bonito porque não é mais uma estrada feita de terra, é um chão que forma uma estrada. “Do chão não passa”, meus pais diziam quando a gente inventava umas brincadeiras desgovernadas, sem regras muito bem definidas. Só bem depois fui descobrir o que queria dizer: o pior que poderia acontecer é que a gente ia cair. O que não faz sentido, porque todo hipocondríaco sabe que o pior que pode acontecer é cair e bater a cabeça. E o melhor que pode acontecer é: do chão fazer seu passo.] Ceci

[Do chão fazer seu passo. Soou até como desafio, mas não por querer ou por conveniência ou até desobediência como seria tentador dizer. Mas porque a vida levou, de grão em grão até semear o chão que se fez caminho, rua e beco com saídas obscuras. Um mapa se abriu, se fechou e cá estamos. O bom é saber que em ovos não: esses sim não pisamos, certeza. Pisamos num chão duro, incerto, concreto, mas de terra — essa que une não importa o passo solto ou oceano vasto. Chão imenso nem sempre sentido, mas que sem ele, estrada não há.] Gabi

[E é grave isso de juntar pessoas e juntar caminhos. E se os caminhos forem tão diferentes a ponto de mais nos perdemos do que nos acharmos? Se cada migalha de pão faz João e Maria ficarem mais longe de casa, cada palavra de um texto coletivo é uma migalha para fora de si. É grave, meus amigos, é grave. Mas não vamos esquecer: é justamente a gravidade que te prende ao chão. Se é assim, só temos que agradecer aos corpos que se atraem, e nos conectam ao que é firme, e também nos conectam entre nós, através do que é firme.] Raquel

[Um coração na areia da praia. Indianos sobre brasas. Você pode ter drones ou jatinhos, pode ver tudo de cima, até mesmo a capela sistina, mas você só vai entender a capela sistina se estiver com os pés no chão. Alguma música já disse, ou alguém aconselhou, como tocar as nuvens com os pés no chão, ou cabeça de vento cuidado para não sair voando por aí. A história dos tijolinhos/pisos paulistas. Olha esse pé no chão, vai dar cólica. Olha esse pé no chão, vai gripar, menina. Senta com a perna fechada. Monwalk. Sapatilha de ponta. As ondas nas calçadas cariocas. Os mapas nas calçadas de São Paulo. Os pampas gaúchos. Rampas de acessibilidade. Um casal deitado no asfalto, beijos no caos. Calçados impermeabilizados para solo cimentado. Tacos e porcelanato para a classe a. Carpete era moda nos anos 80. A cera vermelha na cozinha de dona Meire, e pares de pernas penduradas no sofá, lambuzando os dedos na batata frita. Festas amanhecendo, pessoas despencando na escada abaixo de ardósia do quintal. Não pode jogar lixo no chão. A lei dos 5 segundos, se uma comida cair no chão você pode pegá-la em até 5 segundos sem pegar bichêra na boca. Documentário Ilha das Flores. Demarcação de terras. O metro quadrado mais caro do mundo. Uma chuva de verão molhando um jogo de amarelinha.] Jordana

Jordana mora em Taboão de Serra, Raquel mora em Irajá, Gabi mora em Londres e Ceci em Campinas. Definitivamente não pisamos nas mesmas terras, ainda que, como já dizia Dona Ivone Lara, alguém nos avisou pra pisar neste chão devagarinho. Acho mesmo que, se não passamos pelos mesmos lugares, passamos por eles do mesmo jeito.

[Revista Chão Dezembro/2019]

--

--