Bom e velho carteado

Revista Chão
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4 min readJun 30, 2020

Nasci com metade dos avós a que tinha direito. Minha vó materna tinha morrido muito anos antes, de câncer de mama. Meu avô materno era vivo, mas não um vivo perto, um vivo longe. Meu avô paterno morreu antes que eu me entendesse por gente. Sobrou minha vô materna, que não lembro se já conheci com Alzheimer, ou se depois que saiu o diagnóstico, a doença se espalhou também para o passado. Das lembranças que tenho dela, uma das mais vivas é a de quando eu, uma criança sem idade definida porque a minha memória tem seus lapsos também, tentei ensinar ela a jogar truco. Eu gostava mais de buraco, mas achei que o truco teria mais chances de ser assimilado, devido ao menor número de regras. Ficamos lá a noite inteira. Minha mãe passava pela sala de quando em quando, e, quando fomos dormir, falou “você é uma criança que tem muita paciência”. Eu não sei se concordava. Não parecia justo, estava me divertindo. Pouco tempo depois, ela morreu sem saber jogar truco. Quando vejo pessoas que puderam passar mais tempo com seus avós, fico pensando no tanto de emoções que eles viveram e chamaram de outra coisa.

Desde que eu nasci o meu avô já era aposentado e com cabelo branco, naquela época era muito jovem que se aposentava. A minha avó, dona Amélia, é que começou a trabalhar lá pelos cinquenta anos quando finalmente conseguiu terminar os estudos — estudamos juntas. Passei algumas tardes jogando carta com o vô, ou melhor, jogando escopa (também conhecida como escova). O meu avô parecia saber todas as regras do jogo porque volta e meia aparecia com um garrafão de vinho sem rótulo fruto de algum jogo no boteco da esquina. Sentados na mesinha de plástico embaixo da parreira lugar preferido das abelhas e zangões, meu avô embaralhava as cartas com maestria e eu esperava a minha vez de cortar — um clássico da sessão da tarde. É quando eu corto baralho e digo “vô, agora o senhor me ensina a roubar no jogo como faz lá com seus amigos”. Ele levantou da mesa e nunca mais tocou no assunto.

Todo fim de ano nós íamos lá pra casa da vó e do vô. Não tinha talvez ou pode ser, todo ano era certeza, todos nós, a primaiada, muito primos, muitos mesmo. Até que teve um ano que não fomos. Por que não vamos? Seu vô fez umas coisas erradas e estamos tristes com ele. Eu não estava triste com meu vô, mas se a mãe disse, então é isso aí. Passou um monte de fim de ano até que teve um ano que fomos lá de novo. Meus tios gostavam de um carteado de leve, jogavam uma canastra danada. E valia dinheiro, eu via as notas. Eu só tinha moedas então não podia jogar, porque moeda era pra criança, e notas era coisa de adulto. Era legal ver eles colocando as cartas na mesa, enfileiradas. Eu achava que era assim que os adultos brincavam de figurinhas. Adultos eram pessoas esquisitas, mas se eles tinham as figurinhas deles, então até que podiam ser gente boa. Meu vô ficou bravo de me ver ali olhando a mesa. Para de olhar isso aí, para de olhar que isso aí não é coisa pra criança. E foi me levando de volta pra dentro de casa. Emburrei. Isso é coisa pra gente errada, não fica triste. Você também faz coisa errada, e todo mundo fica triste. Ele paralisou, ficou me olhando. Não sei pra quê vocês vieram. Ele emburrou. A mãe disse que todo mundo que erra merece uma chance, por isso a gente veio, eu acho. Fiquei vendo o jogo de canastra até amanhecer.

Nem vô, nem vó, nem materno, nem paterno. Da dupla materna me separei antes mesmo de nascer, quando eu cheguei não estávamos mais no mesmo mundo. Ou talvez minha vó materna ainda estivesse, mas morreu quando eu era bebê. Então, antes de eu entender o que era vó, antes disso já não havia mais isso. Da dupla paterna posso dizer que vivíamos em mundos separados, apesar de eles não terem morrido, mas por afastamentos sentimentais e geográficos, que mais uma vez, eram anteriores ao meu nascimento. O que me sobrou de avó ou avô eram os emprestados e, pra ser sincera, acho que sempre me faltou o traquejo social para lidar com a classe sênior. Havia um prédio entre o meu prédio e o dos meus melhores amigos da infância o qual nós chamávamos de “prédio dos velhos”, que é um péssimo nome, que só poderia ter sido dado pela classe social mais perversa que existe: crianças. Nesse prédio, acho que nunca entendi o porquê, só moravam senhores e senhoras grisalhos em todos os 3 andares. Vivíamos em guerra pela mesinha pública que ficava em frente aos prédios, onde eles queriam jogar cartas e nós queríamos jogar tazo. Fico imaginando se nós tivéssemos ensinado eles a jogarem tazo, ou eles tivessem nos ensinado a jogar cartas, se quem sabe assim não teria existido paz. Ou se nós acharíamos outros motivos para conflitar como por exemplo se é justo ou não lamber a mão para virar os tazos.

[por Ceci, Gabi Favarini, Jordana Machado e Raquel Carvalho]

[a ordem dos nomes não reflete a ordem do parágrafos] [e vice-versa]

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