Buscar sonhadoramente

ou Aquilo que se planejou e o que se sucedeu

Revista Chão
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4 min readSep 1, 2020

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Bem-vindas e bem-vindos aos 45 do segundo tempo, também conhecido como último dia do mês, também conhecido como nossa hora de publicar texto na Revista Chão. Conforme anunciado com muito carinho e ansiedade na edição póstuma, a partir de agora iniciaremos uma série de textos que mensalmente contará com uma convidada especial para se juntar a nós nesse exercício louco de escrita sem autoria definida, ou em outros termos: DESCUBRA. Em agosto, recebemos com franco entusiasmo, de banho tomado e casa varrida, a fantástica Jéssica Brandelero.

Quando era criança, falava que queria ser cientista quando crescesse. E queria que meus pais me dessem de presente de aniversário um microscópio ou aquele jogo do cientista que você misturava líquidos azul e amarelo dando… verde? Eu não tenho como saber, não me foi dado microscópio nem jogo do cientista. Meus pais sempre tiveram bom senso para presentes. “Esse jogo aí, maior enganação. Caríssimo. E pra quê? Misturar um líquido no outro, só. A gente reproduz isso em casa, baratinho.” E um lacônico porém arrazoado “microscópio perde a graça”. Anos mais tarde, voltando da casa de uma amiga, maravilhada com seu recém-adquirido furby, contei tudo que o boneco fazia. E o preço. Minha não-impressionada mãe: “nossa, me dá esse dinheiro que eu faço tudo isso que esse boneco faz.” Hoje, quando vou fazer qualquer projeto de pesquisa para concorrer a editais de financiamento, escrevo em 20 páginas o que poderia ser resumido em: “me dá esse dinheiro que eu misturo líquido azul com amarelo, jogo no microscópio e descubro se robôs peludos são corujas ou se são ratos que, muito a frente de seu tempo, desenvolveram um bico para conseguir abrir enlatados com mais facilidade.

Eu soube que atravessaria o estado em tempo recorde e sem qualquer planejamento no dia da morte do vô. Acatei o pedido da família desconsiderando minha falta de compreensão sobre rituais fúnebres e parti em direção a uma despedida unilateral. Na subida e descida da serra, senti o entupir e desentupir de ouvidos enquanto um caminhão de coisas gritava dentro da minha cabeça e espalhava o cheiro de freio queimado no asfalto íngreme. Mil quilômetros ida e volta e nenhuma lágrima sequer, uma viagem toda pra pensar na morte dos que iam sem ter planejado. Dias depois chorei pra encher o mar todinho, mar esse que o vô nunca conheceu. Ele reclamava da lonjura e não gostava muito da ideia de viajar. “Estrada é traiçoeira, o tanto de gente que vai pra não voltar…”. Mas se pudesse, ele também compraria um terreninho na praia, construiria casa por lá e faria da planície a nova morada. Era o que dizia sempre que me via e ouvia falando de saudade. Herdei dele um tanto de “se eu pudesse” sem a pressa ou compromisso de realizar nessa vida.

Passava uma moça na minha rua, todo santo dia lá vinha a moça. Nossa senhora, que moça linda. Decorei os horários da moça linda, e lá ía eu no portãozinho dar plantão. Claro que ela tinha uns olhão, e me impressionava muito que ela conseguisse se equilibrar na ladeira ao som do tóc tóc do salto alto. Tinha também as mãozona ossuda, segurando o cigarro com todos os dedos bem esticados como se tivesse acabado de pintar as unhas. Evidente que tinha uma significativa parcela de identificação, porque ela usava uma redinha no coque igual a que eu usava no balé. Mas a minha verdadeira devoção era a saia, aquelas bem apertadas que vão até o joelho. A moça linda parecia uma sereia com aquela saia, dava uns passinhos miúdos, as pernas meio que à vácuo ali dentro, na minha imaginação, era a cauda dela. Somente anos depois soube que o nome desse tipo de saia se chama saia lápis. Movida pela pagação de pau desenfreada e profunda, encasquetei que eu queria ser como ela. E foi assim que desde sempre demonstrei aptidão para uma frutífera carreira na área dos planos megalomaníacos. Comecei a tentar adivinhar onde ela trabalhava, o que eu teria de fazer para conseguir o mesmo trabalho, e se fôssemos colegas de trabalho então, imagina, somente assim deus provaria sua existência. Anos regando esta obsessão. Um dia ela não passou, esperei, ela não passou. Nem no outro, e no outro também não. Descobri que ela era recepcionista de hospital. E eu virei professora, mas até hoje sonho em usar uma saia lápis.

Nublou então com certeza a praia estava fora dos planos e por isso é que não planejo nada e nem tenho interesse. Se o plano não fosse ir à praia ninguém acordaria frustrado com o céu tão cinza quanto o concreto da calçada o que faz todo mundo sentir como que dentro de uma caixa. Você olha para cima e para baixo e tudo tem a mesma cor: nublado. E logo você repete que nublado não é cor sendo que ontem mesmo colocou gelo como cor no stop e eu mais uma vez aceitei. Fecho a janela para esconder o nublado e a falta de planejamento no qual a minha vida gira em torno e logo estou convencida de que nunca gostei de praia mesmo.

E a vegetação nativa é rasteira, mas tem raízes muito profundas, são árvores de cabeça para baixo. A geologia é na sua maioria composta por quartzo — Explicava a guia na Chapada dos Veadeiros. Mas se a gente se abaixasse um minuto para examinar melhor o quartzo ela batia palmas breves: vamos, vamos pessoal, ainda temos muito pra ver! E dá-lhe andança serpenteando o curso da água, enquanto a paisagem me dava muito pra pensar. A fadiga da atividade nos músculos o cérebro tentava aliviar me transportando pro campo das ideias: será que eu sobreviveria sendo guia? Eu sei tudo sobre quartzo. Antes que eu pudesse elaborar uma resposta ou enumerar motivos, nós chegamos. A guia levanta o celular e grava seu próprio rosto: é isso aí pessoal, o melhor planejamento de Alto Paraíso! Nosso grupo foi o primeiro a chegar na Catarata dos Couros! Poderemos aproveitar essa linda paisagem sozinhos! Concluí que saber sobre quartzo talvez fosse o de menos.

[por Ceci, Gabi Favarini, Jéssica Brandelero, Jordana Machado e Raquel Carvalho]

[a ordem dos nomes não reflete a ordem dos parágrafos]

[e vice-versa]

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