Cuidado com a burra!

Revista Chão
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5 min readJan 31, 2021

Para a primeira edição do ano da Revista Chão convidamos a incrível escritora Carolina Bataier para se juntar a nós nesse exercício louco de escrita sem autoria definida. Inadvertidamente, ela aceitou.

Era meu primeiro semestre dando aula e a coordenadora me jogou logo 6 disciplinas, uma completamente diferente da outra. E chatas, meu deus como eram chatas. Herdei todas as disciplinas que os professores mais velhos se recusavam a pegar. Precisando desesperadamente de dinheiro, peguei todas com um sorriso no rosto, dizendo um “eu dou conta” firme para a coordenadora e um “eu dou conta” choroso, em posição fetal, para mim mesma, em casa. As aulas eram noturnas, me permitindo estabelecer a seguinte rotina: acordar de manhã, preparar as duas aulas da noite, dar as aulas da noite, voltar e não conseguir dormir pensando nas atrocidades que tinha falado para os alunos, levantar de manhã, preparar as duas aulas da noite e assim sucessivamente. Naturalmente, não sobrava muito tempo para planejar, refletir e praticar o bom senso em relação ao conteúdo que estava passando.

Uma das disciplinas era prática. “Edição audiovisual”. Eu sabia editar, mas fazia tudo do jeito mais antigo, ultrapassado e não-racional possível, em um software velho no meu notebook caindo aos pedaços. O que poderia dar errado? “Os alunos sabem menos que você!”, repetia internamente toda vez que entrava na sala, como um mantra inspiracional. Nas primeiras aulas, fui ensinar como sincronizar o áudio dos vídeos, aplicando o método que tinha aprendido na minha própria graduação, 10 anos atrás. Era um método braçal, trabalhoso, quase um artesanato. No fim da aula, me dando por satisfeita porque 3% dos alunos efetivamente conseguiram sincronizar o áudio, uma aluna me aborda na porta:

“Torturou a classe hoje, em prof?! Pra sincronizar meus áudios eu só seleciono tudo e uso o comando “sincronizar” no software. Ele faz tudo sozinho”.

“Mas é bom aprender desse jeito porque essa função aí do software nem sempre funciona. Agora vocês têm autonomia para resolver quando o programa te deixa na mão”.

Desde então uso a função “sincronizar” quando vou editar algumas coisa e nunca não-funcionou.

Penso no limite entre burrice, distração e crença irrefletida. Em algum ponto, essas três coisas se encontram. Certamente, dentro da minha cabeça.

Eu já entrei no trem errado e não era qualquer um. Em vez de chegar na Alemanha, fui parar numa cidadezinha no interior da Holanda numa tarde fria, com pouco dinheiro no bolso e muita fome. Viver, como diz Guimarães Rosa, é negócio perigoso.

Tem situações menos graves, com resultados favoráveis, até. Semana passada, fui dar um mergulho. Tirei shorts, chinelo, juntei tudo e acomodei num cantinho na areia. Céu azul, brisa fresca, mar calmo, cenário perfeito para sair da água e não encontrar meus pertences. Esqueci onde havia deixado e o ônibus de volta à cidade partiria em meia hora, sem chances de entrar de biquíni, meu deus, me ajuda. Mas tem isso, sabe, quando a gente é distraída, fica meio encabulada, não quero que as pessoas notem, eu não sei o quão grave é dar um mergulho de 10 minutos e perder a noção de espaço, é caso para tratamento?, melhor disfarçar, imagina, eu tô caminhando, tarde linda, hein, e recolhendo lixo da praia, vocês são tão mal educados. Juntei duas latinhas, três palitos de picolé, uma sacola, uma garrafa pet e opa, olha só, um chinelo e um shorts, ufa.

Foi com essa mesma cara de surpresa que, aos 20 e poucos anos, eu finalmente encostei a mão no termostato da geladeira e constatei: não dá cólica de rim. Muitos anos antes, eu criança xereta, pé no chão, criada na casa da vó e desde aqueles tempos muito dada às divagações, abria a geladeira para ficar curiando. Mudava coisas de lugar, bagunçava tudo, escondia o pote de margarina atrás dos tapauér e girava o botão da regulagem da temperatura. Naqueles tempos, a pedra no rim da minha tia mexeu, botando ela de cama. Eu, no cantinho da porta do quarto, espiava de longe o sofrimento. Ela se contorcia, chorava e até vomitou coisa amarela. Eu corri, assustada, fui distrair na geladeira e quando tava com os dedinhos firmes no termostato, pronta pra girar, a vó chegou gritando: tira a mão daí, senão cê fica doente que nem sua tia. Mas isso tudo só lembrei anos depois quando, sem querer, encostei a mão no botão e não senti nada. A cabeça da gente, hein, que coisa maluca, 20 anos ajeitando os potes, melancia, pratinhos, sempre no canto esquerdo para nunca tocar num termostato e, assim, evitar pedra nos rins. Tivesse eu pensado, olha, não faz nenhum sentido e, bom. Minha vida não teria sido outra, pouca coisa mudaria, uma ressignificação pequena no âmbito da relação eu-geladeira. Mas deve haver outras crenças me levando para atitudes sem sentido e, possivelmente, você também.

− Tá escrito zero aqui.

− É o que? − Eu tentava esconder minha descrença fingindo que os ruídos do telefone tinham atrapalhado minha audição − Amigo, presta atenção, matrícula 107342496, usa uma régua para enxergar a linha certa.

− Eu estou com o dedo em cima da sua matrícula, e é, bem, veja bem, tá escrito zero aqui. − Meu amigo se constrangia pelo que estava diante dos seus olhos no mural, e dizia “tá escrito aqui” como quem vê uma distinção entre o que está escrito e a realidade, o mensageiro e a mensagem.

− Não é um 8,0 que parece 0,0, não? Ou um 0,8 que parece 0,0? A letra desse professor é horrível e 8 confunde muito com 0– Eu argumentava sabendo que 0,8 era uma linha tênue que me separava da completa humilhação, tornando-a apenas parcial, talvez até cômica, e que, 8,0 era uma clara dissociação psíquica.

− Não dá pra confundir porque está escrito “zero”, por extenso.

− Ao lado da minha matrícula 107342496?

− Sim.

− Ao lado da matrícula 107342496 está escrito zero por extenso?

− Sim.

− Obrigada, amigo. (nunca mais eu peço pra alguém ver minha nota)

− Desculpa, amiga. (nunca mais eu vejo a nota de ninguém)

Fui fazer o login em um site qualquer e prontamente esqueço a senha e que coisa engraçada pois lembrava da senha até precisar. E você vai dizer que é uma questão de memória porém clico em refazer a senha para esquecer no minuto seguinte. Na terceira tentativa anoto a senha num papel e obtenho um sucesso que é fugaz pois jogo o papel fora consolidando que aprendi zero coisas durante o penoso processo.

O Google me leva para uma página onde preciso escolher apenas as imagens que contém semáforos porém o semáforo geralmente fica dividido entre duas ou até três imagens e não entendo se isso conta como 1 ou 3 semáforos pois clássico pega ratão. Clico em tudo por via das dúvidas e reprovo no exame do Google até que finalmente aparece a caixinha para clicar que “não sou uma robô” mas que pode-se ler “finalmente hein”.

[por Carolina Bataier, Ceci, Gabi Favarini e Raquel Carvalho]

[a ordem dos nomes não reflete a ordem dos parágrafos]

[e vice-versa]

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