Eu só queria ir pra casa

Revista Chão
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5 min readApr 30, 2020

Eu não queria ir. Já tinha bebido no bar de beira de estrada que ficava na frente da faculdade a tarde toda, estava sendo bem-sucedida em esquecer quimicamente um pseudo término com um pseudo namorado, quando cheguei em casa, só queria comer um pãozinho e dormir até o dia seguinte, mesmo ainda sendo 7:30 da noite. Especialmente ainda sendo 7:30 da noite.

Mas ela insistiu. uma das três meninas que dividiam o apartamento comigo. Ela também tinha terminado um relacionamento, mas pode-se dizer que o dela era mais de verdade que o meu. E ela estava sofrendo mais de verdade que eu. Queria ir em uma festa que, ou ela não tinha maiores detalhes ou não se importou em informá-los a uma pessoa bêbada comendo um pãozinho de forma selvagem. “vamos, por favor, POR MIM.” Eu não sei se cheguei a aceitar formalmente a pressão psicológica, mas em uma hora estávamos na tal festa. Em meia eu estava beijando uma pessoa que eu beijava como último recurso; e minutos depois ela estava tão bêbada que uma trupe de semi-desconhecidos, tal qual Gandalf fez com o Frodo, delegou a mim a missão de salvar o dia: “leva ela pra casa”. Não era o fim do mundo, pensei. vamos voltar mais cedo do que eu imaginava. Mas depois de andarmos o equivalente a meia rua, eu percebi que era sim o fim do mundo: ela se cansou de andar no meio do caminho, deitou no meio da rua e falou “chama o [nome do ex-namorado] pra me levar pra casa de carro, eu não consigo mais andar”. A princípio eu achei que o “não aguento mais andar” era simbólico. Uma metáfora referente ao fato de que ela não queria seguir a vida sem ele. Mas rapidamente descobri que era mais mundano: ela estava cansada de andar mesmo, um pé na frente do outro. Disquei uns números aleatórios no celular, rezando pra ninguém atender, e disse que deu na caixa postal dele. Ela então disse, estatelada no meio da rua: “vai tocando a campainha de todas as casas da rua e consegue uma carona pra gente.” O resto é história. Uma história que eu prefiro não continuar contando.

Eu o vi do outro lado da rua, acenei e atravessei sorrindo, nem olhei os carros. Abracei-o e demos as mãos, as mãos! Terceiro encontro e já há compromisso de mãos. Andamos juntos para o bar que transmitiria a luta e eu pensava “é isso, ele vai me apresentar aos amigos, sorria mas não muito, seja simpática, mas não muito, seja engraçada, pode ser muito”. Cheguei, sorri, sentei, mas a graça transformou-se em desgraça. Comentários veladamente homofóbicos perpassavam a mesa. A palestra que eu queria dar parecia uma bola de tênis na minha garganta e esse é o erro de quem pensa demais antes de se posicionar, cedo ou tarde, você se arrepende de ter demorado. Passou-se tempo demais pra que eu não fosse considerada cúmplice daqueles crimes, o último disparate que ouvi era que o garçom não merecia ser tratado com educação, pois não havia estudado. Meu cérebro grita: é agora! Pessoal vou embora. Mas a luta nem começou! Eu odeio lutas, é um esporte estúpido. Com essa afirmativa covarde me taquei em um táxi. O taxista me vendo chorar tenta ajudar: vou pegar um atalho, você estará em casa em um pulo, túnel Noel Rosa. Chorei também por esse novo motivo e tinha certeza: eu nunca quis tanto a minha casa.

No dia em que eu saí de caaaaaasa, minha mãe me disse: filha, cê tem certeza? Claro que eu não tenho. Vocês não me impediram de usar aquelas sandalhinhas da Xuxa que tinha uma espécie de água na sola, com umas estrelinhas boiando lá dentro. Então parece que é tarde demais. Geraldo Vandré, você me paga, porque me apeguei no quem sabe faz a hora não espera acontecer, e quando dei por mim estava abraçando minha mochila na plataforma 33 do Terminal Rodoviário da Barra Funda, que representa, nada mais e nada menos, do que a síntese das relações humanas. Uma boa plataforma de embarque e desembarque é um estudo social ambulante, um decisivo e inexorável capítulo de novela bem estruturado, um tiro no seu coração motivado e esperançoso. Fui. Vai ser incrível, eles disseram. Se arrependimento matasse, eu pensei. E pensava, pensava, obsessivamente. E elegi a rodoviária local como meu lugar de pensar, o marco zero, a fronteira, a rotatória da cidade onde costumam colocar aquela placa de rotary club. Só faltava o tapetinho de ioga e os lenços de papel para compor a cena. Claro que eu não tinha esses itens, assim como não tinha o dinheiro da passagem. Nos primeiros meses, todo santo dia eu ia para a rodoviária. Cada ônibus que chegava ou partia, com as letrinhas em vermelho escrito São Paulo, eu chorava. Eu fui cada personagem daquele lugar. A pessoa olhando ansiosa para o relógio, a pessoa que cochila com a boca aberta. Eu fui até os pombos que cagavam nos desavisados. Tomava uns café lá, café e cigarro dá vontade de ir no banheiro. Banheiro de rodoviária, meu amigo. O que eu estava fazendo da minha vida? Foi o que a garçonete me perguntou quando eu perguntei para ela se por um acaso ela me faria só uma fatia do pão na chapa, porque eu não estava podendo pagar o pão inteiro aquele dia. Moça, você tá bem? Tô sim, só tô com saudade de casa. Tá precisando de alguma coisa? De coragem.

Começamos a beber em casa de onde jamais deveríamos ter saído. Só mais uma cervejinha, você falou enquanto fritava um pastel. Coloquei uma música porque a ideia era fazer da cozinha o nosso bar porque estávamos quebradas. Bem, daí notei que a graduação alcoólica da cerveja não era brincadeira e nesse momento cantávamos evidências utilizando as garrafas vazias como microfone. Então alguém disse (eu ou você) que a gente deveria descer lá no bar. Ideia oposta ao plano inicial, mas a vida é feita de desvio e fomos ladeira à baixo — a metáfora perfeita para aquele ano, que ano. Lá estava o seu ex-namorado trabalhando de barman e começamos a conversar e roubar os cigarros, de um em um, porque ele ainda guardava o maço perto do balcão. A nossa casa ficava duas quadras acima do bar e decidimos que era hora de ir e fomos, porém caminhamos na direção oposta e paramos na rodoviária fechada — tem lugar mais deprimente do que uma rodoviária fechada? Parece uma falha no tempo onde o sentimento de que a gente não vai para lugar nenhum é real. Cobrimos o banco com papelão e compartilhamos o sonho de voltar para a casa — de onde nunca deveríamos ter saído.

[por Ceci, Gabi Favarini, Jordana Machado e Raquel Carvalho]

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