Saudades daquilo que não vivemos

Revista Chão
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4 min readMar 5, 2021

A convidada desse mês da Revista Chão é a maravilhosa Gabriela Blenda que topou se misturar com a gente para produzir esse blend carnavesco. São 4 bloquinhos-surpresa, destes que começam com altas expectativas e terminam…terminam.

Então virei para o moço que vendia latão a quinze dinheiros para reclamar que a cerveja parecia quente e ele disse que é porque eu segurava a lata com as duas mãos. Eu era nova na cidade e era a primeira vez no carnaval de rua e se eu soubesse de tudo isso não teria saído de casa. Fantasiei no sentido abstrato da palavra com uma cerveja gelada que foi esquecida na geladeira e encontrada como de surpresa em uma plena quarta-feira monótona. Descontente com o andar do bloquinho continuei pensando em como gostaria de no calor absurdo ser uma lata esquecida na geladeira. Porém na verdade não queria ser uma lata e sim uma grande surpresa Freud explica. O prazer mora em coisas assim penso enquanto abro o latão quente que é a realidade e logo recebo os sinais da insolação que atinge 98% das pessoas como eu.

Eu também não confiaria em alguém que mora em Salvador e nunca curtiu um carnaval. Mas essa era a minha realidade até trabalhar numa emissora de tv. Precisei atravessar longas horas de congestionamento e muitas poças de xixi para chegar até o circuito. Tudo isso para ver Bell Marques, Ivete Sangalo e Xanddy em cima de um trio. Fiquei ao lado de Solange Couto (mais conhecida pelo jargão num é brinquedo não), que no auge dos 60 anos pulava com mais energia do que eu. Não há nada erótico para se falar sobre o carnaval do circuito Barra-Ondina naquele ano, onde só trabalhei.

Porém, no outro canto da cidade como eles disseram, há os bloquinhos de rua. Naquele dia eu saí de casa sem saber que terminaria a noite de soutien e glitter num bloquinho de carnaval. Era para ser um dia normal de trabalho. Mas o clima de folia já estava rolando e os colegas decidiram estender o expediente até o bairro de Santo Antônio, onde o bloco De Hoje A Oito preencheria a rua com suor e cerveja.

Na falta de fantasia, tirei a camisa e usei a máscara dourada feita de cartolina que decorava o escritório. A colega mais experta saiu de casa precavida, com pó de lua na bolsa, e me emprestou um pouco. As ruas do bairro são estreitas e em alguns momentos achei que nunca desentalaria. Foi quando aprendi a sábia lição que uma hora tudo desenrosca, por mais que aperte. Em vez de participar de uma orgia, acabei não pegando ninguém em minha primeira festa dionisíaca. Inclusive, o carnaval e o teatro têm a mesma origem. É tudo sobre estar protegido com a máscara e viver uma fantasia. Isso de interpretar papéis me lembra os estudos sobre dominatrix que estou fazendo. Mas aí já é assunto pra uma outra conversa…

Eu sempre queimo a largada no carnaval. Na sexta às duas da manhã já fiz o que era esperado de um brasileiro médio no acumulado dos quatro dias de carnaval. Essa história de dosar, ir administrando o álcool e as pessoas me parece excelente, mas basta a primeira latinha da sexta e eu já estou meu deus a vida não fica melhor do que isso! Quando chega o sábado, só o movimento de andar devagarinho já é sacolejo suficiente para despertar um enjoo que me acompanhará até o fim do carnaval. Em uma dessas sextas, que tecnicamente nem carnaval é ainda, eu tinha acabado de chegar em São Luiz do Paraitinga e já estava bêbada. Um moço surge em minha frente e seu rosto nunca mais me voltou à memória, mas ficou gravado que ele era engraçado. Em determinado momento eu informei que precisava ir ao banheiro, e ele deve ter se oferecido para ir junto, porque um raio cósmico de lucidez se abateu sobre mim minutos depois, dentro de um banheiro químico com o moço sentado em cima do vaso, dizendo que era preciso curtir ao máximo o carnaval e que se não aproveitássemos que estávamos sozinhos ali, eu ia me arrepender pelo resto da vida. Eu. Ia me arrepender pelo resto da vida. Eu. Dentro de um banheiro químico. Ia me arrepender de não transar com uma pessoa que achou normal, cotidiano, um ato como como qualquer outro, sentar em um vaso e, com o semblante taciturno, amaldiçoar o futuro de uma mulher que acabou de conhecer. Minha disposição para aproveitar a sexta tinha um limite e eu acabara de chegar nele. Saí do banheiro, ele saiu em seguida, em desabalada carreira, sem olhar pra trás. Tinha uma lição ali. Vamos dizer que eu aprendi, para terminar esse texto com uma mensagem positiva.

Tinha sido uma volta em uma ilha mágica o avanço da horda carnavalesca por entre Paquetá. Acho que o anti-clímax é que se você estiver em um fim de bloco em Paquetá, bêbado, às quatro da tarde, com fome (porque a ilha não absorve tamanha larica pulsante), bom, se você se encontrar nessa específica situação, ainda é necessário encontrar meios de retornar a sua casa, porque você não mora em Paquetá. Quando a barca encostou os piratas, bailarinas, bombeiros e todas as profissões fantasiosas tomaram-na de assalto, ou imaginaram que tomaram, porque na realidade a barca estava ali para nos buscar, então só era necessário entrar. A barca estava ali para nos varrer porque estávamos em situação de sermos varridos e o tempo de travessia de em média 40 minutos era ideal para colocar a todos sóbrios, considerando que colocaríamos nossos últimos impulsos de carnaval para fora. Em 40 minutos, à luz difusa da barca, muitos de nós se apaixonaram, se uniram, atravessaram momentos difíceis (enjoo), imaginaram um futuro juntos (fantasias de casal no próximo ano) e por fim a barca atraca. Já repararam como a luz na estação das barcas da Praça XV é forte? Dá pra ver tudo (e todos). Cabeças baixas caminharam para o metrô.

[por Ceci, Gabriela Blenda, Gabi Favarini e Raquel Carvalho]

[a ordem dos nomes não reflete a ordem dos parágrafos]

[e vice-versa]

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