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Revista Chão
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4 min readJan 10, 2020

Começou o último dia do ano. Engraçadas, curiosas, intrigantes, essas são as pessoas. Passamos o ano inteiro esperando o fim do ano, porque os planos estão no futuro, seres do depois, do e se, do quando, do lá. E quando o negócio chega, todo mundo volta no tempo pra fazer um balanço mórbido, uma espécie de flashback de ácido da própria vida. E ainda reclama dos filmes repetidos da Sessão da Tarde. À essa altura do campeonato ainda precisamos de comprovações das cagadas que fizemos. Não existe conceito mais ultrapassado do que aprender com os erros. Mas quem são os erros perto da nossa crença de aprendizado no Duolingo, Kumon e João Bidu, não é mesmo? Decido largar estes pensamentos para não estragar o clima coletivo com constatações que ninguém pediu, de modo a guardar espaço para os pedidos que sei que vão começar em breve. Me pedem para ir ao mercado comprar o que esqueceram. Maionese da melhor marca, e papel filme ou alumínio, papel higiênico, e isso, e aquilo outro. Entro no estabelecimento como quando entrava aos 8 anos de idade: tímida, com uma lista na mão e sem saber calcular troco.

Volto pra casa e olho para minhas mãos que quase gangrenaram com o peso das sacolas. Sou uma adulta no capitalismo e não tenho carro, mas isso não é algo seguro emocionalmente para se pensar num dia como este. A cachorra chega perto de mim no sofá. Olho pra ela e digo oi nenêzinha mais linda do Brasil e começo a chorar. Minha mãe acha uma boa ideia me chamar pra assistir a Bela e a Fera, vem, vai passar aqui na televisão daqui a pouquinho, deita aqui. Melhor gastar as lágrimas agora, pensei. Ainda tem muito 2019 pela frente.

Assim que a música da Simone parou eu pulei no silêncio ideal e lancei a pergunta: e será que não vai ser muita comida, hein? Calma, não seja a pessoa que estraga o clima, a gente já fez as compras, mas agora fica todo mundo se questionando. Tá, mas o que vamos cortar, porque tem que ter a salada de batata, a lentilha, a farofa, os dois tipos de arroz porque muita gente não gosta das frutinhas. Alguém esqueceu o sal grosso mas o super tá fechado agora e não adianta. Quando o churrasco começou, a prima deu um jeitinho pegando o sal grosso dos arranjos de sal, alho e pimenta que passaram o ano todo recolhendo energias da casa. Na hora pensei: ou o ano vai dar muito bom ou muito ruim. Aguardemos.

E os petiscos de entrada também já estão aí, afinal é a entrada do ano, faz todo o sentido. É tudo muito simbólico e já fazemos isso há tanto tempo porque mexer no que esta dando certo? Mas está dando certo mesmo?

Volto do banheiro só para desafiar a tradição anual enquanto viro o copo com a cerveja meio choca porém gelada e coloco a espumante no congelador — cuidado para não esquecer! Alguém coloca o alarme por favor?

-Eu não me conformo que eles diminuíram o tamanho do rolo. Tinha 40 cm antes. 40!

-Você não ia no banheiro?

-É, eu tava indo, mas aí… To indo lá então.

Namorar por muito tempo é só agonia. Será que acabou e eu não percebi, como eu sei que tá tudo certo? Estou só dando uma volta. Circulando. Parada naquele mesmo lugar, daquele jeito, parecia uma pessoa em pós-operatório. Só olhando. Tatuagem bonita. Eu disse em voz alta mas estava só pensando. Falando. Estamos falando agora. Eu vou precisar interromper isso em algum momento. Nos próximos 5 minutos. Vou terminar a frase perguntando onde é o banheiro. Eu sei onde é o banheiro. Eu não sei mentir. Eu não tenho outro plano. Pra lá, eu te levo até lá. Meu deus meu deus eu estou seguindo essa pessoa. Tatuagem horrível nas costas.

Se você me dissesse que eu nasci ali, naquele momento, de branco e com uma taça na mão, essa poderia ser uma perfeita explicação para o que eu estava sentindo. Eu não me sentia nova em folha, mas a pergunta como eu vim parar aqui? rodava em looping na minha cabeça. Quando eu digo aqui, não é na praia de Arraial do Cabo assistindo ao show do Tuca Fernandes, apesar de que esse aqui também deveria ser fortemente questionado, mas AQUI eu digo nesse momento da vida. 30 anos, sobem os fogos tímidos da região dos lagos.

Ao olhar para o céu, eu sei que é o álcool falando, mas os primeiros 15 anos da vida se soltam dos últimos 15 anos, como uma cápsula se desprende de uma estação espacial. 15 anos agora parece que foram em outra vida. Um grupo de bêbados canta ao fundo: então é natal/Abraço um amigo e digo feliz ano novo/ e o que você fez/ Abraço o segundo e digo as coisas vão melhorar/o ano termina/Pro terceiro eu digo tamo ficando velho, rindo-chorando/e nasce outra vez/ Rio incrédula do grito de ENTÃO É NATAL, a maldita música da Simone cresce dentro do peito. Eles não sabem cantar o resto da letra, acho que ninguém sabe. E agora? Eles se perguntam, eu me pergunto. Todos bebem.

Começa o primeiro dia do ano. Pessoas colocando a comida em potes, outras preparando a marmita da semana ao som de mentes iluminadas que se abrem: olha, realmente foi demais. Enquanto isso, esperamos pelo alarme esquecido quando nos deparamos com o espumante já congelado do ano que passou.

[por Ceci, Gabi Favarini, Jordana Machado e Raquel Carvalho]

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