No flagrante da reação do Rei depois do quase gol do meio de campo contra a Checoslováquia, no primeiro jogo da seleção brasileira na Copa de 70, cabe todo o lamento do mundo

A desnecessidade do gol

Com Pelé e Lemyr Martins em campo, a magia do futebol prescindia de bola na rede

Christian Carvalho Cruz
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9 min readOct 16, 2020

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Texto Christian Carvalho Cruz
Fotos Lemyr Martins

É noite num dos olhos do fotógrafo Lemyr Martins. E no outro, fim de tarde. Os amigos o sacaneiam dizendo que ele perdeu a visão daquele que já fechava para fotografar, o direito. Do esquerdo restam 70%, o suficiente para cuidar das orquídeas em sua chácara no interior do Rio Grande do Sul pela manhã, depois caminhar e, nos melhores dias da semana, assistir a quantos jogos de futebol a televisão mostrar. Pena que ler tenha se tornado um deleite que as complicações da catarata embaçaram. Hemingway e García Márquez sentem saudades. “Não é fácil, a gente perde a noção de profundidade. Mas já vi muita coisa bonita na vida, então tudo bem”, o Lemyr se resigna, com a sinceridade dos 83 anos.

Entre tanta beleza, ele nem precisa pensar muito para responder, nenhuma foi maior do que ver Pelé com a camisa branca do Santos jogando na Vila Belmiro ao luar. “Aquela figura de ébano deslizando sobre o campo, o contraste da pele com o uniforme, os movimentos sincronizados e vigorosos mal iluminados pelos refletores ruins da época… Para mim era um espetáculo de balé”, descreve o Lemyr. Primeiro com uma Rolleiflex, depois com uma Nikon, e toda sorte de lentes e filmes, ele perseguiu Pelé pelos campos do mundo por 15 anos, de um Grêmio x Santos no Estádio Olímpico em 1962 à despedida pelo Cosmos, nos Estados Unidos, em 1977. Foram retratos para entrevistas, reportagens, registros de treinos, vestiários e, acima de tudo, jogos — Pelé em ação. “Como Éder Jofre e Emerson Fittipaldi, Pelé praticamente se autofotografava. Muito plástico e mágico”, diz o Lemyr. “Eu o acompanhava no visor da câmera o tempo todo. De repente ele parava. Era um sopro, um átimo. Mas ali eu começava a disparar, pois sabia que uma boa foto estava a caminho.” Não que Pelé posasse ou enfeitasse uma jogada só para aparecer majestoso nas páginas dos jornais e revistas. Pelo contrário. “Em campo ele era muito concentrado. Para ele só existia a bola e o corpo, que falava. Os pés dele falavam, os braços, os olhos. Um homem completamente entregue ao seu trabalho.”

Muita gente boa fotografou muito bem Pelé. Sérgio Jorge, Marcio Scavone, Bob Wolfenson, Sebastião Marinho, Domício Pinheiro, Orlando Abrunhosa, os irmãos José e Raphael Herrera. O que torna especiais as fotos do Lemyr? Talvez uma compreensão diferente sobre o futebol e Pelé. Um vez o escritor Fernando Sabino escreveu que não se tratava de um ídolo das multidões: “Não é também o Rei, o Crioulo, o Negão, ou como quer que se refiram carinhosamente a ele. É apenas um homem que sabe dar aos outros homens o melhor de sua capacidade criadora, como um artista”. O Lemyr sacou isso. Porque seu território não era o do futebol como esporte, mas como fenômeno sociocultural com toques de arte e fantasia. Assim como o jogo, com suas linhas, ângulos, retângulos, triângulos e circunferências, muito da fotografia é geometria. Com a câmera atada ao olho, o Lemyr via toda essa graça que por vezes escapa à nossa cega avidez pelo gol. É o dom de um craque. Uma fagulha criativa que o aproximava de um camisa 10 a ditar o ritmo de nosso olhar para preencher aos poucos o nosso imaginário. O Lemyr nos ensinou a ver Pelé num tempo em que Pelé era mais para os ouvidos. É nesse ponto, então, que os dois gênios se conectam: Lemyr e Pelé eram dribladores vorazes da banalidade.

A Monalisa do Lemyr é o Pelé socando o ar depois de marcar o segundo gol do Brasil na estreia contra a Checoslováquia na Copa de 70, no México. É a eternização de um gesto, da grandiloquência de um fora-de-série no cume da vida. A gente não precisa ter visto Pelé jogar, nem ter assistido ao videotape daquele jogo, para reter a alegria e o poder do futebol. A fotografia do Lemyr nos fornece isso. Talvez porque ela seja um paradoxo: ao mesmo tempo sutil e potente, suave e explosiva, angelical e despudorada. Como O Berlinde Azul, imagem da Terra capturada do espaço pela Apollo 17, em 1972. Ou O Rapto de Prosérpina, de Bernini. O Churchill de Yousuf Karsh. Ou o próprio sorriso da Gioconda. Mas deixemos o soco no ar flutuando por ora. Não há muito mais o que falar dele, a não ser que há outro registro do mesmo lance, tão belo quanto, melhor para alguns, por desvelar Tostão no segundo plano, feito pelo fotógrafo Orlando Abrunhosa, da revista Manchete.

Como na Monalisa, de Da Vinci, ou O Rapto de Prosérpina, Bernini, a obra-prima de Lemyr contém um paradoxo: é ao mesmo sutil e potente, suave e explosiva, angelical e despudorada

Naquela mesma partida, Pelé e o Lemyr perpetraram outra obra-prima. Pelé tentou um gol do meio de campo, a bola não entrou por centímetros. A ousadia que “falhou” ficou na história, mas a decepção do Rei só o Lemyr congelou. O camisa 10 de costas, com as mãos na cabeça, encerra todo o lamento do mundo.

Ainda no Mundial de 70, o Lemyr fotografou mais um não-gol de Pelé, agora a partir de um ponto de vista pouco visto até até hoje. É o famoso drible de corpo no goleiro uruguaio Mazurkiewicz e o chute caprichoso para fora. O Lemyr tinha Pelé de frente, olhos na bola, levitando sobre o gramado como um puro-sangue inglês no sprint final. Na plateia fora de foco ao fundo, todos em pé, a expressão corporal dos torcedores denuncia uma mistura de espanto, êxtase e incredulidade. Eu faria uma sala no MoMA só para esta imagem. E outra no d’Orsay.

O drible no goleiro uruguaio Mazurkiewicz visto de um ângulo pouco conhecido. Pelé flutua sobre o gramado. Na expressão corporal da plateia ao fundo, espanto, êxtase e incredulidade

A verdade é que Pelé e o Lemyr fizeram o diabo no México. Tem a cabeçada fulminante para a “defesa do século” do goleiro inglês Gordon Banks. O Lemyr conseguiu a proeza de fotografar os dois atos, separados por milésimos de segundo, na velocidade do obturador e do avanço automático que sua Nikon permitiam. Mais do que os movimentos da jogada, o que ele não esquece é som. “Foram dois baques secos em sequência. Tum-tum! Um da cabeçada outro da defesa. Me emocionei ao ouvir 83 mil espectadores do Estádio Jalisco, de Guadalajara, dividirem os aplausos entre a levitação do Rei e o milagre de Banks”, recorda o Lemyr. As duas fotografias são impressionantes, mas a da defesa é mais. Não me refiro ao lance, tão marcante e inesquecível, mas à imagem gravada no negativo preto e branco do Lemyr. Embora ela não enquadre Pelé, se a virmos isolada, se tropeçarmos nela na rua, imediatamente sabemos que se trata de uma foto de Pelé. É o retrato perfeito, definitivo, do Rei do Futebol.

A sequência da “defesa do século” de Gordon Banks: dois baques secos, tum! tum!

Sartre dizia que num jogo de futebol tudo é complicado pela presença do time adversário. Talvez não conhecesse Pelé. Certamente não conhecia o Lemyr. Os dois descomplicavam o futebol. Em sua galeria de fotos prediletas do Rei, o Lemyr pinçou uma bem simples: Pelé dominando a bola no bico da chuteira. “Gosto desta imagem porque ela congela a intimidade entre os dois”, ele explica. É isso. Olho de novo para a fotografia. E lá está um galanteio, um gesto carinhoso, um dengo. Como se Pelé dissesse à bola: “Chega mais perto, meu amor”. É que no final das contas, assim com o futebol, fotografia é isso: empatia, humildade e paixão.

Nosso cérebro é um arquivo de memórias interpretadas, porque propenso ao fulgor da nostalgia, do desejo e do revisionismo. Já a fotografia pode ser o relato permanente de um momento. O que as fotos de Pelé feitas pelo Lemyr nos mostram é um brinde às duas coisas, ao momento e à memória. Ao registrar a história do Rei do Futebol para a posteridade, elas também forjam nossos afetos em relação a ele. O Pelé que muitos de nós conhecemos foi, de certo modo, criado em nossa mente pelas fotografias do Lemyr, uma mistura de suor e fantasia, invenção e realidade — para os dois, fotógrafo e fotografado. É do Pelé socando o ar que sempre lembramos, não do Pelé dizendo que o brasileiro não sabe votar ou o Pelé que pediu para cuidarmos das criancinhas do Brasil.

Uma das fotografias prediletas de Lemyr. Um momento de intimidade entre dois amantes, como se o Rei dissesse à bola: “Chega mais perto, meu amor”

Pelé e o Lemyr sempre se deram bem. “Ele nunca me recusou uma foto. De cara dizia que não, mas acabava cedendo”, conta o Lemyr. A personalidade afável e generosa do fotógrafo ajudava. Uma vez, contudo, Pelé ralhou com o Lemyr. E a culpa nem era dele. A bronca era com a revista Realidade, também publicada pela editora Abril, que trazia na capa de janeiro de 1971 a reportagem “Pelé, como viverá este velho”. No retrato, um Pelé de bigode e cabelos grisalhos segurava uma bola de dinheiro. “Eu era da Placar, não da Realidade. Ele sabia disso. Mesmo assim, veio me cobrar: ‘Como é que vocês me colocam cheio da grana numa página e na outra contam a desgraça do brasileiro que vive com um salário mínimo?!’.” Às vezes o Edson também batia um bolão.

O Lemyr fotografou as quatro despedidas de Pelé. A mais emocionante, porque definitiva, ele diz, a do Cosmos, em outubro de 1977. Foram as últimas imagens que ele fez do Rei. Depois disso, encontraram-se fortuitamente em três ocasiões. Em nenhuma o Lemyr fotografou. Na última, num aeroporto nos anos 90, assim que o viu, Pelé mandou o comprimento de antigamente: “Ô, Placar, você não larga do meu pé, hein?!” Os dois trocaram um abraço e o Lemyr aproveitou para fazer uma pergunta que nunca tinha feito: “Rei, das tantas fotos que fiz de ti, qual a tua preferida?”. Ele tinha certeza de que seria a do soco no ar na Copa de 70. “Para minha surpresa e emoção, ele disse que era um retrato do pai dele, Dondinho, que fiz no dia da despedida do Cosmos. Uma foto pela qual tenho um grande carinho também”, relembra o Lemyr.

Dondinho com a camisa usada na despedida do Cosmos, em 1977: sem Pelé, mas com todo Pelé, imagem-síntese da longa biografia do Rei

E como se tudo tivesse acontecido ontem, ele detalha, com sua memória esplendorosa: “Até o choro de despedida, convulso e emocionado, de Pelé, transmitido em alta fidelidade para os alto-falantes do Giant Stadium, em Nova Jersey, eu já esperava. Mas quando vi Dondinho enxugar as lágrimas com a camisa verde, número 10, do último jogo do filho famoso, sucumbi. Pedi-lhe que expusesse o troféu. Ele sustentou a camisa para a foto com sacrifício — parecia pesar muito. Usei a lente de 85 milímetros, com diafragma 1.8/60, para 400 asas, mas, ironicamente, a imagem não entrou na reportagem do adeus do Rei publicada na Placar nº 389, de outubro de 1977. Uma foto simples e fácil de fazer, mas para mim foi a síntese da longa biografia de Pelé”.

De novo, uma foto de Pelé sem Pelé na qual Pelé aparece por inteiro. Mais um golaço do Lemyr.

Pelé com Lemyr, no México em 70: “Ô, PLACAR, você não larga do meu pé, hein?!”

Texto publicado originalmente na edição 1467 da revista Placar, de setembro de 2020, dedicada aos 80 anos de Pelé

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Christian Carvalho Cruz
Revista Grama

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