A CONDIÇÃO ONÍRICA DAS PALAVRAS

Grifo - editorial
revistagrifo
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6 min readApr 20, 2022

carolina zechinatto

colagem de carolina zechinatto

A linguagem tal como se encontra, cristalizada em definições e normas, já não pode apreender a multiplicidade da experiência contemporânea. É preciso que ela seja reinventada: uma linguagem que nos permita elaborar o sentido ou a falta de sentido que constitui a própria experiência. Esse movimento exige atenção, abertura e disponibilidade. Demorar-se na experiência, degustar.

Encontro apoio no filósofo espanhol Jorge Larrosa, que passeia pela filosofia, educação e literatura na busca pela construção de uma forma de pensamento, de linguagem, de sensibilidade e de ação via experiência (que é da ordem da imprevisibilidade). Ele define experiência como sendo “algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão (…)” (LARROSA, 2015, p.10).

Debruçamo-nos por um momento sobre a ‘Carta de Lord Chandos’, considerado um dos textos fundadores da crítica da linguagem e comentado por Larrosa (2015). Nessa carta, Chandos descreve a seu amigo Francis Bacon uma estranha enfermidade que o acomete: não conseguir mais pronunciar determinadas palavras. Ele afirma que algumas delas estavam tão automáticas/automatizadas na fala cotidiana, que perderam seu sentido (ou que não há um sentido-original-único da palavra).

Essas constatações dialogam com as ficções hegemônicas ou privilegiadas discutidas por Eduardo Pellejero (2009), que têm a pretensão de funcionar socialmente como uma verdade ou história única que limita nossa imaginação e experiência do mundo. Essas ficções hegemônicas querem ser reguladoras universais da ação e do pensamento e é aí que propomos a abertura de uma brecha pela qual atravessam linhas de fuga, ficções alternativas.

Há aqui uma proximidade com as linhas de fuga definidas por Deleuze e Guattari (1996), já que os autores destacam que criar uma linha de fuga não significa fugir do mundo, mas fazê-lo fugir, “como se estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se seus segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 72). A linha de fuga é um enfrentamento, uma desterritorialização, um vetor de desorganização.

Bachelard (1988) concorda que, ao longo do tempo, as palavras foram tão fortemente definidas e redefinidas de forma precisa e elencadas em dicionários de tal forma que se tornaram instrumentos do pensamento. Nesse processo, as palavras perdem seu “onirismo interno”.

Mais do que instrumentos do pensamento, insisto que a linguagem é também instrumento de poder, visto que “a unidade de uma língua é, antes de tudo, política. Não existe língua-mãe, e sim tomada de poder por uma língua dominante, que ora avança sobre uma grande frente, ora se abate simultaneamente sobre centros diversos” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 49). Isso quer dizer que toda linguagem estabelecida contém em si minorias internas represadas e efervescentes, que são suas possibilidades de variação.

A forma como relacionamos palavras e coisas, nomeamos e damos sentido ao que vemos e sentimos, perpassa a experiência, inevitavelmente. E, por ser múltipla e singular, como é possível que uma única palavra dê conta de nomear definitivamente uma coisa ou sensação? Propor fabulações ou ficções alternativas, portanto, não é afirmar algo que não é real, mas sim algo que torna as ficções hegemônicas inoperantes.

Retomamos a noção de fabulação no sentido mais político da expressão artística: de ser um terreno no qual, em meio a uma série de impossibilidades, “uma gente dispersa nas mais diversas condições de opressão pode chegar a encontrar um vínculo aglutinante ou uma linha de fuga” (PELLEJERO, 2009, p. 63). Afirmamos em coro que as palavras são intrinsecamente produtoras de sentido e, nesse fluxo, criam realidades.

Voltemos à condição onírica das palavras.

É bonito pensar que “algumas palavras, antes que se desgastem ou se fossilizem para nós, antes de permanecerem capturadas, também elas, pelas normas do saber e pelas disciplinas do pensar, antes que nos convertam, ou as convertamos em parte de uma doutrina ou de uma metodologia, (…) ainda podem conter um gesto de rebeldia, um não, e ainda podem ser perguntas, aberturas, inícios, janelas abertas, modos de continuar vivos, de prosseguir, caminhos de vida, possibilidades do que não se sabe, talvez” (LARROSA, 2015, p. 75).

Se te falo sobre amor, se digo que sinto medo, angústia, alegria, esperança ou quaisquer outros afetos, é do mesmo amor ou da mesma angústia que estamos falando? Um afeto perpassa a intimidade da experiência, história, memória, geografia de um corpo. São camadas de sentidos querendo variar a posição e a intensidade. Se me volto às coisas, se escolho me debruçar sobre a palavra ‘agulha’, por exemplo, que possibilidades se abrem? Que camadas essa agulha atravessa, costura, direciona, aponta, desvia? Que espaço ocupa? Agulha do tempo. Devir-agulha. Amor-agulha, angústia-agulha…

A escrita e, sobretudo a poesia, é terra fértil para exercer a potência de sonho que habita em cada palavra. E sequer falo sobre neologismos ou algo de licença poética. Pellejero (2009) afirma que, para Platão, o caráter ficcional da poesia, ameaça a alma dos homens e a desagregação do corpo social, pois a ficção está longe da verdade, é uma ilusão da verdade e, portanto, o poeta seria um falsário. Fernando Pessoa não nega: “o poeta é um fingidor”.

Mas, como Pellejero ainda aponta, há uma espécie de reencontro entre o filósofo e o poeta. A partir de Nietzsche, a verdade deixa de ser algo absoluto ou universal e passa a estar sujeita ao devir. A crítica da vontade de verdade abre um paradigma de pensamento que procura a produção de ficções, não de verdades. As noções de verdade e realidade são então tensionadas pela ficção.

“O quarto do poeta está repleto de palavras, de palavras que circulam na sombra. Por vezes as palavras são infiéis às coisas. Elas tentam estabelecer, de uma coisa a outra, sinonímias oníricas. Sempre se exprime a fantasmalização dos objetos na linguagem das alucinações visuais. Mas, para um sonhador de palavras, existem fantasmalizações pela linguagem. Para ir a essas profundezas oníricas, é necessário deixar às palavras o tempo de sonhar” (BACHELARD, 1988, p.48). Deixemos as palavras sonharem.

Apesar disso, é válido pontuar que nem toda arte tem a intenção de desestabilizar ou desorganizar o estabelecido. Há também aquelas que repetem e reafirmam o que já está posto. E é preciso que se atente:

Colocar a ficção no lugar da verdade não é negar a verdade, mas afirmar que ela não está dada e nem é única. Ela pode se tornar hegemônica via repetição, repetição, repetição. Uma verdade é inventada, é produto de um trabalho criativo. Assim como as palavras, que sonham em variar. A poesia reconhece e afirma a ficção como potência, como uma maneira de se expressar de forma imaginativa, dando vazão aos devaneios. Criamos outros mundos possíveis via palavras que transbordam sentidos múltiplos: um campo de experimentação.

E é nesse campo que lanço sementes, sem saber o que vai brotar — nem quando — nem se.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio (trad. Antônio de Pádua Danesi). São Paulo: Martins Fontes, 1988.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs — capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. (trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão). São Paulo: Ed. 34, 1995.

______. Mil platôs — capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. (trad. Aurélio Guerra Neto et al). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência (trad. Cristina Antunes, João Wanderlei Geraldi). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

PELLEJERO, Eduardo. A postulação da realidade: filosofia, literatura, política (trad. Susana Guerra). Lisboa: Edições Vendaval, 2009.

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