a infância me morde no escuro

notas sobre o que não me lembro e ainda mora em mim

Grifo - editorial
revistagrifo
3 min readApr 1, 2022

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isabella azevedo

desenho de deborah amoreira

i. sempre sonhei. desde os quatro despertava aos gritos, chamava meu pai, acordava a casa. uma massa abstrata e numérica avançava sobre mim, me impedindo de enxergar a vigília doce do meu quarto de interior. ainda hoje, não acaba quando acordo. o peito molhado e a garganta seca me travam palavras em confusa curiosidade. não há nada. apenas o vazio do esquecimento e a grandeza do terror. se aqui escrevo, foi por ter sobrevivido ao desassossego de não descansar nem dormindo. a tranquilidade que aparento é puro semblante. no entanto, não apenas de incubo me virei até aqui. desse ridículo de morte. tal toque incônscio, por vezes me brindou a cintilação daquilo que gozo em segredo.

ii. a infância me visita enquanto durmo. crava em mim os dentes da recordação, e foge astuta pela manhã. me dissipo em bocados por medo de não voltar. não voltar a ver meus gatos e os amigos que prezo. não voltar a ver meu pai, que mesmo sem saber, me protegeu dos pernilongos do meu imaginário desarranjado de menininha assustada.

iii. das viagens oníricas que fazemos da mesma cama pequena, alguns signos se encontram neste astral duvidoso cheirando a pão de queijo fresco. não desfaço o mau jeito do braço adormecido, enquanto te ouço dormir perto distante. voltamos juntos de lá onde nossas infâncias fazem a curva ao redor das neuroses às quais rimos uma gargalhada despreocupada, que só acontece às vezes. suas histórias, a infância que você ama e de que lhe vejo como agora, em sua quase ingenuidade cristalina alimentada por angústias e pequenas alegrias do interior de minas gerais. da caligrafia que entrega a fluidez com a qual te penso sem delimitações espessas, fina película que nos separa os mundos e nos permite colar como adesivos de caderno escolar colecionáveis que guardamos por anos, em certo ciúme engraçado.

iv. sempre que retorno ao meu primeiro quarto, um fundo verde cecília meireles me afrouxa os olhos do inconsciente.

mudo a posição da cama, os bonecos de gesso, o estranho no espelho, bisa bia bisa bel.

v. agora, a porta que tranca, não mais suporta a placa com meu nome escrito de areia colorida que compramos na bahia. o ventilador faz um silêncio agradável de ouvir e ainda hoje evito a janela que dá pro beco do jardim.

fecho a persiana e me deito agitada de sonho.

vi. minha atual conjuntura, pelas ruas daquela cidade miúda. as roseiras das senhoras exalam a voz da minha mãe. que me acalma e me amedronta. questiono preocupações e troco de roupa sem precisar me despedir.

-amanhã eu volto.

no futuro das janelas teladas de mosquitos sanguinários que me coçam as articulações na madrugada.

ainda são 3 da manhã.

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