Artista do mês de dezembro

Grifo - editorial
revistagrifo
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6 min readDec 21, 2022

Gil Maulin

Era pra ser Eduardo. Talvez virasse Edu ou Eduardinho, quem sabe Eduzinho. Calhou minha mãe encontrar um boliviano, gerando com ele o Gilfredo. Aliás, mais um, pois o pai tinha o mesmo nome. Gilfredo Júnior?! Nada! Muitos anos depois descobri que sou neto. Gilfredos são muitos! Mas fiquei Gil, embora o fredo me agrade muito hoje em dia.

Sou tijucano de La Paz, Bolívia. Estudei em colégio Batista, embora ninguém em minha família o fosse. No colégio Católico, na época, não aceitavam alunos que traziam a culpa da mãe e da mulher separada. Desse modo, a mãe e o filho encontraram abrigo entre os protestantes.

Cresci na rua Uruguai, 288. Rio de Janeiro. Haviam fantasmas de muitos humores naquela casa. Mas dois deles me marcaram profundamente. Ronaldo era o irmão mais novo de minha mãe. Não o entendia muito bem. Sempre dizia frases sem muito sentido e razão para uma criança. Morávamos todos juntos. Eu, minha mãe, meus avós e o Ronaldo. Ele tinha o hábito de escrever e desenhar. Achava os rabiscos dele soltos pela casa. Eram traços de rostos. Eram rápidos, livres e fortes, que traziam flores nos cabelos.

Nilson, o irmão mais velho de minha mãe. O exilado. O leitor. O estrangeiro. O italiano. O amigo de meu pai. Foi ele quem apresentou Victor Gilfredo à Nelia Maria, minha mãe. Ouvia muitas estórias sobre ele, que me aproximavam daquele homem de um rosto quase invisível, por mais que houvessem fotografias. Não tinha registro dele em memória. Saiu exilado do país em 1974. Eu tinha de dois pra três anos de idade. Nessa distância chegavam pelo correio, postais, cartas, poesias e livros que Nilson mandava do Chile, da Itália e de Moçambique.

Anos mais tarde, pra me entender dentro da família, comecei a ler as cartas que eram trocadas entre os irmãos.

A minha maior influência literária foram elas, que continham amor, dores, saudades, raivas… todo sentimento e enredo que a vida humana desperta. Não fiquei imune a essas leituras!

O meu riscado veio muito da tentativa de me comunicar com elas.

Um grande amigo escreveu que desenho pra me entender. Toda arte e artista é expressão de um cruzamento de trajetórias. Meus desenhos as descrevem, ritualizando para mim mesmo linhas que formam desenhos de rostos. Muitos rostos. Multidões deles. São figuras que ora são cabeças, ora um corpo em desalinho com pés e mãos deformadas, formando personalidades inteiras e complexas. Rudes e afáveis. Complacentes e rigorosas. Mas todas sempre dispostas a se dizerem. Mas sem essa de se completarem! Nada disso! Até a menos exigente tem personalidade forte! Tem vida e linguagem própria.

Não tenho o desenho acadêmico ou clássico. Ou, como ouvi certa vez: desenhar é saber fazer uma cópia exata de um rosto.

Esse não é o meu lance.

Desenho por instinto. Por sobrevivência. Preciso desenhar porque me peço isso. Não tem urgência, só é necessário. Não tem linha exata.

Certa vez fui a uma exposição que trazia todos as fases pictórias de Picasso. Aquilo foi uma experiência libertadora. As ultimas fases do velho gênio traziam linhas desobedientes de um antiacademicismo virulento!

Em outra ocasião desenhei, por uma tarde inteira, algumas das esculturas do Alberto Giacometti. Nilson deu a deixa: Gil, vai na Bienal de Sampa, e tente desenhar algumas das esculturas desse artista italiano. Não é copiar. Desenhe.

Ir às exposições contribuiu muito para abrir meus rabiscos. Me entender sem dar nomes. Exercício terapêutico?! Arte não é uma questão de imitação. Ela uma chave, uma porta, um vão, uma sombra, são trajetórias.

Depois outros artistas ou escritores: Miró, Bispo do Rosário, Djanira, Antônio Cícero, Torquato Neto, Manuel de Barros, Jacques Tati, Lennon, Paul Newman, Naná Vasconcelos, Gilberto Gil, John Cage, Hilda Hislt, Van Gogh, Rubem Grillo, Samico, J. Borges, Rubem Braga, Goya, Jamelão, Manuel Bandeira, Leminski, Jobim, Zico, Noel Rosa, Aracy de Almeida, Dorival Caymmi, Itamar Assumpção, Gonzagão, Paulo Freire, Aldir Blanc, João do Rio, Alice Ruiz, Cazuza, Cacaso, Sérgio Buarque de Holanda, Macunaíma, Cartola, Garrincha, Oswald de Andrade, Vinícius de Moraes, Gal Costa, Bob Dylan, As Frenéticas, Jorge Ben, Sítio do Pica-Pau Amarelo, Iberê Camargo, Nara, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Pixinguinha, Luz del Fuego, Grande Otelo, Arnaldo Antunes, Tom Zé, Ana Cristina Cesar, Refazenda, Michelangelo, Angela Ro Ro, Bach, Bukowski, Sônia Braga, Adoniran Barbosa, Sidney Magal, As Patotinhas, Joelho de Porco, Dona Edmea, Seu Braz, Nelia, Gilfredo, Nilson, Brazinho, Ronaldo, Tio Epitácio, Tia Odila, Tia Nelia, Quiqui, Tonho, Didi, Luiz Eduardo, Gustavo, Thiago, Fabiano, Melissa, Vinicius, Nara, Vera, Tia Alice, Randolfo, Tio Zeca, Ivone, Neinha, Dona Amanda, Fafarrel, Tia Alci, Goreth, Marcello, Chamon, Zé Roberto, Jean, Mauro, Victor, Flavia, Adriana, Katia, Carla, Dona Ruth, Seu Humberto, Giana, Ana, Angela, Camila, Felipe, Kalu, Iolanda, Arthêmio, Glaucia, Leo, Francisco, Odília, Celina, Rosa Morena, Marechal, Selma, Iria, Tarcisa, Ethna, Dolores, Seu Ari, Tio João, Rosa, Zé, Simas, Enilda, Regina, Pauline, Adriano, Dora, Andrea, Maura, Diego, Lô Borges, Diogo, Luís Filipe, Tiago, Gilberto, Fábio, Carol, Márcia, Silvana, Ana, Donesia, Isaías, Daniela, Elaine, Alexsandra, Seu Joaquim, Seu Nico Preto, Carmem, Dona Dê, Ennio Morricone, Dona Maria, Lico, David Lucas, Soler, Andreia, Vassia, Marcela, Fernanda, Fátima, Márcia, Aline, Fernanda, Ernani, Rubia, Alex, Leonara, Sérgio, Roberta, Jorge, Gabriel, Vera, Camila, Andrea, Patrícia, Maurício, Edinaldo, Curupira, Tarbus, Luíza, Beth, Alessandro… Enfim, trajetórias que não cessam. Meu desenho, de um modo geral, fala sobre e com elas. Ensinam e aprendem com elas. Assumo todos os riscos nessa trama. Nenhum deles tem culpa do desenho que me faço em papel, lápis, giz pastel, carvão e aquarela.

Recentemente, de uns 15 anos pra cá, o artista Antônio Augusto Bueno, tem me influenciado bastante. Muito dos meus desenhos hoje se comunicam com alguns dos trabalhos dele que moram e são criados no Jabutipê[1].

Em 2020, pedi a ele e ao Irmão, Luís Filipe, que escrevessem dois textos introdutórios para o livro Descaroço, lançado pela editora Cousa. No livro estão poesias e desenhos.

O artista escreve: “E o que mais me encanta é que Gil consegue desenhar como quem solta uma pandorga… empina uma pipa… é livre como um pião que deixou o barbante para correr no chão…”

[1] Ateliê do artista, localizado no Centro de Porto Alegre-RS. Aberto em 2008, o espaço acolhe e produz inúmeros projetos artísticos.

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