carta pessoal da fronteira vulnerável

Grifo - editorial
revistagrifo
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4 min readMay 11, 2023

por Bárbara Carnielli, artista destaque da edição

recomeço — fotoperformance, 2011

Cresci à beira mangue, cercada do encontro da água doce com a salgada, imersa na lama, berço da vida. Me criei no limiar, fronteiriça, múltipla, poética, caótica: volta e meia morro e nasço.

Trabalho compondo com o que a jornada me oferta, sempre em estado vulnerável, e é justamente nesse estado que eu me lanço à fronteira para outro.

defumador de flores, ervas e cristais, 2021

Minha poética se dá pela construção de territórios existenciais, que percorro usando a força na sensibilidade para com a efemeridade da vida que me cerca e as memórias que me afetam.

Discuto a barreira invisível do mundo trazendo elementos que comovem a minha pessoalidade: comecei a expressão identitária artística com forte tendência para a pesquisa dos significados das flores dentro do campo literário, geográfico, cultural e temporal.

afeto quântico, outubro 2019

O manuseio das flores me fez (e faz) vagar por esses territórios curiosa, me deixando cambiar com o tempo. Meu trabalho reúne memórias orientadas para o futuro, é concebido como processo de me manter em movimento dentro de contextos de vida culturalmente organizados em coordenadas espaço-temporais. Na locomoção sociocultural que caracteriza o nosso mundo contemporâneo, meu processo artístico implica atravessar fronteiras entre diferentes cenários, plataformas, expressões e técnicas, sempre aberta ao novo levando a identidade do que já absorvi e digeri.

balança cotejo — a intenção de compreender a presença, 2019

Nas minhas andanças pela minha atividade criativa, acesso diferentes territórios de expressão: sejam performances, instalações, registros, composições com elementos de potência natural (flores, ervas, pedras, etc), desenhos, esculturas, textos poéticos ou tatuagens.

Deixo ir e, naturalmente, algo nasce das entranhas. É com desejo que se cruzam as fronteiras.

o que tem dentro, 2019

Acredito que entre dois grãos de areia, por mais juntos que estejam, existe um intervalo de espaço. Existe a fronteira. Existe um sentir que é entre o sentir.

Aí está o mistério do impessoal, o “It” tão latente de Clarice, o pulo do gato.

A palavra, muitas vezes, não suporta o significado. Ela não cabe nos sentidos, o que fazemos com a falta dela? Há o respiro do gesto. O silêncio invisível. Estou pensando agora na imensidão da simplicidade no olhar atento aos detalhes.

O que nos salva? Sejamos generosos.

cabeça ayabas — nanã, 2022

Me familiarizando e experimentando fronteiras, transformei essa sensibilidade, às vezes debilitante, em uma capacidade e uma ferramenta para minha arte, que me ajuda a sintonizar e expressar condições humanas e, por exemplo, a atmosfera de um espaço.

Minha sensibilidade aumentada é agora um meio que permite que mais sinais das células do meu corpo (de eventos químicos e energéticos) atinjam algum tipo de consciência pré-consciente da minha mente.

floral para clipe de vivian kuczynski, 2019

Estes são sinais que geralmente são filtrados pelo cérebro, mas agora, na minha opinião, são traduzidos em várias “coisas” da mente, como visuais, aromas, palavras, movimentos e cores. Talvez alguém possa chamar esse processo de sinestesia de múltiplas formas. Eu chamo de atravessar fronteiras; esse espaço e tempo intermediários de sinais e sinestesia, o subsensorial.

defumador de flores, ervas e cristais, 2021

Um exemplo que me ocorre é o de que após um tempo diligente pessoal e artístico, descobri que em muitas casas sofria com o ar interno, principalmente se a casa estivesse infestada de mofo. O mofo pode produzir microtoxinas, toxinas nervosas — semelhantes ao mercúrio.
Meu sistema nervoso, agora bem treinado — sensibilizado — reagiu a essas toxinas.

Em casas mofadas, senti dor, choques elétricos nos nervos e dificuldades cognitivas que eventualmente pareciam ter um leve efeito alucinatório em minha mente.

floral para clipe de vivian kuczynski, 2019

O efeito de cruzar fronteiras é manifestado na verdade, e quem aproveita a oferta salva o movimento genuíno. Reverencio a morte vida como a respiração do mundo.

A existência é um fio condutor subjetivo.

composição floral afetiva, 2020

Pra você que me lê,

o reflexo do agora que está a atravessar fronteiras.

bar.

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