coisa útero

Grifo - editorial
revistagrifo
Published in
4 min readApr 20, 2023

aline prúcoli

por mim eu arrancava tudo. [1]

.

por mim eu arrancava com a própria mão.

.

enfiava o punho fechado num soco lento no fundo de tudo.

.

bem lá embaixo. [2]

.

abrir a mão não mais punho.

.

cravar as unhas na carne.

.

puxar

.

rasgar tudo depois na fúria de cada dente.

.

por mim eu arranca hoje.

.

o útero.

.

arrancava por mim.

.

à mão.

.

enfiava os dois punhos em soco lento na carne rubra.

.

abrir as duas mãos não mais punho e nunca carinho.

.

cravar a s d e z u n h a s na carne convulsa.

.

rasgar com as duas mãos furiosas sem levar aos dentes.

.

arrancava por mim o útero inteiro e o que nele resta de não.

.

arrancar o útero na demora milenar da violência.

.

arrancar a violência na mãe pelo útero.

.

arrancava a dor na avó [3] com violência pra não doer mais.

.
arrancava o não a elas com a fúria de todos os dentes.

.

com os dentes delas por mim eu arrancava.
.

por mim arrancava agora mesmo.
.

por elas neste instante

.

sei
do início
e
,
da porta
de entrada
,
a saída
a janela
a varanda
o foço
.
sei
do amor
e
,
da falta
,
o nojo
.
sei
do fim
(e)
da fé
:
algo
pouco
.
sei
do mato
do manto
das aves
do lago
e
,
do fundo
,
o poço

fechar a mão
.
enfiar

.
o punho.

a té o
f
u
n
d
o
bem

e
m
b
a
i
x
o
fundo
milenar
o soco lento

na
d e m o r a
da violência
milenar

.

.

.
não dói
mais
abrir a m ã o
não mais
punho
cravar
u n h a s
FORÇAS
mágoas
na carne
rubra
mágoa rubra
arrancar
c o m d e z u n h a s
levar aos dentes
mastigar
e

cuspir
o útero
tudo o que nele
é
resto
o
r
e
s
t
o

.
por mim
arrancava
agora
mas dá
trabalho [4]
o punho
a força
a mágoa

a d e m o r a d a v i o l ê n c i a m i l e n a r
dá trabalho [5]
dá raiva
dá nojo
demais
dói demais
a fúria de cada dente
o rasgo d e c a d a u n h a
o fundo
o mais
fu
nd
o
nelas todas
muitas
m u i t a s u n h a s
e dentes
e fúrias
e FORÇAS
e nãos
os nãos
se fossem

um SIM
arrancava agora
mesmo
por mim
um SIM
do útero.

[1] tudo que age em tudo, e em nada se imiscui — é o céu. a via de chuang tzu (por thomas merton)

[2] fui então levada lá embaixo em estado cataléptico. […] por fim, entrei sem dor naquele estado de prostração que geralmente se segue a esse tipo de tratamento. leonora carrington

[4] segundo karl marx, trabalho é o tempo social necessário para produzir mais valor. a mulher gasta um tempo social
imenso, mas ela não produz mercadoria, isto é, mercadoria real e, portanto, mais valor. as mulheres são o grupo de
pessoas responsáveis pela produção de valores de uso nas atividades associadas ao lar e à família. nesse sentido, as
mulheres não são excluídas da produção de mercadorias, a sua participação no trabalho assalariado ocorre, mas, como
grupo, não tem responsabilidade estrutural nesta área e tal participação normalmente é considerada transitória. Em
outras palavras, não é obrigação estrutural da mulher estar no mercado de trabalho assalariado e produzir mercadoria,
mas é obrigação estar no ambiente doméstico e cuidar dos filhos, obrigações que nunca serão imputadas aos homens.

[5] sobre a relação entre mulher e trabalho, favor ler: alexandra kollontai, clara zetkin, rosa luxemburgo, betty friedman,
margaret benston, selma james, maria rosa dalla costa, lise vogel, susan ferguson, nancy fraser, tithi bhattacharya, cinzia
arruza, silvia federici, maria mies, vandana shiva, leopoldina fortunati, angela davis, roswitha sholz.

*a revista grifo é uma publicação independente e coletiva da Grifo — editorial, e a-borda os enlaces entre arte, política, filosofia e psicanálise. você pode nos apoiar com grifos, palminhas e compartilhamentos nas redes sociais.
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