corpo e variação de afetos na produção criativa

Grifo - editorial
revistagrifo
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8 min readDec 14, 2022

Carolina Zechinatto

colagem com bordado de carolina zecchinatto

os afetos que nos atravessam mudam em sentido, intensidade, presença ou ausência em diferentes tempos e espaços. isso reverbera no aumento ou diminuição da potência de agir e no tipo de linguagem que nos toca e faz sentido naquele momento-lugar.

quando a produção criativa está ancorada naquilo que somos, acreditamos e vivemos de corpo inteiro, há sempre um fio condutor, ainda que as coisas produzidas pareçam desconectadas num primeiro olhar.

se nos mudamos geograficamente, quando nosso corpo muda ou quando os afetos que nos cercam mudam, como permanecer criando da mesma forma, com a mesma linguagem/técnica, com as mesmas ferramentas?

manter a terra fértil e nutrida exige a variação e variedade do que ali cultivamos. esse pensamento vale para os cultivos agrícolas, para as relações afetivas e, penso eu, para a produção criativa também.

como aceitar o tempo cíclico? o findar das coisas? e entender que aquilo que não cresce mais pode voltar a brotar em outro momento? as linguagens entram e saem para acessar emoções&sentidos que nos compõe ao longo do tempo. e tudo se interliga de alguma forma. são camadas.

mas como fazer essa transição e celebrar a oscilação de ciclos, afetos e linguagens quando nos é exigido o contrário? especialização, compartimentação, constância, velocidade. como dar consistência a um projeto criativo que está acoplado a um corpo inconstante e suscetível aos afetos e os atravessamentos histórico-sociais de seu tempo e lugar?

para experimentar é preciso tempo.

nesse fluxo de pensamento, trago alguns trechos selecionados dos registros que faço sobre meu processo criativo dentro da desalinho, projeto que desenvolvo desde 2018, ancorada no bordado livre manual. são escritos dos últimos meses, que narram também um processo investigativo iniciado há cerca de 3 anos sobre a saúde do corpo que sou, desde o início de uma tendinite no punho que limitaram abruptamente meu trabalho com o bordado e dores que avançaram para toda a região dos membros superiores. em novembro desse ano, após muitos exames e consultas a especialidades médicas variadas, recebi o diagnóstico: fibromialgia.

além da mudança corpórea, a geográfica: voltar de florianópolis para a casa dos pais no interior de são paulo. como a produção criativa é afetada por deslocamentos e limitações físicas? o intuito, inicialmente, é apenas compartilhar inquietações e seguir no movimento de pensar arte-corpo-espaço-sensibilidade, sobretudo de que formas os procedimentos criadores e a prática da experimentação possibilitam construir a experiência estética como ação intencional e cotidiana em uma vivência comum, sem perder de vista a multiplicidade de corpos que estão em constante variação.

percebo que a atenção aos próprios gestos e ao processo criativo tem implicações no fazer geográfico: se abrir às diferenças, sabendo quem se é, torna o fio condutor mais claro — as escolhas podem ser mais conscientes e os gestos mais significativos.

a partir daqui, deixo o convite para adentrarem {com delicadeza} em um universo íntimo e de vulnerabilidade:

16 de junho, 2022

demorei muito tempo pra aceitar (e ainda me custa) que a desalinho não seria mais a minha fonte de renda principal. perceber que eu não podia fazer a coisa que eu mais sou apaixonada no mundo — o lugar onde me reconheço — por uma limitação física é a maior frustração que eu já senti até hoje. dói dói.

precisei me encaixar em outro trabalho pra pagar as contas que não deixam de chegar todo mês. um trabalho que me demanda um ritmo e um tempo muito diferentes do tempo lento que me acolhia. tem sido um processo. encontrar brechinhas pra conseguir avançar nos poucos projetos de bordado que dei conta de assumir, eu sigo em doses homeopáticas.

‘é transitório’, repito baixinho pra mim mesma. e me esforço pra acreditar nisso. é transitório.

o corpo sente tanta falta de bordar! que saudade de quando meu punho sustentava a densidade da agulha.

tudo que passei, desde o início da desalinho em 2018 até agora (e como segue sendo), foi à base da experimentação. da tentativa e do erro. e tentar e errar e acertar e tentar e errar e errar e desistir e recomeçar, cíclico. compreender o erro como parte essencial e intrínseca do processo. me compreender como um ser errante, em múltiplos sentidos.

pois ser errante também é estar sempre em movimento e eu sou uma pessoa que já se mudou e recomeçou em diferentes lugares muitas vezes, sem sentir que encontrei onde quero fixar raiz. assim como não encontrei uma linguagem artística única que queira abraçar. e isso é preciso? é só essa a alternativa? penso que não, é outra coisa qualquer que preciso fabricar.

não vou abandonar o barco que sou: eu permaneço.

10 de julho

tenho sentido crescer em mim, de maneira significativa, a potência do fluxo criativo. me vejo com mais anseio por criar coisas novas depois que coloquei em prática as primeiras experimentações com tingimento natural e impressão botânica. estou empolgada com as possibilidades, com vontade de testar, estudar, aprender, misturar paixões… é como se pudesse vislumbrar esse encantamento mais duradouro. algo que eu posso amar fazer e estar imersa tanto quanto o bordado, sabe?

eu preciso cultivar a dor pra poder criar? ou é possível acessar essa energia por outras vias, sem perder a força?

a fenda que se atravessa só funda o caminho.

30 de julho

esqueci que também produzo coisas lindas nesses momentos de encantamento. como toda criação acompanha meus ciclos, parece tão claro agora! revejo minha jornada através das fotos, compartilhamentos e escritos e está tudo ali tão refletido. a sensação que reverbera entre momentos de luz & sombra. cada qual do seu jeitinho. e, por mais que doa, não quero deixar de oscilar porque isso me move. eu sei que sim.

criar é o que faço quando estou no limbo e é também o que me tira de lá.

17 de agosto

se eu vou seguir com dores de qualquer forma, que seja fazendo algo que amo com todas as forças.

tanta coisa já foi interrompida nesse processo com o bordado. eu tinha tanto pra avançar e explorar, meu trabalho estava cada vez melhor, crescendo, mais encomendas, novos pontos, a pintura de agulha. hoje tudo que crio é tão básico no quesito técnico que acabo me diminuindo muitas vezes.

penso no potencial que tinha com aquele corpo anterior. mas o corpo que sou hoje é outro. não tente usar a mesma medida, carol.

28 de setembro

acho que ‘tateando’ é a palavra pra esse movimento.

tatear as bordas para compreender limites

escavar abrindo frestas

hoje me deu saudade/vontade de escrever de novo.

e as palavras me aparecem como sinais:

errante

esperança

efêmera

escultura do instante

talvez seja também sobre ruídos, silêncios e ausências via algo que atravessou o tempo guardando uma cena que ali se resgata e perdura, mas nunca estática.

16 de outubro

perdi as contas de quantas vezes já mudei as coisas de lugar aqui no quarto. o quanto fui editando, cortando, adicionando e reposicionando aos poucos desde que me mudei pra cá. como meu olhar estético também foi mudando. quero cada vez menos coisas, abrindo espaço pras energias fluirem e repensando sempre sobre aquilo que realmente importa e tem significância pra que eu possa me sentir acolhida mesmo em um espaço muito pequeno e com diversas outras questões rondando.

o mínimo necessário. ir percebendo quais movimentos fazer pra que eu me sinta mais confortável em meio às dores, sem deixar de dar vazão às emoções via arte sempre que a vontade brota.

mas meu punho dói, meu pescoço, as costelas, tudo… tento respirar e ir mais devagar.

3 de novembro

acabo de me dar conta de que é na colagem mesmo que me encontro e me coloco com mais intensidade. o bordado faz parte disso. ele completa, ele literalmente costura e dá fio às camadas todas.

me emociono.

o tecido vai seguir, mas talvez só na impressão botânica. intervenções mínimas de bordado: o arremate.

silêncio é importante também. o espaço, preparar o terreno, os microajustes. parar pra escrever, ter tempo pra isso, estar inteira.

alongar meu corpo.

por favor, corpinho.

7 de novembro

reparo nas costelas saltando, acompanho de perto o movimento lento dos ossos. meu peito abrindo e fechando… parece que poder ver até onde sinto que a dor chega me dá uma falsa sensação de controle.

às vezes parece que meu corpo sabe exatamente os movimentos que precisa fazer para se ajustar. mas não queria ter que me ajustar tanto.

estou voltando pro fluxo criativo aos poucos. sensação de fechamento e abertura outra vez.

garimpo inesperado no brechó hoje me deixou empolgada pra retomar os testes com tingimento natural. achei tesourinhos em forma de roupa. parece que cada vez mais me aproximo de um sonho antigo que nem sei se existia.

moda é política. é também forma como me afirmo no mundo. há intenção/escolha/aposta consciente. que tipo de roupa quero vestir e por quê? que tipo de arte quero produzir e consumir e por quê?

estou interessada em como a gente se coloca no mundo.

‘não estou conseguindo explicar a minha ternura

a minha ternura, entende?’

(ana c.)

22 de novembro

entre o papel e o tecido, habito

são meus suportes, sustentação (e mais que isso)

extensão.

não posso esquecer dos meus objetivos e anseios com isso. minhas inquietações são essencialmente filosóficas parece. meu trabalho verbal-intelectual pode ser nesse sentido.

a produção artística em si não vai dar conta. e não precisa dar.

tenho a questão econômica me atravessando também. como eu volto a viver da desalinho?

uma coisa que percebi foi que nas últimas colagens que fiz, o bordado já entrou de forma diferente. em algumas, a linha praticamente nem aparece pra além da assinatura.

usei bastante o recurso de deixar só os furinhos do alfinete no papel. tenho gostado bastante dessa estética. parece que o ‘bordado’ como era na minha vida já não faz tanta falta. ou aprendi a suprir de outras formas?

conseguir expressar o que quero sem precisar do bordado como protagonista. achei que não sustentaria essa ausência.

4 de dezembro

uma baixa outra vez. não se perca. por favor, não se perca de novo, carol. não se deixe abater tanto. não se coloque no lugar em que é mais fácil e automático pra você se colocar.

use de trampolim esse choro.

ficar apenas o tempo necessário para preparar o corpo pro impulso do salto — em direção ao que quero fabricar pra minha vida. e sei que posso.

confia.

Sinto forte o espírito de mudança que ronda agora. começo a pensar mais em como fazer a transição pra vitória.

como dói, ainda assim, a clareza.

mas o peito se abre forte, ao mesmo tempo em que está imerso na dor — concreta dor?

*fibromialgia*

isso etiqueta e aquieta a angústia?

sério, vou enraizar em algum canto ou a vida é isso?

parece que estou sempre me preparando pra partir, afinal.

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