das leituras do Outro

Grifo - editorial
revistagrifo
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6 min readMay 2, 2023

dois olhares, duas obras

Comer o fruto e a semente: “A nudez extinta” de Isabela Sancho

um olhar de Lureen Asei.

Escolher ler um livro é sempre uma aposta. Uma aposta de que o discurso de outra pessoa vai capturar nossa capacidade fantasística e perturbar as palavras que trazemos para falar de nós mesmos. “A nudez extinta” é a aposta mais bonita que fiz nos últimos tempos.

O livro de Isabela Sancho, publicado pela Editora Urutau em 2022, tem dezesseis contos curtos. Eles são pequenos redemoinhos. Cada um deles nos traga para uma história nova com sua própria voz narrativa. Essas vozes não são ecos. São, cada uma, um trabalho de linguagem que esculpe as personagens (estas, “escultura[s] de fim do inverno”, para pegar emprestadas palavras da autora) e suas narrativas. As vozes são singulares, diversas, criando belas alteridades.

As ilustrações do livro também vêm das mãos de Isabela Sancho: um abajur, uma vela, uma taça, um travesseiro repousado contra uma cabeceira — há uma para cada conto. Parecem sugerir uma poética dos objetos mundanos. Ali, juntos, compõem algo do espaço negativo, do não-narrado, dos meandros das existências desses personagens que a escritura do livro nos dá a intuir. Os objetos se engancham nas narrativas de modo a terminarem imanados delas: um saco de pão, a borracha de uma artista, chaves, jogos de chá, um tubo de tinta seca.

O lirismo da autora também se condensa no uso de outro tipo de objetos. Aqueles que, já à primeira vista, dão o tom do espanto de cada conto em que os descobrimos: uma pintura pela metade, a topsy-turvy doll, as peças de taxidermia, uma estante caída em um caos de livros destruídos.

Encontramos as personagens de Isabela Sancho na cama insones, em casamentos, funerais e na França. O conto do título, “A nudez extinta”, aposta na pele, ou seja, no limite do eu. Mostra o tato como um atentado de Eros e — por fim — tenta o leitor com uma nudez impossível, uma que nos livrasse das imagens destinadas a habitarem nosso corpo.

O livro, dorso coeso dessas multidões, tem, para mim, algo de carta. Um pacto endereçado a mim como leitora. Um pacto a ser feito com as ambivalências e os pequenos lutos. Um pacto humano com a incompletude presa nos diminutos espólios das vidas que fazemos. Ler os contos de “A nudez extinta” é comer um fruto e também as sementes. Entender a amargura suja de sumo doce.

No livro “A nudez extinta”, Isabela Sancho “(…) fareja o insólito, busca rumores como a pegadas.” (na página 9 do livro). E não queremos ser deixadas para trás no caminho.

Uma poesia levada

um olhar de Antônio Carlos Félix.

Depois de ler e ser lido pela poesia de Tássio Jubini Venturin, fiquei com a alma lavada de conteúdos reduzidos a restos significantes. A sensibilidade do poeta para as coisas ínfimas que desencontramos em nosso cotidiano faz lembrar a descoberta freudiana de que os restos diurnos servem ao inconsciente na composição e na formação dos sonhos.

Os fatos corriqueiros, destacados da realidade, ganham vida própria. Na lente de Tássio, eles são fotografados por palavras que quase capturam a efemeridade do momento.

Deixar-se levar pela poesia levada é uma aventura de alma no universo da linguagem. Assim, entre um aqui e outro acolá, vamos fazendo parte do cenário poético, tecendo sentidos fugidios.

Sua poesia é constante movimento: “Ensaio, entro e saio”. Ele mesmo nos diz que escreve feito criança levada que “monta um quebra-cabeça com peças inventadas (…) e não inventadas por ela mesma.”

Às vezes, a forma interfere no sentido e faz sentido! As letras tornam-se autônomas fazendo travessuras ou levaduras de linguagem.

Encontramos, em sua composição poética, a presença do inefável que, não se deixando fixar num sentido literal, descobre um instante e um ponto de fuga:

Fita o que foge

O que foge

Foge para não ser fitado.

Em certos momentos, a poesia imita um ato, movimentando nosso olhar para sabermos o porquê o lado não olhou: “Olhei para o lado e o lado não me olhou.”

Na poesia da geometria do álcool, uma sutileza alcoólica nos tira da realidade — “Se tudo rodou, é porque a reta virou círculo.”

Tássio também invoca a ilusão de que um dia fomos tudo, como se a poesia roçasse um ponto de origem de onde fosse possível experimentar, num verso, o uni-verso: “Garçom, por favor, me traga a primeira dose de tudo.”

A poesia levada tem gosto pelo imprevisível, extraindo gozo do irrepresentável: “Gosto da barbárie factual da hora inexata e de aproveitar o êxtase do momento inefável.”

A natureza ganha vida e morte através de uma simples indagação: “A beleza do rio está na coragem de sempre suicidar-se?” . O travesseiro, na intimidade do sono, expressa a sua delicada arrogância em se fazer comparecer no sonho de quem dorme, dizendo “Eu sei que você sonha comigo. Assinado: Travesseiro.”

O poeta demonstra, no movimento da escrita, como abordar o indizível: “Penetrar no submundo vago da linguagem para encontrar a potencia do não-dito; experimentar outras composições linguísticas de forma a tencioná-las seu próprio limite pré-estabelecido.” E se pergunta — “Até onde pode ir o dizer?”

O som da poesia levada pede passagem e apela a uma escuta capaz de acolher o pouco — de — sentido. Mas se acaso o sentido ainda prevalecer, sugere que “um tapa no pandeiro desfaz o nó.”

A poesia de Tássio persevera ali onde faltam palavras e pensamentos, no acontecido do vácuo: “insisto inocente no inexistente.” Ele apresenta ainda uma delicadeza subjetivante capaz de se formular da seguinte maneira: “Colher os frutos da miséria esplêndida do nada e calcular sua área.”

Passeando pela poesia levada de Tássio, podemos experimentar uma infinidade de afetos que nos convidam a viver, de maneira inesperada, outras cenas na cena do mundo.

O levado de sua poesia nos faz sentir uma margem de liberdade sobre a determinação da linguagem, descobrindo formas sensíveis no intervalo das palavras. E nesse entre dos intervalos, vamos, aos poucos, descobrindo que somos feitos dos efeitos da linguagem; efeitos que só a poesia é capaz de transmitir para além das palavras.

Por fim, o poeta confessa o seu segredo sem o revelar: “Se o ínfimo não me atraísse eu não seria escritor.”

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