Deixa a festa soar, convosco chegamos aqui no lugar
por Pedro Silva Marra
Ao acordar quem está dormindo, sons atravessam e recriam fronteiras de espaço, de tempo, de ritmo. Em suas intensidades, são apenas parcialmente absorvidos ou refletidos por muros, paredes, corpos ou acidentes geográficos; invadem estas barreiras físicas e criam novas, tão materiais e protetoras quanto as anteriores. Suas repetições estruturam sensível e sensorialmente o lugar; criam regimes audíveis — por vezes mais
duráveis que a duração dos sons que os originaram — que persistem na memória e imprimem ali suas velocidades e andamentos. Delimitam períodos do dia, do mês, do ano e suas respectivas sazonalidades. Regulam e modulam os ritmos das práticas que acontecem dentro de sua área.
Até que um novo som, mais intenso que o anterior, venha a invadir os limites previamente estabelecidos e, ao repetir-se cotidianamente, instaure um novo regime auditivo, a transformar as durações, velocidades e ritmos das práticas de conformam o território. Talvez por isso, ataques à religiosidade afro-brasileiras sempre se iniciam pelo som. Tais manifestações, tem seus instrumentos musicais quebrados, suas performances musicais proibidas ou restritas a horários do dia, para que assim sejam silenciadas. No espaço sonoramente desocupado, uma nova sonoridade poderá ser então imposta, com sua própria espiritualidade, a substituir a anterior.
Por isso, deixa a festa soar. Convosco chegamos aqui no lugar.
[Registro em áudio da Folia de Reis, em Goiabeiras, Vitória, no dia 05 de janeiro de 2020.]
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