ESCREVIVÊNCIAS¹

Grifo - editorial
revistagrifo
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5 min readDec 1, 2022

Isabella Bettoni

desenho com lápis e giz pastel — gil maulin

Éramos um grupo de mulheres. Cada uma com sua trajetória e localização, geográfica, epistêmica, mulheres de diferentes regiões do Brasil, mulheres cis e trans, hétero, lésbicas, bissexuais, brancas, negras, do interior, mães, amigas, professoras, amantes, completas desconhecidas. A virtualidade e gratuidade possibilitaram aquele encontro e estávamos juntas, compartilhando algo sobre um aperto no peito. O contexto: alguns meses em pandemia e mais de 200 mil mortes e violações e violências e medos e lutas de tanto tempo. Apesar de, em razão de, éramos um grupo de mulheres em uma oficina de escrita poética, ousando nomear o mundo, nos identificarmos como escritoras, lermos umas às outras em voz alta, conduzidas pelas proposições. Nina diz: escrever é poderoso; escrever é uma vingança contra as gavetas armários e navios; escrever é resgatar outras vozes, tantas as vozes que vieram antes de você, de nós; escrever sobre si, nesse eu coletivo: é escrevivência. Não é narciso, não é cânone. Um grande susto: a poema.

A poema começa como um incômodo, se concretiza em um manifesto e ecoa como um chamado. Escuto atentamente, devoro com os olhos. Necessário mesmo é estranhar a língua, recusar a língua, movimentar a língua. Cada ordem e desordem das letras e das palavras deixa o seu gosto na boca que diz. O corpo escreve e constrói sentidos no mundo. Qual gosto que fica na boca que inventa. Quem? Que corpo? Quem é que diz, e quem escuta? Como é que se diz? Nina afirma: a poema é uma devir negra, indígena, selvagem, criança, bicha, sapatão, sem gênero, monstra.

Esta imagem me evoca a urgência e a necessidade que permeiam o meu(nosso) pensar e escrever o mundo. Gloria é quem diz: escrevo porque não tenho escolha, escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você, para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Uma imagem que diz sobre o movimento coletivo de construção de narrativas contra-hegemônicas, sobre a insurgência de vozes tantas cujas experiências foram silenciadas e um apagamento que mantém relações de poder e violência.

Existem corpas que são expulsas das possibilidades de enunciação, vozes altas e baixas, vozes sufocadas. Dentro dos feminismos, também há disputas e ausências: mulheres “outras” (a poema é uma devir negra, indígena, selvagem, criança, bicha, sapatão, sem gênero, monstra) deslegitimadas dentro do feminismo hegemônico demonstram as intersecções entre gênero, raça, classe, colonialidade, sexualidade. Grada diz sobre a fome coletiva de ganhar a voz, escrever e recuperar nossa história escondida.

Para a minha escrevivência, ando de mãos dadas à poema, a escutando, atenta, devorando a poema com os olhos, sentindo seu cheiro: na nuca da poema, há um emaranhado de fios e o perfume do mistério ancestral. Assim vou buscando palavras que me ajudem a escrever-me e a escrever o mundo. Escrever sobre a história e sobre outros mundos possíveis e impossíveis, não o impossível como aquilo que desiste, mas o impossível como potência do imaginário, do que inventa outra forma de viver. A escrita como re-visão de Adrienne diz respeito a um ato de sobrevivência, de conhecer a nós mesmas olhando para trás sem passar adiante a tradição, mas quebrando as correntes que nos prendem a ela.

Esta é a imagem: um grupo de mulheres partilhando suas diversas experiências e escrevendo juntas.

¹ Este texto integra o Posfácio do livro Não tentar domar bicho selvagem, de Isabella Bettoni (Quintal Edições, 2022). Ele também faz parte do artigo “Escrevivências”, publicado por Bettoni na coletânea Nas entranhas do direito: métodos e escritas do corpo (Editora Expert, 2022).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Título da seção I “Eu não tenho para onde correr, sou só:” Gabriela Soutello. Ninguém vai lembrar de mim. São Paulo: Pólen, 2019. p. 21.

Poema da seção I: Bianca Dias/Julia Panadés. Névoa e Assobio. Belo Horizonte: Relicário, 2017.

“Para além do funcionamento pleno, o fracasso também é um modo de ir” Júlia Panadés.

“Onde podemos acordar de repente?” Oficina de poesia da Maria Isabel Iorio.

“A gente tá aqui, cê tá vendo?” Gabriela Soutello. Antes que eu me esqueça, 50 autoras Lésbicas e bissexuais hoje. Belo Horizonte: Quintal Edições, 2021.

“De cara voltada para o público” Wislawa Szymborska, no poema Impressões do teatro Nós-outros — peças do Grupo Galpão

“O conhecimento instalado no corpo”; “prestar atenção na vida”; pensar o impossível (não o impossível como algo que desiste, mas o impossível como potência do imaginário, do que inventa outra forma de viver): PASSÔ, Grace, ABREU, Marcio, NAIRA, Nadja. Preto. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017. p. 10, 66 e 67.

ANZALDÚA, Gloria. La consciência de la mestiza / rumo a uma nova consciência. In: Revista de Estudos Feministas, v. 13, n.3, Florianópolis Sept/Dec 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&am p;pid=S0104–026X2005000300015>

ANZALDÚA, Gloria. “Falando Em Línguas: Uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo.” Revista Estudos Feministas 8, no. 1, 2000. p. 229–236. KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

RICH, Adrienne. Quando da morte acordamos: a escrita como re-visão. In: BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI, Ildinei; COSTA, Claudia de Lima; LIMA, Ana Cristina Alcioli. Traduções Da Cultura, Perspectivas Críticas Feministas (1970–2010). Editora UFSC, 2017. p. 64–90 (p. 67).

RIZZI, Nina. A poema, caminho para alcançar a própria voz e tantas outras. Disponível em <https://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/71-ensaio/2579-nina-rizzi-a-p oema,-caminho-para-alcan%C3%A7ar-a-pr%C3%B3pri a-voz-e-tantas-outras.html>. Acesso em: 10 dez. 2021.

WITTIG, Monique. As guerrilheiras. Trad. Jamille Pinheiro Dias, Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2019. p. 98.

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