geografia es amor: um mapa íntimo & estrangeiro

Grifo - editorial
revistagrifo
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4 min readJun 2, 2023

por carolina zechinatto

corria o ano de 2012 quando alcancei com a mirada o livro. a capa vermelho-carmim trazia: ‘geografia es amor’ (1). aproximei o corpo da estante e toquei o livro protegido por um saco plástico. era a primeira edição. parecia raro e importante, escrito por jose garcia nieto, de quem eu nunca ouvira falar. prêmio nacional de poesia. edição de 1969. 18 euros. hesitei, fazendo as contas na cabeça do quanto aquilo me custaria em reais. eu já tinha sido fisgada. saí do sebo faiscante pela ruela como se tivesse encontrado, por puro golpe do acaso, um tesouro esquecido.

essa cena aconteceu na cidade de salamanca, espanha. tinha sido contemplada por uma bolsa de estudos enquanto cursava geografia. era a primeira vez que cruzava as fronteiras que bordeavam o brasil: terra & língua. passeava cuidadosamente entre as palavras recém-descobertas e a cadência poética dos sons que emitiam. lembrei:

fazer v i b r a r a língua

com mais de 30 obras publicadas, jose garcia nieto é figura relevante na poesia espanhola, destacando-se na corrente neoclássica do pós-guerra. nasceu em oviedo em 1914, passou a infância em soria e toledo e aos 15 anos mudou-se para madrid.

permaneceu preso por 7 meses durante a guerra civil espanhola (1936–1939) e, em 1940, publicou seu primeiro livro de poemas ‘víspera hacia ti’. sempre com uma lírica clara e métricas tradicionais e harmoniosas, seu trabalho recebeu diversos prêmios ao longo do tempo, sendo o prêmio cervantes de literatura de 1996 a sua máxima realização nas letras espanholas. faleceu em madrid em 2001, aos 87 anos de idade (2).

de acordo com minha investigação, existe apenas uma obra de garcia nieto traduzida para a língua portuguesa em 2022: ‘às margens do rio do douro — pequena antologia poética de jose garcia nieto’, edição especial disponível no acervo da biblioteca do instituto cervantes de salvador e jamais comercializada.

como acessar a geografia afetiva desse poeta e atravessar a camada de uma língua por vezes indizível? essa mesma que me tocou à distância, num sebo escondido em salamanca? percorro as páginas que me apresentam um mapa íntimo da espanha e vejo tecida ali a experiência de contar memórias estrangeiras a um filho ausente. tal narrativa, de alguma forma esburacada, fundiu-se à minha geografia particular.

ousar traduzir poemas: eis o desafio que me coloco. procurar dar sentido às palavras movediças, polivalentes, abertas em sua própria incompletude. palavras que não aceitam muros, saltam.

não é apenas a tradução equivalente que aponta o dicionário, nem mesmo a exata sequência da estrutura da frase, entende? é suportar o ritmo original. a atmosfera. movimentar-se com sutileza no terreno fértil do poema posto. perguntar baixinho: me concede essa dança? até onde podemos ir mantendo- nos coerentes ainda? a margem errante.

rios que transbordam pontes de significados ensinam a a b r i r caminhos.

I.
CAZA MENOR
(recuerdo de soria (3))

estremecidas en el aire,
las formas puras de los pinos
daban alarmas al paisaje.

hundido el pulso. yo era un río
como aquel río. era la hora.
nos encontrábamos los niños.

dueña temprana de la sombra,
iba mi mano con el agua:
rosa espejada en otra rosa.

y en los delirios de la rama
sin despertar, eran las aves
el corazón de la mañana.

}} ponte

PEQUENA CAÇA
(lembrança de soria)

estremecidas no ar,
as formas puras dos pinheiros
davam alarmes à paisagem.

pulso submerso. eu era um rio
como aquele rio. já era tempo.
ali estávamos os meninos.

amante antiga da sombra,
ia minha mão com a água:
rosa espelhada em outra rosa.

e nos delírios dos galhos,
sem despertar, eram os pássaros
o coração da manhã.

II.
RIO GUDILLOS
(san rafael)

no es la piedra más fuerte,
mi niño,
la que mejor sostiene
tu pie en el río.

no la más ancha,
sino la que se afirma
dentro del agua.

(¿cómo ha sido, dios mío,
todo lo andado?
¿dónde la carretera,
dónde el atajo?)

juntos, el mismo trance;
distinta orilla.
nada puedo enseñarte;
solo caminas.

}} ponte

RIO GUDILLOS
(são rafael)

não é a pedra mais forte,
meu filho,
a que melhor sustenta
o teu pé no rio.

não é a mais larga,
mas aquela que se afirma
dentro d’água.

(como terá sido, meu deus,
todo o caminho andado?
onde estará a estrada?
onde o atalho?)

juntos, o mesmo transe;
outra margem.
nada posso te ensinar;
caminhas só.

nesse brincar fronteiriço não (há) caminho sozinha,
apenas caminha, caminha
sobre o solo: caminho.

dez anos e mais voaram e continuo apostando que sim, geografia é
amor.

notas de rodapé:
(1) NIETO, jose garcia. geografia es amor. editorial kalíope: madrid. 1969, 130 páginas.
(2) informações retiradas do instituto cervantes, disponíveis em www.cervantes.es
(3) soria é a cidade espanhola na qual o autor passou parte da infância, pertencente à comunidade autônoma de castela e leão, é a província menos populosa do país, às margens do rio do douro.

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