Homens com medo de piscina

Grifo - editorial
revistagrifo
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5 min readApr 25, 2023

ou, as crianças que morrem afogadas na piscina da própria casa

por Lenio Carneiro Jr.

arte de bárbara carnielli

Os meninos se reúnem em volta da piscina. Correm e brincam de empurra-empurra.

Uma piscina é um buraco cavado no quintal, revestido de material impermeável e alagado até o ponto em que se torna possível um ser humano mergulhar, boiar e relembrar que apesar de mamíferos terrestres, nosso começo foi na água. Nessa mistura heterogênea pulsional que alguns chamam de instinto, se destaca a vontade de retornar à água, enrugar os dedos e trocar a vida real por alguns minutos de nado despretensioso. Se os oceanos e os rios não são nossos por direito, as piscinas sim nos pertencem. E toda piscina possui sua própria borda perigosíssima e deslizante, escancarando o perigo anunciado de quem arrisca um tibum apesar das chances de lesionar o queixo na beirada. O perigo da piscina é nosso. Precisamos dele.

Estou reassistindo Big Little Lies. No terceiro episódio da segunda temporada, há uma interação específica entre duas personagens forçadas ao vínculo deixado por um homem morto. São duas mães. O homem morto é filho de uma delas, que precisa atravessar pela segunda vez na vida a incompreensível perda de um filho. Esse mesmo homem morto foi o abusador da outra personagem, cuja maternidade forçada é resultado do estupro cometido. O vínculo entre as duas é justamente essa criança nascida da violência. A conversa entre elas é uma tentativa em vão de aproximação: uma reta longa em que uma está ancorada na extremidade da outra. Uma mãe que não consegue enxergar o mal no seu filho, seu sinônimo particular de bem, e uma outra mãe que não consegue enxergar o bem no seu sinônimo particular de mal, o homem que a estuprou.

No desenvolvimento da trama, é muito fácil sentir raiva da mãe do estuprador. Uma raiva crescente somada à escolha da direção da série em destrinchar a complexidade dessa mãe em luto até o ponto em que a maldade dela seja apresentada como uma justificativa para a maldade do filho. Nesse pequeno fragmento de conversa, porém, não precisamos de justificativas. Uma vez isolada, é uma situação impossível, repleta de atritos e uma ânsia difícil de ser amenizada. Essa pequena interação entre essas personagens colecionadoras de traumas é muito sutil em comparação às outras cenas da série. E nessa sutileza, a completa incompatibilidade entre uma e outra cria uma fronteira de duplo acesso: ambas querem fugir da violência em seu pior grau; uma violência que não as pertence.

O rastro de violência deixado por alguém nunca é esquecido. As vítimas sabem bem: o desprivilégio da dor é uma mancha na história da humanidade que insiste em se repetir e tende a piorar sempre que tentamos nos livrar da sujeira. Seja na História ou nas vivências, a violência afirma seu lugar invadido como coisa poderosa que é, difícil de escapar, impossível de ignorar. Nem sempre abrupta, seu rastro pode ser também uma cantiga de ninar que introduz o bicho papão desde muito cedo.

Os pacifistas costumam ser ironizados. São chamados de iludidos, cegos, negligentes, pamonhas. Passei uns anos me dizendo assim, pacifista. Lembro de confidenciar a uma amiga meu apreço pela neutralidade. Por que não um centro? Um ponto de equilíbrio eterno? Acho que cursamos umas dez matérias sobre guerras e admito que até hoje não me convenci de quase nada. Sempre gostei de clima ameno, períodos longos de silêncio e fragmentar meu possível ódio como se raiva picotada não fizesse parte também de uma certa violência.

Enquanto a busca por qualquer tipo de paz é uma escolha ingrata, o nosso contato com a violência é sempre obrigatório; invasivo. Não há estudo sério (teórico, literário ou poético) a respeito da humanidade que não leve em consideração o assombro da crueldade no comportamento humano. Somos nossa própria piscina, mas o risco das nossas bordas afeta tanto o eu, esse mergulhador frequente e intangível, quanto o outro, esse mergulhador visitante porém real.

Homens machucam. Deixam rastros. Os mais cruéis geralmente são parecidos comigo. Digito isso e preciso resistir à vontade de apagar a frase.

“Entre os meninos, brincar de luta é muitas vezes um sinal de amizade. Dois meninos que não são amigos geralmente não brincam de luta um com o outro.”

Penso nesses meninos. Sempre penso nos meninos; nos meninos que fui; nas configurações de meninos que desejei e conseguir ser. Escrever é um ato grotesco de tão obsessivo. Existem coisas — e chamamos de coisas porque não há palavra mais genérica e precisa — que nos amarram e nos conduzem a um espiral de mergulho muitas vezes despressurizante. Sei que a condição masculina me interessa porque sempre acabo voltando para isso, como se apesar das reflexões teóricas e pesquisas progressistas sobre gênero, o meu menino interior ainda desponte como alguém que necessita de cuidado.

Meu melhor amigo é um homem cuidadoso. Apesar de nossa casa ser o cerrado, já dividimos mais de uma vez o privilégio de entrar no mar em comunhão. Ele tem uma filosofia própria sobre o mar. Diz: uma vez que a água salgada passa do umbigo, as máscaras caem; as pessoas brincam e contemplam a existência. Na água, somos meninos outra vez.

Existe uma outra brincadeira que é assim: um menino pergunta “você já viu Deus?” e então afunda a cabeça do outro. Meninos aprendem isso mesmo fora d’água.

“Brincar de luta é uma maneira de restabelecer a conexão, mas dentro dos limites da masculinidade patriarcal aceita, sob a perspectiva de que os meninos não serão expulsos da sociedade por se envolverem em uma interação física que seja violenta ou agressiva.”

Meu melhor amigo não sabe boiar, é bem ridículo. Só entende de mergulho. Às vezes brincamos de xingar um ao outro, mas colecionamos juntos muito mais abraços do que beliscos. Ser dócil faz parte de uma escolha maior.

Voltamos para a areia e então somos homens novamente. Prefiro ser como sou na água — garoto, moleque, pirralho, ex-telespectador de Pânico na TV. É muito mais confortável desamadurecer a condição masculina até que não exista mais culpa. Aos berros, violência. Em silêncio, também.

O mar fica longe e não tem borda. Piscina tem. São mesmo perigosíssimas e deslizantes, essas bordas. Ainda assim são apoios, onde é possível descansar os braços e respirar. Talvez as bordas só sejam perigosas para quem está prestes a mergulhar.

O primeiro pulo que os garotos aprendem se chama bola de canhão.

Só cuidado com as estripulias, meninos.

Saltar é sempre um exercício de fé.

BOLA, J. J. Símbolos de grupo e oração: violência masculina, agressão e saúde mental. In: Seja homem: a masculinidade desmascarada. Dublinense, 2020.

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