Ingredientes para novas receitas de famílias
Entrevista com Hugo Estanislau, por Lívia Corbellari
“Não tem o Alfred Hitchcock que está sempre em seus filmes? É isso. Eu me sinto melhor se eu estiver perto dos personagens. É como se eu atuasse com eles e não apenas dirigisse”. É dessa forma que o escritor Hugo Estanislau cria seus personagens, se colocando, de alguma forma, em suas histórias também.
Formado em Letras pela Ufes, premiado pelo prêmio Ufes de Literatura em 2014 e autor dos livros “Boneca: atrás da feição oCa” (2016), “O Ato do Tio” (2019), “Um futuro em Cenataum” (2020) e “Receita de Família” (2022), o escritor revela alguns dos seus segredos de escrita.
Como costuma ser o seu processo criativo? Você tem uma rotina ou escreve apenas em alguns momentos em que se sente mais disposto?
Não me mate por isso, mas eu não acredito muito em inspiração pura e simples, algo que vem do além… Escrita, pra mim, é um esforço e um trabalho. Quando eu estou produzindo eu crio uma rotina de escrita e de leitura. Acabo tendo dois empregos e fico mortificado. Tento orientar minha criatividade, lendo, pesquisando, desenhando e relaxando também. Geralmente, eu crio etapas e sigo elas até considerar o projeto pronto. Quando a inspiração vem sozinha eu anoto e guardo por muito tempo, mas quase nunca as ideias vindas da inspiração prestam sem que sejam muito, muito polidas.
Você já me disse que gosta de se espelhar em um dos personagens para ficar mais fácil de criar a história e fazer as atitudes das personagens mais reais e humanas. Queria que comentasse um pouco mais sobre essa técnica.
Eu sempre fiz isso e nunca percebi. Não tem o Alfred Hitchcock que está sempre em seus filmes? É isso. Eu me sinto melhor se eu estiver perto dos personagens. É como se eu atuasse com eles e não apenas dirigisse. Assim eu ajusto o foco narrativo e a verossimilhança. Por falar nisso, minha leitura atual é, justamente, um livro de arte Dramática de Stanislaviski e eu percebi muita correlação com criação literária e, ao mesmo tempo, percebi que atuo junto com meus personagens pelo prazer de sentir, com eles, as situações mais inusitadas.
“Boneca: atrás da feição oCa” é seu primeiro livro de contos. Por que você escolheu usar a boneca, e seus múltiplos sentidos, como metáfora para abordar questões LGBTQIA+?
O nome boneca veio do processo editorial. Eu estava produzindo meu primeiro livro com a Pedregulho (porque boneca é o segundo livro, não oficialmente; pois eu tenho um livro que nunca saiu — tipo o “Quiche”, do João chagas? Foi isso.) e eu fiquei apaixonado pelo termo boneca, usado para as prévias editoriais dos livros, o que eu não sabia por inexperiência. Eu já tinha contos em que bonecas apareciam e, então, decidi usar a boneca como signo do projeto. Acho que todo gay afeminado já foi chamado de boneca na vida. O livro trata do processo de odiar ser chamado assim e, depois, amar ser chamado assim. A boneca, veja: é até um termo do pajubá para aids! Os gays têm muito contato com o ato de brincar de boneca e brincam com estar perto do feminino. Por isso, escolhi colocar a cara pra bater e chamar de boneca. Jogar minhas inseguranças pros outros. Falo assim pois eu pensei em deixar de fora o termo boneca no título, e colocar apenas “por trás da feição oCa”. Mas não: Continuei. Quem tem um livro chamado boneca? Uma menina de quinze anos? Beijos, aceitei. Aceitei o que a literatura me pedia e chamei de boneca. Ou seja, boneca ( que é um livro de contos, a meu ver, de leitura difícil) faz parte de um processo interno que eu tive de vencer para estampar a boneca na minha cara e dizer: adoro ela.
Como foi se formando essa ideia de relacionar a literatura com comida no livro de contos”Receita de Familia”?
O símbolo da comida sempre existiu na minha literatura curta. Em Boneca um dos primeiros contos usa a simbologia da maçã e sua deglutição. Receita de família nasceu como projeto simbólico por natureza o primeiro nome do livro seria “Unum vas”, uma denominação em latim do vaso único, ou útero, usado para a construção da Pedra Filosofal. Com o passar do tempo a característica estritamente simbólica foi desaparecendo nos contos e sobressaindo a ritualidade do comer, do adquirir nutrição, e até da antropofagia defendida pos Oswald de Andrade como uma característica primordial de nossa arte, o que sempre me intrigou desde criança. Quando o conto Receita de família surgiu para substituir um conto, complicadíssimo, no qual nascia um homúnculo do útero de uma mulher desavisada, pariu-se também a placenta de todos os contos, isso bem longe do motivo original.
O livro “Receita de Família” é dividido em 4 partes: “entrada”, “bebida”, “prato principal” e “sobremesa”, quais os ingredientes de cada uma das partes?
Essa composição faz parte do ritual de deglutição do livro. Os primeiros contos são mais simples quanto a complexidade literária, forma, discurso, voz, tempo… Nas entradas você vai saborear contos mais curtos, com mais humor e ironia. São contos mais ligados ao dia a dia; menos agressivos. Não há inversão de tempo na narrativa, e as falas são, geralmente, bem marcadas com traços. Em bebidas eu reuni os contos que foram se tornando mais agressivos, o humor é mais escondido e sobra um pouco de crueldade. A autoficção é usada para confundir, e entorpecer, assim como os contos com características fantásticas. O prato principal é a parte da refeição na qual separei os contos nos quais pude ousar mais nas inversões de tempo futuro, passado e presente; nos discursos indiretos e tomada de consciência. Nesta parte também estão os contos mais longos e com personagens e narradores mais intrincados. Creio que a ritualística da refeição se faz nestes contos, ou seja, é no prato principal que o motivo do livro se encontra. Você não verá o fantástico representado, o real toma o lugar totalmente. Já em sobremesa o fantástico e insólito retorna, com toques de distopia e ficção científica futurista. Os contos abusam mais do humor e do chiste e não há uma regra quanto ao tamanho dos contos, sobremesas podem ser pequenas ou grandes, amargas ou doces.
Além de devorar o livro, o leitor também vai devorar o autor? Tem um pouco de você nos contos também?
Poucos contos tem partes de mim. A autoficção é um ingrediente entorpecedor neste livro. O leitor pós-moderno é muito infectado pela literatura jornalística não conseguindo separar totalmente o narrador do escritor. Tudo sempre é visto, primeiramente, como uma experiência contada. Você acha mesmo que eu, pelado e de salto, assaltei um vendedor de fubá (pê, padê, taba) na rua? “Receita de família” é uma brincadeira cruel com o ouvinte neste aspecto. Não é a minha família que é receitada, mas todas. Uma crítica à ingenuidade do leitor. O que há de mim são as lembranças para construir cenários. Por exemplo: a cozinha de belinha, que é a cozinha de uma de minhas avós; o filtro de “Sereinha também pensa” que está naquela cozinha. O açougue da Déte, por exemplo, é uma descrição de como era o açougue da cidade do interior onde meu pai cresceu e ele me descreveu como era vender carne na época de criança dele. Eu não vivi isso, jamais imaginaria vender carne sem refrigeração. Há histórias de outras pessoas também, mas a maioria é construção de todos.
Outro ponto que me chamou muito atenção no livro é geografia, a gente tem uma Cariacica que se mistura a Vitória e o tempo também não é definido parece às vezes parece se passar em um futuro próximo. Como você foi criando essa ambientação de tempo e espaço?
Isso é parte da minha literatura pois eu faço parte disso. Dessa região que privilegia uma ilha dividida e vazia a uma borda vibrante e necessitada. Gosto de expor desigualdades não percebidas. Racismos velados e preconceitos geográficos. É uma literatura quase regional? Não sei direito.
Em um dos contos de “Receita de Família” você relaciona o escritor a um cachorro e a literatura é a sua dona, e quando ele ouve o seu chamado é preciso para tudo que está fazendo para obedecer. Você também sente esse chamado? Essa vontade incontrolável de escrever?
Não sinto. Este conto é uma brincadeira com a leitora e o leitor. Eu descrevo um Hugo sem inspiração, daqui a 30 anos, levando um tapa, em sonho, da Clarice Lispector para voltar a escrever. Isso ocorre, justamente, porque, para mim, a inspiração tem muita pouca importância na receita da criação literária. A ilusão do escritor romântico é persuasiva ao ponto do leitor achar que o conto de fato é uma defesa da literatura inspirativa, a literatura como uma dona. A sugestão de que a literatura não pode surgir da calma e da falta de problema, mas sim do sangue, como defende Hemingway, essa parte eu até concordo (o que também já está defasado), mas a crença de que o escritor necessita de um algo a mais para sua produção incrível, não.
Outra crítica deste conto vem da minha observação que a escrita terapêutica, confessional e a escrita literária tem produções diferentes, ao meu ver. Um processo criativo, como o de Receita de Família, pode sim me fazer de cachorro por uns momentos, nos quais escrever será urgente e necessário e a seu mando. Mas não como uma paixão ou uma ansiosa necessidade, sem a qual eu não vivo, mas sim como um trabalho a ser feito, administrado e concluído no seu tempo certo e sem tomar minha vida particular. Eu acho que o escritor é pouco visto como alguém que trabalha muito. Veem como alguém que recebe ou conta a história do outro, ou a sua — outra vez o ranço da escrita jornalística. O que não é verdade. Jornalistas estudam muito para produzir matérias e reportagens, não é fácil ser um bom redator, isso não vem do além, assim como a composição de mundos e personagens ficcionais. Não precisar de inspiração, mas se voltar para a vida; esse é o verdadeiro tapa de Clarice, que foi, muitas vezes, vista como uma escritora que escrevia desabafos de uma dona de casa de classe média.
Vivemos um momento político e social muito difícil com diversos ataques à democracia e o avanço de ideias de fascistas. Como você enxerga o papel da literatura na luta antifascista e contra a homofobia também?
Literatura é transgressão. É uma arte de ataque. Eu não acredito em literatura artística que seja de direita ou de situação e, a acho chata. Para mim, o papel da literatura é sempre questionar e criticar a realidade. Mesmo quando leva o leitor para um mundo de fantasia, a literatura está criticando. Para lutar contra o fascismo precisamos sair de nossa bolha e adentrar o universo do senso comum. Tentar chegar em mais leitores, mesmo que seja necessário agregar outras artes como cinema e teatro, usar a literatura como contraposto de nossa realidade. Homofobia e fascismo são fruto de ignorância e essa tem tanto medo de quem lê, ou não tem? Temos de resistir e continuar, pois quem nos lê ou quem segue a literatura precisa de um mundo diverso, não de uma estante cheia de biografias e autores estrangeiros de romance rosa.
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