Matizar

Grifo - editorial
revistagrifo
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4 min readNov 25, 2022

Luiza Holmes

Fome (2022), óleo sobre tela, 50x80, por matheus dias

[Sobre a arte: Fome, ponto de encontro entre todas as espécies, causa de guerras e tréguas, parte do que nos move. Ninguém quer morrer de fome. A fome é um sintoma da escassez, ficamos tão escassos que, os que ficam para trás, são devorados para a sobrevivência dos mais alimentados e fortes, que disputam com orgulho um pedaço de osso. “É pela sobrevivência da nossa espécie”. Ocupados demais decidindo e disputando a próxima vítima a ser sacrificada, a questão inicial, os motivos da escassez e da fome, são esquecidas perante o estado irracional de medo. E consumir a carne do seu igual torna-se mais fácil do que digerir a culpa.

Diário de um galo numa granja abandonada.]

Matizar, verbo transitivo, significa fazer passar gradualmente de um matiz a outro. A forma de matizar as cores em uma pintura pode ser um jeito de ilustrar o que pode ser o sinthoma com “th”, ou seja, aquele resto de gozo que permanece no final de uma análise, não sendo um sintoma comum, é aquele que “resta”.

Clarice Lispector, no seu livro Água Viva (1973), cita Michel Seuphor:

“Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura — o objeto — que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência”.

Clarice compara sua escrita com a imagem de uma pintura em movimento, onde o matizar das cores é um escrever vertiginoso, onde as letras são comparadas às cores. É o fluir de uma água viva.

“Matizar” significa expressar diferenças delicadas. É apresentar cores variadas, dar novidade às cores: inventar. Um jardim matiza-se de flores na primavera e cada flor, com sua nova cor, é um “brotamento”.

Alberto Murta, em seus seminários de segunda-feira da Escola, chamou de “sintho/matizando o real” o movimento de brotamento de significantes primeiros (S1’s), aqueles pequenos e grandiosos murmúrios que marcam o corpo do bebê, os traços que demarcam um terreno de gozo.

“Sintho/matizando” é sempre um movimento inacabado e para trás, como disse Alberto, é um “ré-achar” do gozo, um saber-fazer com o gozo traumático que dá luz ao sinthoma. Isso que antes era o horror torna-se algo novo em seus restos. Essa marcha ré analítica é, então, um matizar/desbastar do excesso de gozo. Na vertigem, no turbilhão de burburinhos que se repetem, nas voltas e voltas das demandas, dos pedidos, das carências… sintho/matiza-se o real inominável.

O real na psicanálise está ligado ao gozo, mas algo que nunca poderá ser dito, pois no real puro, não há palavras, imagens, representações. O “toque” de real que cada um vai reencontrar no seu sinthoma é algo sempre muito particular.

Diante do terreno do corpo, uma ilha deserta não simbolizável, a letra, igual em si mesma em sua solidão, bate demarcando. A letra ricocheteia no corpo e marca a lembrança do real. O que era um “não cessar de não se inscrever”, torna-se um “cessar de não se inscrever” e, por fim, algo finalmente se inscreve: o sinthoma. O “sintho/matizar” não é definitivo, mas é algo necessariamente permanente, porque sempre “ré-torna”.

Carlos Drummond de Andrade fala da solidão de certa flor que brota, “ainda desbotada”, que “ilude a polícia, rompe o asfalto” e, mesmo sendo feia, é “realmente uma flor”. Essa flor é um brotamento, um resto desbotado, mas ainda assim matizado, que nasce se “ré-achando” identificada a si mesma, enquanto fora-sentido, em contramão à normalidade dos carros que passam, da “ração diária de erro, distribuída em casa”. A flor força o silêncio, paralisa os negócios, não está no mesmo estatuto de linguagem comum, e ainda assim nasceu, como nos garante Drummond.

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