no divã só há lugar para um (breves elucubrações sobre a solidão)

Grifo - editorial
revistagrifo
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4 min readDec 19, 2022

Isabella Azevedo

poema de eduardo zorzal, bordado por isabella azevedo

Sobre: O ato de expor o avesso da palavra bordada surge a partir da escuta clínica e seus desdobramentos, metaforizando o que há por detrás do dito. O que aparece só depois no percurso analítico. Aquilo que é escutado nas entrelinhas das queixas e indagações. @oavessodapalavra

Quinta-feira, meio de tarde, toca o telefone. Era do SESC Glória. Um convite inesperado para falar, enquanto psicanalista, sobre cinema e solidão a partir do filme Taxi driver, do Scorcese; diretor que até então vinha alimentando pouca dedicação. Pois revi. Tentando não escapar do contexto de um jovem de 26 anos no caos de nova york dos anos 70, quis pensar — em primeiro momento, não uma solidão da casa vazia, experimentada por muitos nos tempos pandêmicos, aquela presente de ausência. Mas talvez, de um possível evitamento do outro como forma ilusoriamente defensiva, como se fosse possível não precisar lidar o outro. Sozinho e insone, o que no filme se nota muito cedo — vide a entrada no emprego de taxista noturno, lhe coube inventar uma saída para suportar a própria angústia. Vindo do exército, circundando a morte de perto, quis se aproximar de maneira descaradamente voyerista e um tanto violenta daquilo que mais lhe repugnava: a diferença.

Bem, sendo este um espaço outro para devanear, digamos, sobre a solidão e suas multivalências no que tange ao campo da psicanálise, o que foi também a proposta do Glória, me permito aqui deslizar um pouco para fora do personagem, segurando o fio teórico para não me sobrepor onde não posso esgotar o tema.

A-bordar, enquanto caráter subjetivo tecido num percurso analítico, a solidão como a expressão da singularidade do sujeito, coloca em cena uma experiência ética que atravessa moralidades e construções fantasmáticas muito importantes na constituição individual. A angústia, que entrega o inaudível das narrativas clínicas, porta-se também como uma bússola para o desejo (Lacan). Desejo esse, muitas vezes negado com todas as forças neuróticas, sinaliza seu caminho com migalhas de pão por uma via estreita.

Citei a frase de uma paciente antiga, cuja queixa inicial se tratava de uma suposta inadequação para relacionamentos e no tempo dessa fala, já vinha desenvolvendo novos vínculos:

— “engraçado… me sinto mais sozinha do que quando entrei aqui pela primeira vez.” E riu.

Tentei devolver, a nível do ato analítico, enquanto repetia, também sorrindo, a palavra “engraçado”, de que havia algo de uma certa graça que apontava realmente. A angústia de solidão e inadequação inicial havia ganhado corpo através da palavra. Essa graça feliz, triste e pulsional, era seu próprio sujeito que se apresentava pouco a pouco.

Ora, visto que, ao entrar em análise e deitar-se no divã, o paciente elabora suas queixas a partir de uma outra possível lógica que não uma exaustiva e insistente espera do outro. Outro esse, cujo laço se embaraça, deixa de existir à medida que o sujeito tece seu re-nascimento através do verbo. Inventa um caminho para duvidar dos pilares que sustentaram suas certezas até aqui, para assim autorizar-se a viver uma nova posição subjetiva.

E, para pensar nas vazões que se pode dar à pulsão e no gozo mortífero que se sustenta para além do que o sujeito sabe, é preciso ouvir para além dos semblantes. Lá onde escorrega a linguagem.

O avesso da palavra guarda a verdade daquele que diz e que está sempre às voltas de um objeto desconhecido. É só depois que se reverbera o dito. É no sonho e seu relato, na epifania insone do quarto vazio, onde mora o silêncio do significante sem par, que escavando, toca no que temos de mais precioso e que não se repete em nenhum outro lugar.

O cerne da força que move o sujeito a ser como é.

E no divã, só há lugar para um.

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