PALAVRA É PAISAGEM: TERRITORIALIZAÇÃO DO SUJEITO E DO COLETIVO NA ESCRITA

Grifo - editorial
revistagrifo
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5 min readNov 1, 2022

Laura Redfern Navarro

Te(n)são (2022) - recortes, linha, e sangue sobre papel artesanalmente reciclado, por maria ramos gazel.

Tenho cada vez mais me dado conta de que o conflito da linguagem se mostra na diferenciação dos espaços internos (que englobam o pensamento, a fantasia e o sonho) e os espaços externos (que dizem respeito à tudo aquilo com o que interagimos, estando “fora” de nós mesmos). Penso muito sobre as potencialidades subjetivas e coletivas num texto, o peso que cada uma dessas instâncias têm, se se interseccionam de alguma maneira ou se apresentam de maneira separada.

Em meio aos horrores do Brasil atual, colocar-se como sujeito político dentro da escrita é quase inevitável. Cada vez mais urgente e relevante é a demarcação do lugar social frente à própria criação.

Afirmar a autoria feminina em um texto que aborda uma experiência muito íntima, como um aborto, é um exemplo desse movimento que chamarei de territorialização.

Nesse sentido, esse texto rompe a esfera do silêncio estruturante em torno da temática e do corpo social que o escreve, provocando novos diálogos, principalmente por parte das mulheres que o leem. Assim, essa escrita passa a ter um potencial transformador, que proporciona a conscientização e compreensão do “ser mulher” enquanto lugar coletivo, isto é, um território.

Pesquisando já há algum tempo a literatura testemunhal, passo a entender também a construção da linguagem, dos afetos e da subjetividade como territorialização. Para nos separarmos de sistemas essencialmente opressivos, precisamos ter autonomia sobre nossos corpos, ou seja, da maneira como usamos a linguagem .

Emprestando as palavras da cineasta francesa Agnès Varda, “se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens”. Gosto dessa definição, pois ela traz uma ideia imagética forte que arremata a complexidade daquilo que seria o nosso “mundo interno”, formado pelos nossos temperamentos, experiências, desejos e defeitos, podendo ser também associada a noção de território explicitada anteriormente. Pensando nisso, questiono: há uma imagem inteira dentro de cada um de nós, com elementos comuns, mas quem terá acesso a ela? E como mostramos essa imagem ao mundo?

Trazendo essa acepção para dentro da construção literária, penso nos meus próprios processos — que envolvem a escrita de sonhos e a exploração da corporeidade, por exemplo. Atualmente, encaro a escolha de palavras, temas e recursos enquanto paradoxo: há uma consciência, mas ela está fora de controle.

Digo, escrevo porque preciso rearranjar a realidade dentro de mim e ao meu redor. Tenho mais ou menos um repertório de imagens e palavras. Mas, quando me dirijo à escrita, deixo a racionalização um pouco de lado. É um processo do sentir, do corpo, é ele quem decide o caminho do texto.

Se pensarmos a ideia da paisagem, sinto que o poema é uma casa para ser mobiliada. Trago uma caixa com os elementos do poema, mas é durante sua escrita e reescrita que vou organizando-os. Logo, estou abrindo ao mundo a paisagem que escolhi — seja de maneira consciente, com a caixa; seja de maneira sensorial, com a organização dos elementos.

Evocando novamente a ideia de territorialização, podemos entender que ela é sinônima do processo de escolha que detalhei acima. Afinal, ambas sugerem um movimento autônomo, que, no caso das existências dissidentes, como mulheres, negros e LGBTs, não é hegemônico e vem sendo construído lentamente.

Podemos dizer, assim, que a elaboração de uma paisagem interna (ou do território) também está relacionada às condições do indivíduo e não apenas ao indivíduo em si. As duas esferas se retroalimentam, sendo quase indistinguíveis. No caso da territorialização dos corpos dissidentes, esse processo costuma se apropriar de dispositivos de subversão, ou seja, que ensaiam ou até mesmo permitem protagonismo sobre a própria narrativa.

Acredito, particularmente, que a escrita literária seja um desses dispositivos.

Um bom exemplo dessa subversão é o livro O Martelo, de Adelaide Ivánova, que traz um eu-lírico que vive uma sequência de violências, principalmente dentro do poder público, após a denúncia de um estupro. A escrita de Ivánova, porém, se faz potente ao trazer esse eu-lírico enquanto agente por meio da linguagem, que traz recursos inteligentemente empregados. Nos poemas, nota-se uma alegorização, um humor sutil e uma versificação esgarçada, que referencia tanto o mundo intelectual quanto o mundo coloquial, como se vê em um dos poemas:

“o gato

a delegada não me levou a sério

em nada e perguntou escorregadia

se eu queria mesmo que se

instaurasse inquérito vestia um

conjuntinho maravilhoso e

horroroso calça e camisa

jeans com jeans

depois ao ler o processo

a delegada me fez lembrar de janus

o rei romano com duas caras e

do gato com duas caras que

morreu aos 15 anos

uma raridade um gato assim viver tanto

já a delegada segue viva de conjuntinho

jeans com janus.”

(p. 21)

Aqui, podemos identificar que se trata, sim, de uma mulher que escreve sobre uma violência, mas o que se sobressai de fato é a maneira como essa mulher encara essa violência dentro do texto. Em “o gato”, também se fortalece uma noção de justiça pessoal — no espaço da poesia, é possível confrontar e tirar sarro da delegada, rompendo o silêncio que a situação real proporciona.

Por fim, podemos entender que a escrita — ou o desejo de escrever — surge de uma escolha, mas não uma escolha qualquer: ela exige consciência e compreensão crítica. Pegando novamente Agnès Varda, trata-se do espaço em que se “abre” as paisagens de dentro das pessoas. Escrever, portanto, é um processo em que se constrói o próprio território.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GRAHAM, D. L.; RAWLINGS, E. I.; RIGSBY, R K.. Amar para Sobreviver. Tradução de Mariana Coimbra. 1ª Edição. São Paulo: Editora Cassandra, 2021,

SMANIOTO, Sheyla. se você se abrisse para o mundo, para a página, que paisagens encontraríamos? Sheyla Smanioto | o blog, São Paulo, 8 de nov. de 2021. Disponível em: <https://www.sheylasmanioto.com/post/se-voc%C3%AA-se-abrisse-para-o-mundo-para-a-p%C3%A1gina-que-paisagens-encontrar%C3%ADamosl >. Acesso em: 6 de jun. de 2022.

IVÁNOVA, Adelaide. O Martelo. Rio de Janeiro: Garupa Edições, 2018

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