Quando ver é perder: notas para uma era de imagens

Priscila S. de Sá Santos

Grifo - editorial
revistagrifo
6 min readNov 15, 2022

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vovô na REFFSA — ilustração de letícia nóbrega
quase morto por amor — ilustração de letícia nóbrega

Fecha os olhos e vê. Assim termina a passagem de Ulisses — de James Joyce — que Didi-Huberman escolhe para ilustrar o que nomeia a inelutável cisão do ver.

O paradoxo do olhar é o tema que o autor trabalha no livro O que vemos, o que nos olha (1), livro que motivou as notas para este ensaio, por desenvolver uma proposta singular, que entrelaça filosofia e crítica da arte, literatura e psicanálise, percorrendo para isso as relações de distância e proximidade entre as imagens e a linguagem.

Somos olhados pelo que vemos. Atravessados por imagens que podem ser objetos, cenas ou impressões — como o olhar da mãe de Stephen Dedalus no mar — que nos marcam e produzem em nós uma cisão insuperável: ser olhado pelo que não está sob a égide do nosso controle: nossa história, nossas marcas, o tempo, a morte. Temos, portanto, a possibilidade de aprender a operar com esta cisão, e com isso suportar o inexplicável, ou a de seguir os caminhos da tautologia e da crença, que são descritos como saídas para o evitamento do vazio: ficar aquém ou além do que se vê, recobrindo a experiência sensorial com construções de linguagem.

A língua, este é o lugar onde se constroem as imagens. Este ensinamento de Benjamim atravessa a construção de Didi-Huberman, que toma a escrita de Joyce como objeto para acessar a ideia desta paradoxal relação: “Se se pode pôr os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê.”. Esta frase aponta para a relação da experiência visual com a tátil, dos corpos que obstaculizam ou favorecem a visão. Corpos detentores de vazio, mas que podem servir como obstáculos, quando só se vê a sua opacidade.

Ver o que não está à mostra, implica em olhar para além do opaco. Ver o que escapa da imagem estática e sólida, o que não está aparente, é o que sugere a frase de Joyce. Ver o que cinde a visão, porque a olha, e ao olhá-la, produz um efeito subjetivo.

O que Didi-Huberman sustenta é que, ao pôr os olhos em uma imagem, há a possibilidade de um acontecimento. Que esta imagem, seja ela uma obra de arte, uma paisagem um objeto ou um corpo, seja suportada por uma perda. Um objeto que acuse a perda, que mostre em sua aparência o que não aparece: o que se perdeu. E com isso, nos olhe. Stephen Dedalus é atravessado pelo olhar de sua mãe, após a morte dela: “tudo o que se apresenta a ver é olhado pela perda de sua mãe”.

Este recorte demonstra o efeito que o objeto olhado pode causar, em uma relação aonde ver passa a não ser mais uma questão de ter — se vejo, tenho a impressão de ganhar alguma coisa — mas de ser: quando ver é sentir que algo sempre escapa, e nesse caso, ver é perder. Há aqui um esvaziamento da experiência objetiva racional, e uma abertura para a subjetividade e para a sensorialidade, e não só a do sujeito em questão, como a do próprio objeto que, por suas características, olha.

Didi-Huberman é um leitor e articulador de Freud e de Lacan, e sua relação com a teoria psicanalítica permite correlacionar a experiência de ver e ser olhado com a regra fundamental da psicanálise, a única proposta por Freud: a associação livre (2). Dizer o que lhe vier à mente, sem censura. E através da linguagem, nas entrelinhas dela, descortinar algo que não é o enunciado, mas a enunciação. Do inconsciente freudiano e o que ele tem de fugaz, ao real lacaniano.

Um turbilhão no rio do devir, é como Benjamim define a origem das coisas e dos acontecimentos, que ele afirma ser um paradigma inteiramente histórico que surge como um sintoma. Crise e sintoma acusam, desorganizam e revelam a estrutura, e por tudo isso, operam um movimento dialético. A imagem dialética, portanto, é sempre uma imagem crítica, fundada em um trabalho com a memória, mas também com os restos. Ela funciona como um vestígio do que foi perdido, e produz um encontro entre passado e presente, em sua fugidia condensação de “verdade carregada de tempo”.

A imagem dialética pode ser objeto de uma decifração, da mesma forma que Freud toma o sonho e o sintoma: como enigmas a serem interpretados. A Traumdeutung de Freud e de Benjamin aparecem na condensação imagética e no trabalho que Didi-Huberman constrói com o olhar. É preciso ver de outra forma. Ver sabendo-se olhado, atravessado pela experiência aurática que uma imagem crítica e dialética é capaz de produzir. Ver consentindo a condição de castração dos sujeitos humanos, frente ao que não pode ser explicado ou impedido, frente ao vazio. E a partir daí, pode ser possível pensar em uma outra posição subjetiva frente à arte, à cultura, e mesmo à existência.

Em tempos onde os sujeitos recebem milhares de pixels diariamente nas telas dos seus gadgets, e onde é fácil perder-se na imensidão de estímulos imagéticos aleatórios (ou não tão aleatórios) dos feeds de redes sociais, a proposição de Didi-Huberman ganha uma importância que transcende o campo da filosofia e da crítica da arte.

Em seu E por olhar tudo, nada via (3), Margo Glantz — também herdeira da obra de Benjamin — produz um ensaio crítico à essa condição, de inundação de informações, onde enfileira em uma mesma cadeia de associações, inúmeras notícias, trechos literários e dados históricos, sobre os temas que vão dos mais cotidianos aos mais inusitados, num livro de 228 páginas, onde não há a pausa de um parágrafo sequer. A experiência que autora produz é sensorial, e imagética. É possível colocar os dois livros em contraponto, já que ela produz a experiência de nada ver por tudo olhar, enquanto ele aposta na experiência que pode eclodir quando se permite o acontecimento de se ver sendo olhado pelo que vemos. É preciso, para isso, de um olhar mais seletivo, seria possível dizer? Ou mais cuidadoso, não tão apressado, que se demore mais? Parece que sim. Sem a permissão de ser atropelado por uma imensidão de imagens produzidas para o consumo e para a alienação. É subjetivo, é estético, mas também é político.

Um turbilhão no rio do devir, a imagem evocada por Benjamin para pensar a origem, também pode bem representar o encontro do sujeito com o Real. Algo que não se faz sem surpresa e mal-estar, ou encantamento. Algo que por vezes é tão intenso, que pode ser perturbador, o que promove rapidamente as formas de recalque citadas anteriormente neste texto: a tautologia e a crença, entre outras. São saídas também sintomáticas frente à angustia gerada pelo real.

Que outra saída seria possível? Ou mais que uma saída, uma postura a se adotar? Nesse contexto, do encontro com o inelutável, poderíamos enfim assumir a impossibilidade de representar e apreender tudo, e acatar — com dignidade- as fugacidades, o inexplicável e o que, da vida, sempre escapa. O texto de Glantz traz um provérbio maia, escrito há mais de um milênio, e que segue nos dizendo, como nos dizem também as imagens dos túmulos e urnas funerárias do livro de Didi-Huberman: “Todo sangue, toda água, toda Lua, todo Sol chegam ao lugar de sua quietude”.

Referências

  1. DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
  2. FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In Obras Completas. Volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  3. GLANTZ, M. E por olhar tudo, nada via. Belo Horizonte: Relicário, 2021.

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