Saída de emergência

Grifo - editorial
revistagrifo
Published in
6 min readNov 3, 2022

Aline Veingartner

those trees outside sun square (colagem digital, de marcos arão rocha) - técnica utilizada : fotografia digital + desenho + manipulação digital (photoshop)

Captar o momento exato em que começa uma paixão

É quando ela faz uma pergunta e usa seu nome como vocativo? E seu nome nos lábios dela parece algo que você quer sentir outras vezes na vida? É quando ela arrasta uma cadeira sem fazer barulho? Ou quando ela faz um barulho com a boca que você nunca ouviu antes? É quando ela te mostra um livro que ela costurou com as próprias mãos? E criar junto dela é algo que você definitivamente quer fazer da sua vida? É quando ela dança uma música que não conhece? E você vê o esforço que o corpo dela faz para acompanhar o ritmo? E seu coração se dobra em dois de tanto afeto? É quando ela conta um fato inédito sobre a vida dela? E você percebe que ainda não sabe nada sobre aquela criatura? É quando ela ri? Não, certamente não é quando ela ri. Nem quando ela chora. É quando ela entorta o nariz para o lado tentando responder a uma pergunta difícil que você fez sobre o passado dela. Ou quando ela te interrompe no meio da conversa para contar uma história de infância e você se pega tentando imaginá-la criança. E o seu coração se dobra em três de tanta ternura. É quando ela escreve no papel e você finalmente descobre a caligrafia dela? Ou quando, sem querer, você vê a foto 3x4 do RG dela pela primeira vez? É quando ela chega perto e, em vez de te beijar, segura seu cotovelo sem nenhuma explicação? Ou é quando ela conta algo sobre si mesma que você não gosta, mas, mesmo assim, você sai da casa dela querendo nunca ter que ir embora?

Captar o momento exato em que começa uma paixão para escrever sobre uma personagem que se apaixona pela primeira ou milésima vez. Uma narrativa com uma protagonista que se apaixona, mas cujo conflito não é o apaixonamento em si. É descobrir o quando: quando começa uma paixão?

Captar o momento exato em que recomeça uma paixão

É quando você acorda no meio da noite e vê que ela também está acordada? E vocês duas preocupadas com o aluguel atrasado concordam em fumar um cigarro na cama, embora o combinado seja nunca fumar na cama? É quando você esquece um pote de comida na geladeira por vários dias, a comida estraga e ela joga fora sem fazer nenhum comentário? É quando ela pede uma massagem nos ombros e você aperta e sente a dureza dos músculos dela? Ou quando ela volta do trabalho trazendo um filhotinho de gato sem te consultar? E seu coração se dobra em quatro de tanta fofura? É quando ela senta no chão e espalha suas linhas, agulhas, papéis, conchas, folhas, borboletas? E você não sabe se quer se juntar a ela ou só ficar admirando a faísca da criação? Talvez seja quando vê-la simplesmente existir é a coisa mais importante do seu dia. Talvez seja quando ela compra um presente para a mãe dela e lembra de comprar uma lembrancinha para a sua mãe também. Sem nenhum motivo especial. Ou quando ela toma uma grande decisão, uma decisão corajosa. É quando ela se mostra mais destemida? Ou quando ela está frágil, precisando de ajuda? É quando ela te pede para avisar todo mundo que, naquele dia, ela não tem condições de existir? E mesmo assim vê-la existir é a parte mais importante da sua vida?

Captar o momento exato em que recomeça uma paixão para escrever sobre uma personagem que se apaixona mais de uma vez pela mesma pessoa. Uma narrativa com uma protagonista que se reapaixona, mas cujo conflito não é o reapaixonamento em si. É descobrir o quando: quando recomeça uma paixão?

Captar o momento exato em que termina uma paixão

É quando seu nome saindo dos lábios dela parece uma ofensa? É quando a maneira como ela se move e os barulhos que ela faz se tornam insuportáveis? É quando tudo o que ela cria parece o mais puro sumo da banalidade? E seu coração se dobra em cinco de tanta melancolia? É quando já não há mais paciência para vê-la em processo? E você pune, um atrás do outro, todos os erros que ela comete? É quando todas as histórias que ela conta parecem se repetir de novo e novamente e mais uma vez? Sempre do mesmo jeito, na mesma ordem, com as mesmas palavras e entonações? Ou quando ela já se transformou tão completamente que ficou irreconhecível? E nem a letra dela — aquele garrancho — você entende mais? É quando ela chega perto e, em vez de segurar seu cotovelo, ela te beija sem nenhuma explicação? E você não queria o beijo, mas parece que o beijo se tornou obrigatório? Ou é quando ela conta algo sobre si mesma que você até gosta, mas, mesmo assim, você sai de casa sem vontade de voltar? Talvez seja quando os presentes dela não passam de dinheiro jogado fora. Talvez seja quando a vulnerabilidade dela se torna irritante, ou a coragem dela vira uma ameaça. É quando vê-la existir, simplesmente existir, já não basta mais?

Captar o momento exato em que termina uma paixão para escrever sobre uma personagem que se desapaixona pela primeira ou milésima vez. Uma narrativa com uma protagonista que se desapaixona, mas cujo conflito não é o desapaixonamento em si. É descobrir o quando: quando termina uma paixão?

Captar o momento exato em que um texto começa a ser escrito

Captar o momento exato em que a escritora é afetada pela primeira vez pelo primeiro elemento que estará presente na primeira versão da sua narrativa. Captar o momento exato em que se esboça mentalmente o conflito da protagonista: quando começa, recomeça ou termina uma paixão? Captar os dias e as noites de histórias mentais, com personagens e movimentos mentais, com cenas e diálogos mentais, com tempos e espaços mentais. Captar possíveis inícios, possíveis meios e impossíveis fins. Captar o momento exato em que estruturas semânticas se erguem e logo desabam. Captar o vazio e o silêncio que antecedem o grito.

Captar o momento exato em que um texto recomeça a ser escrito

Captar o momento exato em que o conflito toca a tela e começa a virar ficção. E uma palavra se sucede a outra que se sucede a outra e juntas formam frases. E as frases concebem uma personagem que diz coisas e tem problemas em um tempo e em um espaço. Captar o momento exato em que a escritora se desespera porque a narrativa não se parece nada com o texto que já existia muito antes de existir. Captar o momento exato em que todas as técnicas, recursos e ferramentas se tornam insuficientes para captar o momento exato em que começa, recomeça ou termina uma paixão.

Captar o momento exato em que um texto termina de ser escrito

Captar o momento exato em que seu coração se dobra em seis possibilidades de desfecho. Captar o momento exato em que o texto traz de volta o conflito inicial. Captar o momento exato em que tudo se encaixa, mas não o momento exato em que o conflito se perde outra vez. E mesmo assim é preciso terminar, é preciso descer no ponto certo. A última edição. A última revisão. A última leitura. A última leiturinha. A olhada rápida. A revisadinha. Passa a tesoura, corta. Ajusta. Essa palavra não combina. Tira sem dó. Essa metáfora já foi usada naquele livro que você leu e não gostou. Troca. A consciência mudou rápido demais. Trabalha. Quem sabe se escrever na terceira pessoa. Quem sabe se escrever no presente. Calma, só mais uma olhadinha. Só mais uma encostadinha. Só mais uma inha-inha de nada. Só mais essa vírgula aqui. Ou fica melhor sem? Segundo a gramática é facultativa,

Captar o momento exato em que a última palavra não é escrita

Captar o momento exato em que cada vez que eu releio a paixão começa, o texto explode, a paixão renasce, o texto brota, a paixão rebate, o texto se nega, a paixão abandona e o texto busca sua saída de emergência.

Este é o primeiro texto experimental de Aline Veingartner para a coluna A Cor do Caule, cuja ideia é trazer reflexões e inquietudes do processo de criação de narrativas ficcionais.

*a revista grifo é uma publicação independente e coletiva da Grifo — editorial, e a-borda os enlaces entre arte, política, filosofia e psicanálise. você pode nos apoiar com grifos, palminhas e compartilhamentos nas redes sociais.
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