[Entrevista] Violência doméstica em tempos de pandemia: como combatê-la? #h9

“Quem sobrevive às violências domésticas precisa de apoio continuado”, afirma psicoterapeuta

Helenas
revistahelenas
9 min readJun 30, 2020

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Por Natalia Gerosa Niles

Kenia Maria, defensora dos Direitos das Mulheres Negras, em campanha da ONU Mulheres. SERENDIPITY | Flickr ONU Mulheres

A pandemia do novo coronavírus está sendo devastadora para todos. No entanto, é necessário dar ênfase em como ela está sendo desafiadora para mulheres. Dados publicados pela ONU Mulher em 14 de abril mostram que, mundialmente, as mulheres são 70% de todos os trabalhadores de saúde e 85% das enfermeiras e parteiras. No Brasil, elas fazem parte de 85% da enfermagem, 45,6% dos médicos e 85% dos cuidadores.

No contexto de isolamento social, além das mulheres serem as maiores responsáveis pelos cuidados do lar e serem sobrecarregadas com os afazeres domésticos, elas também enfrentam mais dificuldades devido a estrutura socioeconômica e cultural. A pandemia do novo coronavírus afeta a saúde e o bem-estar de grupos vulneráveis e as mulheres estão entre as mais afetadas, principalmente as que não tem opção além de ficarem enclausuradas dentro de casa.

Desde que o confinamento foi decretado houve um aumento considerável de violência contra a mulher no mundo todo. No Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informa que a quarentena gerou um aumento de 40% no número de ligações para o canal Ligue 180. Infelizmente, o aumento da violência contra a mulher é generalizado e chegamos ao ponto de que não podemos mais só ficar computando dados e lamentando as estatísticas. Para falar sobre isso isso falamos com a psicoterapeuta Danielli Silva do canal ‘Sobre(Viver) Mulher’ para nos dar uma luz em como combater a violência doméstica de forma sensata e eficaz.

Danielli Silva é natural de Fátima do Sul-MS, tem 27 anos, é Psicóloga Feminista, empreendedora social, idealizadora do Sobre(Viver) Mulher- trabalha para prevenção de violências com perspectiva de gênero, recortes de raça, etnia e classe social, e Presidente voluntária do Centro de Prevenção e Intervenção nas Psicoses em Porto Alegre-RS. Ela conta que faz parte das estatísticas de vítimas que sofreram caladas por muito tempo, mas que seguem vivas. O ativismo em prol da luta feminista a fez idealizar o ‘Sobre(Viver) Mulher’ por “acreditar que a prevenção de violências é possível”.

Danielli Silva. Foto: Arquivo pessoal

Quais são os fatores mais significativos que influenciam no aumento da violência doméstica contra mulheres?

Danielli Silva: Por maiores que foram as revoluções históricas a favor dos direitos humanos, quando se fala nos direitos das mulheres nesse momento tenho a sensação de retrocesso. Pois as lacunas são profundas e os fatores que influenciam no aumento da violência doméstica estão relacionados ao machismo estrutural, sexismo, racismo e misoginia, os principais pilares que devemos buscar referências de aprendizagem para mudança desse cenário. Acredito que a ignorância de em pleno século XXI reforçar essas práticas e ainda reproduzir falas como “em briga de marido e mulher nao se mete a colher” ao qual nunca tiveram sentido, e endossam a violência doméstica contra as mulheres. Precisamos urgentemente mudar a consciência coletiva em prol desta causa, pois envolvem prejuízos sociais, econômicos e psicossociais para toda a sociedade. O aumento da violência doméstica em meio a pandemia de Covid-19 reforça que não se construiu uma masculinidade sem violência e isso potencializa comportamentos violentos independente do gênero, pois a masculinidade tóxica também torna meninos e homens vítimas desse infeliz comportamento. O machismo é o principal ingrediente da cultura de superioridade, exercido pelo homem ao subjugar o sexo feminino como um ser inferior e frágil, reforça estereótipos de que somos insuficientes. Isso fortalece a manipulação psicológica feita pelos homens, principalmente em vínculo parental ou matrimonial. Por isso digo que precisamos trazer essa pauta para a educação familiar, já que a criação patriarcal, misógina diz que as mulheres são do lar e homens não devem cooperar nos afazeres domésticos e cuidado com os filhos, pois é serviço de “mulherzinha”. Sua presença em casa, além das crianças, sobrecarrega e aumenta esse trabalho não remunerado das mulheres. O que traz outro fator são temores sobre os impactos das finanças, as mulheres são frequentemente controladas. Não podemos romantizar o home-office como vendem nos comerciais, é importante trazer os recortes étnico-raciais e de classe social, cada indivíduo vive uma realidade nesse momento. Mas, independente disso as mulheres em isolamento se sentem vigiadas e impedidas de conversar com familiares e amigos. Mais mulheres trabalham na economia informal e em empregos com salários mais baixos, e elas têm menos meios de se ajustar às dificuldades em suas vidas. Quando as famílias são colocadas sob pressão, a violência doméstica geralmente aumenta, assim como a exploração sexual. A covid-19 provavelmente está impulsionando tendências semelhantes no momento. Então os fatores são estruturais e históricos, a prevenção desde a infância se faz necessária para impulsionar novas práticas e mudanças de perspectivas para o futuro.

Como podemos ajudar com mais eficiência as mulheres que estão em situação de vulnerabilidade social e econômica?

Danielli Silva: De acordo com o Instituto Geledés — Instituto da Mulher Negra- as mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica no Brasil, as que mais denunciam agressões e as maiores vítimas de homicídio e feminicídio. Então, primeiramente devemos nos esforçar enquanto sociedade para conhecer esses dados e rever nossos privilégios, enquanto mulheres, movimentos feministas e aliados de luta, nosso dever é trazer essas mulheres para a frente dos debates. Propiciar ações com direito a lugar de fala e ter muito cuidado para não se perder no discurso de empoderamento e ao invés disso invisibilizar a fala e presença dessas mulheres. Pesquise ações ou crie espaços para acolher as denúncias de violência doméstica e familiar, onde vítimas, familiares, vizinhos, ou mesmo desconhecidos podem somar forças e encontrar redes de apoio. Mas, além da escuta e acolhimento das denúncias, devemos reconhecer que vivemos numa sociedade desigual, portanto não são todas as pessoas que têm acesso a internet, meios de comunicação online e redes sociais. Os impactos econômicos e sociais sobre todas as pessoas nesse momento são severos e ainda maiores para as mulheres. Imaginem as matriarcas das famílias, que vivem em ambientes com mais vulnerabilidade socioeconômica? A maioria dessas mulheres são trabalhadoras domésticas, cuidadoras, constituem a economia informal e trabalham na agricultura familiar, por exemplo. Infelizmente não há rede de proteção para que essas mulheres se reorganizem. Reflita sobre suas condições e privilégios, promova acordos de trabalho flexíveis, priorize o serviço de mulheres, apoie principalmente as que vivem em locais de maior vulnerabilidade. E fortaleça a construção de ações de aprendizagem para educação financeira de meninas e mulheres, para gerar autonomia.

Como podemos ajudar as mulheres a reconhecerem que estão em uma condição de abuso, e qual é a melhor forma de ajudá-las quando elas mesma negam a situação?

Danielli Silva: Primeiramente não julgue essas relações, quem já vivenciou um relacionamento abusivo sabe que em muitos momentos não há autoestima, somente a vergonha de si mesmas, e o abuso psicológico reforça esse sentimento. Tenha empatia por essa pessoa e não duvide que essas vivências são chocantes, assustadoras, obscenas e violentas. A mulher muitas vezes está há tanto tempo inserida em um ciclo de violência que nem percebe. Por isso, o suporte da família e de amigos muitas vezes é essencial para ela romper esse ciclo e tomar coragem de fazer a denúncia. Busque se informar e não reforce a ignorância de que essas mulheres permanecem nessas relações porque gostam de apanhar por exemplo, isso é um absurdo. Muito provavelmente existe a dependência financeira, dependência psicológica, medo de morrer, esperança de mudança do companheiro, sentimentos de desvalorização, inferioridade e culpa, há muitas possibilidades. O mais importante é meter a colher com todas as forças quando notar o menor sinal de violência contra essa pessoa, e reconhecer a rede de apoio e confiança dessa vítima, se ela não tiver esses recursos, ajude-a a criá-los. Estejam atentos, caso identifiquem violência, acionem os serviços e não hesite em ligar para a polícia. É importante que não se sinta sozinha, quanto antes menores são as chances de se chegar ao ponto de uma tentativa de feminicídio. No contato mais próximo crie espaço de escuta afetiva, não imponha o que ela deve fazer diretamente, deixe ela se abrir contigo e depois proporcione alternativas. Dê possibilidades de escolha, traga casos comparativos próximos da realidade dela, dê possibilidades de mudança de vida, que gere autonomia e que ela possa vislumbrar a transformação dessa realidade.

Já sabemos que o Estado deveria apresentar mais políticas públicas para auxiliar mulheres, mas isso não ocorre com a frequência e eficiência que necessitamos, então como a sociedade, as comunidades e o indivíduo podem participar e ajudar ativamente na luta contra a violência doméstica de forma geral e não apenas na pandemia?

Danielli Silva: Acredito que reconhecer os privilégios de gênero, étnico raciais e de classe social sejam passos iniciais, o que já vem a tona como um processo de reeducação da sociedade. Pense que muito antes da existência da covid-19 os lares eram um dos lugares mais perigosos para muitas mulheres, essa pandemia potencializou essa realidade de isolamento. Quem sobrevive às violências domésticas precisa de apoio continuado, reconheça em que nível você pode ajudar para que tenham apoio psicossocial, acesso à promoção de saúde mental e até tratamento clínico. Na vida real não temos apoio de todos na sociedade já que a cultura infeliz do “mimimi” naturaliza essas violências e julga a mulher por permanecer nesses relacionamentos. Porém, também vivemos numa realidade capitalista, onde tudo gira em torno da economia, algo que tenho feito no Sobre(Viver) Mulher é promover a conscientização sobre o custo global da violência contra as mulheres. Posso garantir que meu trabalho para prevenção é o fator mais significativo nesse combate, e será essencial na realidade que nos espera no pós pandemia, pois todos precisamos de novas ferramentas e o máximo de estratégias para fazer esse enfrentamento. A sociedade deve direcionar recursos a longo prazo para a manutenção das equipes que atuam na linha de frente com estratégias de prevenção e resposta às violências. Ao encorajar meninas e mulheres nas redes informais e on-line mostramos aos agressores que elas não estão sozinhas, criamos mais possibilidades com as soluções tecnológicas, mas se tornam ineficientes para quem não tem acesso a telefones ou internet. Por isso a importância de expandir o público alvo a ser atendido, já vi exemplos de rádios comunitárias expondo essas temáticas, cartilhas desmistificando estereótipos machistas e misóginos, sobre a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos e os impactos em sua saúde sexual e reprodutiva. Devemos trazer o feminismo para o currículo, conversar sobre igualdade e equidade de gênero com a família, amigos e colegas de trabalho, devemos colocar as crianças nesse processo de aprendizagem, assim deixaremos outro legado preparando os pequenos para um futuro promissor com menos desigualdades. Felizmente existem muitas propostas como a nossa, cada uma possui um papel singular no combate ao aumento das estatísticas de feminicídio, que é o último estágio desse processo de violência doméstica. E não podemos deixar de somar forças com aliados do poder público, autoridades policiais e de justiça para fortalecer políticas públicas que atuem contra a impunidade de agressores, e a favor da garantia desses direitos como alta prioridade, além de ampliar para o setor privado.

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Natalia Gerosa Niles. Foto: Arquivo pessoal

Natalia Gerosa Niles é nascida na capital paulista e atualmente é professora de inglês no Colorado School of English em Denver nos EUA, co-criadora e co-anfitriã no Podcast ‘Gata Vira-Lata’ e escritora no blog pessoal “mulhernaresistencia.wordpress.com”. Os seus projetos pessoais são uma tentativa de se comunicar e conectar com mulheres que estejam na luta contra um sistema patriarcal, misógino e racista. Natalia gosta de estudar história e antropologia da mulher em sociedade, praticar yoga e dançar muito. Ela se disponibiliza para fazer collabs com qualquer mulher, coletivo, podcast que queiram melhorar o munda para todas as mulheres.

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