Janelas de vidro são perigosas

Helenas
revistahelenas
3 min readSep 15, 2023

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Por Melyssa Kell

É fim de domingo, a solitude assombra, como a imagem do pássaro morto nas mãos têm assombrado. Falo apenas sobre esse pássaro que encontra minha janela tão violentamente e falece, o pescoço pendente para o lado, alguns últimos suspiros, os pequenos olhinhos lentamente fechando — vai. Um voo sem sucesso, a liberdade interrompida por uma placa grande e invisível.

Está vivo em mim o luto, sou tão imprevisível, surpreendo-me comigo mesma, amanhã quem saberá se lembrarei do pássaro? As pequenas burocracias me cansarão e ao final do dia serei apenas uma boneca que ri e acena, oca, sem muita essência. Portanto, estou dando a mim mesma o afago de escrever. Subversivamente ao que pensei antes, agora me ocorre que nunca irei me recuperar dessa perda, viverei sob a neblina de tê-lo deixado morrer. E, ainda que doa, não dói nem metade do que doeria se, de fato, o tivesse perdido, como quem perde mãe, pai e irmão e agora é órfão no mundo, mais solitário que nós todos. Desde que posso recordar, nunca lidei com a morte verdadeiramente, até agora, até esse pássaro. As dores que sinto são distantes, delas, ouço apenas o eco, se é luto essa voz que sussurra dentro de mim, já está entranhado nas profundezas do meu abismo e não retorna à superfície de forma a me afetar. Não é dor total e pura, os dias ainda são dias e ainda há sol — se a morte estivesse à espreita, não haveria sol que iluminasse minha pele, ou dias para me exaurir.

Haverá de ter o dia em que será minha vez, e com essa morte terei de lidar, morrerei em corpo e espírito como quem morre de saudade. Será um momento terno, creio, só terei a mim, ouvirei minha própria voz, para me saber, me ouvir, e me aprender, ninguém tentará me explicar mais nada. Existirei em memória daqueles que me amam, e também se vão, existirei em finitude constante. Sob os olhos e palavras de outros, já não existo por completo. Por isso, escrevo sobre o pássaro morto que esteve em minhas mãos, para que nem ele, nem eu, sejamos mentiras, através do que fomos, e mesmo sendo: não conheceram. Dele não sei muito, de mim, uso-me como precedente para que assim possa existir: real e profundamente. Mas que bobagem tudo isso! Pássaros morrem aos montes todos os dias, e a gente que é gente, também. Tomemos cuidado apenas com as janelas de vidro, essas sim são perigosas.

Foto: Arquivo pessoal da autora Melyssa Kell

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