Linguagem Neutra: visibiliza as identidades não-binárias

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5 min readFeb 21, 2023

A inclusão como forma de resistência na língua e na vida

Por Francimeire Leme

Arte: Natália Sena/Revista Helenas

De repente nos deparamos com uma série de organizações, empresas, movimentos e pessoas utilizando a chamada “Linguagem Neutra” ou “Linguagem Inclusiva”, propondo uma modificação de marcação de gênero, ou em outras palavras, ausência de gênero, na Língua Portuguesa. Com a proposta de tornar o idioma inclusivo para pessoas transexuais, travestis, não-binárias, intersexo ou ainda que não se sintam representadas pelo uso do masculino genérico. Isso causou um incômodo na ala conservadora do país, um exemplo recente é o Decreto Estadual no 1.329/2021 em Santa Catarina, proibindo o uso em documentos escolares oficiais, provas, material didático, comunicado e editais de concursos públicos. Mas esse debate é apenas nacional? Por que a Linguagem Neutra incomoda tanto as masculinidades hegemônicas?

Linguagem Neutra ou Linguagem Inclusiva: o que é

A proposta da Linguagem Neutra ou Inclusiva é expressar, por meio do idioma utilizado, seja português, espanhol ou francês por exemplo, a representatividade de pessoas transexuais, travestis, não-binárias, intersexo ou simplesmente àquelas que não se sentem representadas pelo uso do masculino genérico.

Os primeiros usos “X” ou “@” atualmente são considerados inadequados, pois dificultam a fala e a leitura, sendo que o objetivo é tornar a frase neutra, ou seja, sem evidenciar o sujeito, não utilizando o masculino genérico e sem flexionar o gênero. No caso, se substitui a vogal temática e o artigo pela letra “E” ou “I” ou ainda “U”, dependendo da palavra utilizada. Veja alguns exemplos:

  • Bem-vindes! (ao invés de Bem-vindo ou Bem-vinda);
  • Prezades alunes (ao invés de Prezados alunos);
  • Elu (ao invés de Ele ou Ela);
  • Dili (ao invés Dele ou Dela).

Um debate ideológico

Apesar deste debate ser propriedade de cientistas da Linguagem, como linguistas, rompeu com as fronteiras técnicas e estendeu-se para o âmbito ideológico, sendo apropriado pelos movimentos de gênero e, contraditoriamente, pelos conservadores. Estes últimos, posicionando-se estritamente contra, proibindo o seu uso.

Em Santa Catarina os deputados em ampla maioria aprovaram o Decreto Estadual no. 1.329/2021 que: “Veda expressamente as instituições de ensino e bancas examinadoras de seleção de concursos públicos a utilização, em documentos escolares oficiais e editais, de novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas”, entrando em vigor a partir de 15 de junho de 2021.

Em resposta a esse Decreto, apesar das diferentes posturas entre os linguistas brasileiros sobre o uso da Linguagem Neutra, a Associação Brasileira de Linguística (Abralin) soltou uma nota pública repudiando tal decreto:

“Entendemos que orientações referentes a regras gramaticais do português brasileiro não devem ser regulamentadas por decretos governamentais. (…) A Associação se coloca a favor do debate aberto sobre o tema, levando em conta diferentes posicionamentos. Defende, também, que a prática docente e a formação de professores e estudantes devem ser embasadas em pesquisas, reflexões e debates existentes nas diferentes subáreas de estudo da língua portuguesa em uso no Brasil.”

Argentina: “Linguagem Inclusiva e ESI nas aulas”

Na América Latina podemos observar que também há um debate sobre este tema em países onde se falam espanhol, ou seja, sendo uma pauta internacional expressa em diversos idiomas, não somente o português brasileiro.

Na Argentina, recentemente foi publicado o livro “Linguagem Inclusiva e ESI nas aulas: propostas teórico-práticas para um debate em curso” [Lenguaje inclusivo y ESI en las aulas: propuestas teórico-prácticas para un debate en curso] pelas linguistas pesquisadoras e professoras universitárias Valeria Sardi e Carolina Tosi.

As linguistas argentinas Carolina Tosi e Valeria Sardi. (Foto: Verónica Bellomo/Reprodução)

De acordo com as pesquisadoras, a Linguagem Neutra resulta em uma ameaça para as masculinidades hegemônicas. Isso se comprova a partir de uma investigação do que ocorre nas escolas e universidades com a Linguagem Neutra, isto é, as diferentes reações, regulamentações e resistências, sendo um desafio para os docentes e as autoridades.

Elas caracterizam a Linguagem Neutra como uma via de visibilizar identidades historicamente silenciadas, argumentando ser uma semente de uma mudança política, pois não é possível quantificar os falantes que a utilizam, mas cada vez mais se utiliza a fala e a escrita nos ambientes acadêmicos e em escolas secundárias na Argentina.

O livro propõe ser uma ferramenta didática para incorporar a reflexão sobre esta Linguagem nas aulas a partir do projeto de Educação Sexual Integral (ESI). Elas comentam que o uso na Argentina começa a ser mais forte a partir do movimento Ni Una Menos em 2015, sendo vinculado com as lutas dos movimentos feministas pelo protagonismo e visibilidade das mulheres na Linguagem. No entanto, hoje é uma questão não-sexista, permitindo o uso pelas pessoas de acordo com suas identidades não-binárias.

A partir deste livro, fruto de uma pesquisa, elas conseguiram identificar dois porquês da aversão ao uso da Linguagem Inclusiva em ambientes escolares analisados. Por um lado, pela formação docente não abarcar este tema, naturalizando a norma culta da língua como a única possível, ou seja, reproduzindo a ideia da língua pura e presa a uma normativa gramatical enquanto convenção institucionalizada. E pelo outro, a negação e o preconceito à existência das identidades não-binárias. Com isso, observaram que as pessoas que mais rejeitam o uso são os homens cis, evidenciando que tal Linguagem ameaça as masculindades hegemônicas que ambitam os espaços escolares.

A Língua é viva

Em geral, o uso e não uso de determinadas formas linguísticas podem ser ou não institucionalizados, desde que a maioria dos falantes utilizem e tornem seu uso cada vez mais vivo. Assim, respeito, compreensão e acolhimento são as chaves para resistir e questionar a sociedade patriarcal, expressa em valores machistas, racistas e LGBTQIA+fóbicos. São pequenos movimentos como esse, da Linguagem Neutra, que sacodem estruturas tão cristalizadas como nossa língua atual sacudiu as barreiras de suas línguas-mães.

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