Representatividades na arte e cultura como caminhos de visibilidade bissexual #h19

Processos de aceitação e inclusão que permeiam as trajetórias de pessoas bissexuais

Helenas
revistahelenas
9 min readJun 22, 2021

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Por Marina Leal e Francimeire Leme

Arte: Natália Sena/Revista Helenas

A representatividade na arte e cultura é fundamental para desconstruir paradigmas e preconceitos presentes na sociedade. Por meio de manifestações artísticas podemos dizer o que pensamos, acreditamos e queremos no mundo. Diante disso, no mês de junho, mês do Orgulho LGBTQIA+, a Revista Helenas apresenta algumas reflexões sobre a representatividade bissexual nas artes cênicas e visuais, contando com alguns exemplos para visibilizar a produção artística bissexual.

Invisibilidade e preconceito

A palavra “bissexualidade” é datada do final do século XIX, e foi mencionada por Charles Darwin em seus estudos sobre transitoriedade na fase evolutiva. Ao longo dos anos, Sigmund Freud ressignificou o conceito na Psicanálise, tratando como um estado transitório da sexualidade. Somente na década de 1990, o conceito foi inserido nos estudos de gênero e identidade. Assim, atualmente define-se como aquela pessoa que possui um desejo sexual e/ou afetivo por mais de um sexo.

De acordo com a monografia da atriz Mariana Bonito “A representatividade bissexual nas artes cênicas e visuais” (2019) podemos observar pontos importantes sobre a invisibilidade da comunidade: “segundo o William Institute, em 2011, [estima-se que] os bissexuais representassem metade da comunidade LGBT, há uma tendência de maior espera para ‘sair do armário’; isso decorre de um histórico de preconceito que acarreta uma confusão, isto é, acostumada a ouvir que aquilo é uma fase, a bissexual demora para se entender como tal e, quando o faz, demora para conseguir comunicar isso aos outros por ter receio da reação alheia.”

Numericamente constatando a dificuldade de bissexuais se assumirem, a monografia também apresenta dados do ABC Triple Heart, uma instituição australiana: enquanto 84% dos homens gays se assumem, o número de bissexuais cai para 40%. Tratando-se das mulheres, 48% que se interessa pelos dois sexos se assume comparado a 86% das lésbicas.

Mariana também pontua sobre a “pink money”, ou mercantilização da cultura LGBTQIA+, que visa o lucro por meio da apropriação da causa LGBTQIA+ e utiliza da bissexualidade como “escapatória estratégica de justificação”, ou seja, finge ser para não abandonar as práticas heteronormativas. Por sua vez, segundo pesquisa feita pela Elancers, empresa de sistemas de recrutamento e seleção, em 2015, uma a cada cinco empresas não contrata pessoas LGBTQIA+, mesmo se apropriando da causa em seu marketing de vendas.

Nesse sentido, a invisibilidade está presente não somente no âmbito social, como também no cultural. Em outras palavras, além de não ser reconhecida ou ser vítima de preconceitos, a pessoa bissexual também não possui representação nos meios de comunicação e artísticos. De acordo com a atriz: “a invisibilidade ou apagamento bissexual pode ocorrer de diferentes formas: associando a bissexualidade à uma etapa para se assumir homossexual, um certo fetiche, conceituação de que a bissexualidade está sempre ligada à traição, a ideia de que o bissexual deixa de o ser por estar em um relacionamento monogâmico e a não-rotulação.” (BONITO, 2019, p. 16).

A indústria cinematográfica é cheia de incoerências e contradições, entre elas, a repetição de estruturas românticas já desgastadas que apresentam o assunto como homossexualidade escondida ou como uma transição; há ainda a falta de produções que representem a bissexualidade masculina, e uma nuvem que encobre a vivência e evita a caracterização direta das personagens, muitas vezes sem mencionar qualquer palavra referente à orientação sexual.

O olhar dual que exclui outros jeitos de viver a sexualidade é também resquício do machismo estrutural que hipersexualiza as relações femininas como fictícias, sendo a relação cis-heteronormativa tomada como “natural”.

Conhecer, contemplar e compartilhar trabalhos produzidos por pessoas bissexuais contribui para visibilizar tais artistas, quebrando tabus sociais e preconceitos estabelecidos em uma sociedade patriarcal. Por isso, a seguir, sugerimos filmes e séries com personagens e histórias marcantes na história da produção audiovisual.

O protagonismo nas artes cênicas e visuais

Como indicação de títulos que permeiam o tema, a seguir apresentaremos 6 exemplos, entre duas séries, dois longas-metragens e dois documentários, que abordam a bissexualidade ou ainda exploram os diversos tipos de orientação sexual e seus percursos entre as barreiras da tradição cis-heteronormaltiva.

Fonte: divulgação

“Dzi Croquettes” (2009)

O documentário “Dzi Croquettes”, dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez, lançado em 2009, conta a trajetória do grupo citado acima. Saindo do nordeste para o mundo, o grupo formado por homens irreverentes enfrenta em meio à ditadura civil-militar de 64 perseguições e aclamações que culminam em sua partida temporária para a Europa. O foco da produção se dá tanto no contexto de violência estatal que viviam, como também nas formas de romper com a moral vigente e evadir da constante repressão física e mental.

Apesar de uma curta trajetória, o grupo é relembrado como importante marco brasileiro no que tange às liberdades sexuais e individuais, elemento de extrema importância para debatermos a representatividade das inúmeras formas de afetividade presentes no mundo. Um ponto adicional à história é também o filme “Tatuagem” (2013), de Helio Lacerda, que entrelaça a história do grupo num romance ficcional. O documentário “Dzi Croquettes” tem 1 hora e 40 minutos e pode ser assistido no Youtube:

Fonte: divulgação

“Ana e Vitória” (2018)

Ainda nas produções brasileiras, o filme “Ana e Vitória” foi lançado em 2018 e é dirigido por Matheus Souza, com 1 hora e 45 minutos. O enredo, ao contar a história de como a dupla de cantoras se conheceu a partir de uma festa, narra também suas buscas por diversos sentimentos de amor. A trajetória é bastante contemporânea e conta, de certa forma, as afetividades da nossa juventude, seus relacionamentos afetivos e a necessidade de transposição de ideias há muito ultrapassadas. No caso delas, a fama é um fator que se apresenta não só glamourizado como na mídia e interfere em suas vidas de diversas maneiras. Ainda assim, a produção é bastante leve e cômica, sobre as problemáticas que enfrentam os jovens adultos.

Fonte: https://1.bp.blogspot.com/-r4ux7MNSnco/WAPrfvUtvLI/AAAAAAAAAd8/tkTqCPhYxzc3JjSJbJ3RfQz3cQAX1QooACLcB/s1600/rocky-horror-poster.jpg

“The Rocky Horror Picture Show” (1975)
Dos ventos de euforia e libertação sexual sentidos em meados de 1968, o musical estadunidense “The Rocky Horror Picture Show”, dirigido por Jim Sharman e lançado em 1975, apresenta formas subversivas de gênero e sexualidade, com performances, maquiagens, trajes e um enredo que o colocam como um marco para o audiovisual.

A história conta uma noite incomum na vida de um casal, aparentemente, bastante comum segundo a moral da época. Perdidos numa noite de chuva, Janet e Brad decidem refugiar-se num castelo próximo de onde quebrou o carro. Lá, encontram Dr. Frank N. Furter, um travesti bissexual que, naquele mesmo dia, apresentaria sua nova criação, um ser designado apenas a lhe dar prazer. Ao longo do filme, Frank e seus assistentes se comprometem a desconstruir a relação clichê do casal, resultando em percepções diversas para ambos.

O filme é bastante enfático sobre os ideários do que é normal e daquilo que é considerado “estranho”. Quando Janet e Brad chegam ao local, logo percebem que ali são os estranhos ou fora de lugar e, ao final, notam os questionamentos em relação à estrutura monogâmica de relacionamentos, votos religiosos que o casal havia feito, e também as suas experiências sexuais.

Fonte: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQ-lllMdWcR6-KBqX9Jv0cifgNyA5Nw5xqKT3frLsvywjJcK21r

“Hora de Aventura” (2010–2018)

A animação “Hora de Aventura”, criada por Pendleton Ward, conta em 9 temporadas a vida do jovem Finn, em seus 12 anos e Jake, seu cachorro mágico, juntos vivem diversas aventuras e combates na terra de Ooo. O desenho, apesar de classificado como infanto-juvenil, apresenta episódios e temáticas bastante maduros, significativos para a vida afetiva de Finn, seus relacionamentos e amizades num mundo pós-apocalíptico em que novas formas de vida foram descobertas além dos poucos humanos restantes.

No enredo, a única personagem perceptivelmente bissexual é Marceline, que vive um relacionamento com a Princesa Juju, tanto o desenvolvimento dessa relação quanto as experiências passadas são mostradas. Apesar das palavras “bissexualidade” ou mesmo “sexualidade” não serem explícitas no decorrer dos episódios, a história preza por tais temáticas e não deixa de apresentá-las. “Hora de Aventura” está disponível no serviço de streaming Netflix.

Fonte: divulgação

“Glee” (2009–2015)

“Glee” foi uma série bastante famosa durante os anos 2010, criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan para o canal Fox. O enredo se inicia com a reestruturação de um grupo de coral numa escola pública de Lima, Ohio, nos Estados Unidos. O professor de espanhol Will, integrante do coral da escola décadas atrás, concilia suas aulas com ensaios na tentativa de formar um novo grupo que possa competir nacionalmente. A série-musical é narrada com performances em todos os episódios, entre interpretações, mixagens e composições autorais que obtiveram destaque para a época.

O enredo apresenta as diferentes realidades de uma escola pública norte-americana, conversa através da música sobre temáticas que provavelmente abrangeram muitos jovens pelo país, como o racismo, a xenofobia, a lgbtqia+fobia, os problemas dentro de casa com a família e a saúde mental frente a um mundo contraditório. Uma das pesonagens assumidamente bissexual é Brittany S. Pears, que retrata o estereótipo das líderes de torcida, trazendo consigo ideias sobre a inteligência e a vida sexual explícita. Sua história é ainda um paralelo com a cantora Britney Spears, que enfrentou diversos traumas pela mídia. A série é também disponibilizada pelo serviço de streaming Netflix.

Fonte: divulgação

“Revelação” (2020)

O documentário “Revelação”, dirigido por Sam Feder e produzido pela plataforma Netflix, aborda a representatividade da comunidade trans pelas mídias cinematográficas e televisivas nos Estados Unidos. Lançado em junho de 2020, traz diversos relatos, lembranças e considerações acerca do desenvolvimento do movimento, sobre como a maior visibilidade implica também em maiores ataques e confrontos. Tal temática é especialmente cara para toda a representação LGBTQIA+, mesmo com inúmeros passos na caminhada pelas mais diferentes individualidades, os sufocos ainda são uma constante. A participação de Laverne Cox, Lilly Wachowski, Yance Ford, Jamie Clayton e Chaz Bono, entre outros nomes consagram o destaque da produção.

Referências

BONITO, Mariana. A representatividade bissexual nas artes cênicas e visuais. 2019. 66 f. Monografia (Graduação em Artes Cênicas) — Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2019.

CHIRILÃ, A. O documentário Dzi Croquettes (2009) e a construção de uma memória marginal, do subterrâneo e do esquecimento sobre a contracultura na ditadura civil-militar no Brasil. Em Tempo de Histórias, v. 1, n. 37, 2020. DOI: 10.26512/emtempos.v1i37.33701. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/view/33701. Acesso em: 21 jun. 2021.

DAVID, Bruna. Revelação: pessoas que nem sempre enxergam sua realidade na tela. Delirium Nerd, 7 jul. 2020. Disponível em: <https://deliriumnerd.com/2020/07/07/revelacao-documentario-netflix-transsexuais-critica/>. Acesso em: 21 jun. 2021.

GRITOS do Silêncio. O invisível B — A representação de bissexuais em filmes e séries. Gritos do Silêncio, 27 ago. 2017. Disponível em: <https://gritosdosilencio.medium.com/o-invis%C3%ADvel-b-a-representa%C3%A7%C3%A3o-de-bissexuais-em-filmes-e-s%C3%A9ries-a01b8c39cdde>. Acesso em: 21 jun. 2021.

G1. 1 em cada 5 empresas não contrataria homossexuais, diz estudo. G1, 13 maio 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2015/05/1-em-cada-5-empresas-nao-contrataria-homossexuais-diz-estudo.html>. Acesso em: 22 jun. 2021.

RUMJANEK, M. The Rocky Horror Picture Show: Subversão ou Perpetuação?

Musicais: Utopias no Audiovisual, 6 ago. 2016. Disponível em: <https://medium.com/musicais-utopias-no-audiovisual/the-rocky-horror-picture-show-subvers%C3%A3o-ou-perpetua%C3%A7%C3%A3o-753faf29ebe4>. Acesso em: 21 jun. 2021.

Revisão técnica e linguística por Letícia Ramalho

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