A busca pela parte que sempre falta – Uma reflexão sobre o código de amor cortês e sua atualidade

Amy Moraes
Revista intransitiva
4 min readApr 12, 2018

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O código de amor cortês surgiu no sul da França, Provença, no século XII. É provável que este código tenha surgido como forma de reação às mudanças repentinas de ordem religiosa e social que ocorreram no século anterior. A igreja passa a sacralizar somente o casamento que renuncia à luxúria. A concretização carnal do amor seria um risco para a salvação dos casados e para a moral da mulher, por exemplo. Nesse contexto, marcado pela censura da expressão do desejo e frustrações sociais, surge o código de amor cortês. Representaria uma forma de resistência à cultura clerical e repressão dos impulsos sexuais. As cantigas seriam um jogo que divertiriam e educariam quem as ouvissem. O código de amor cortês pode ser identificado em pelo menos quatro formas distintas de cantigas, sendo de forma satírica ou não. A cantiga. que me parece mais reveladora para compreensão do legado deixado por esse código é a de amor.

As cantigas de amor normalmente apresentam um amado lamentando a sua condição de amador de uma dama intangível. Essas cantigas são colocadas como produtos de um refinamento na maneira de amar que causou a sublimação do desejo. sexual e tornou abstrata a figura feminina. O sofrimento causado pela dama causa a reflexão do próprio sujeito sobre sua condição. O questionamento sobre o que se ganha ao louvar uma mulher e nunca possuí-la é uma reflexão recorrente. O sujeito frequentemente conclui que este sentimento lhe levará ao refinamento espiritual e intelectual, aproximando-o de um plano divino. Assim, o sujeito da cantiga de amor conserva uma postura egotista, escolhendo continuar a sofrer de amor para refinar e conhecer a si mesmo. Ele deixa de amar a dama e passa a prezar o amor.

Essa característica das cantigas de amor parece remontar aos escritos platônicos. Em “O banquete”, Aristófanes diz que o Eros – deus do amor- surge da divisão do homem em duas metades, causando carência pela outra parte. Inicialmente, o amor seria desencadeado pelo testemunho da beleza que geraria somente a luxúria. Com o trânsito entre diferentes corpos, a beleza já não seria mais o elemento principal. O homem passa a amar o sentimento amor. Este sentimento sublime levaria ao autoconhecimento e aproximaria do plano divino, a matriz onde estaria a parte que buscamos. No século XII, teoria similar do amor é discutida, porém, o amor será uma conexão espiritual que aproxima o divino de Deus e causa a confluência de almas. A beleza é substituída pela faísca do divino encontrada no outro.

No século XIV, o poeta italiano Petrarca atualiza a mesma noção apresentada nas cantigas de amor. Torna ainda mais egocêntrico o código de amor cortês. Em seus escritos Petrarca se questiona sobre sua própria identidade e a sua condição como amante e poeta diante da contradição deste sentimento. Ele também se questiona se vale a pena conservar esse sentimento. A reflexão levaria a um elemento central dos escritos de Petrarca: a memória. O amor sublime contribuiria para que o homem perdurasse na memória. A dama morta será sempre lembrada pelo amante, por isso sempre estará viva. O amor em Petrarca é colocado por termos paradoxais em seus sonetos. O sujeito frequentemente declara queimar no frio, ter um amor que aprisiona no que liberta, ao mesmo tempo ele deseja morrer por esse sentimento. Petrarca também trata do amor abstrato, uma vez que o sentimento amoroso é usado para o aprimoramento espiritual e sua impressão na memória. Quanto mais desincorporada a dama está, mais louvada é. O modelo petrarquista é uma das tradições que inspirou o código amoroso atual, principalmente a lírica amorosa.

O código amoroso passou por diversas mudanças desde o período medieval. Apesar das diferenças entre o código amoroso atual e o código de amor cortês, há pelo menos um ponto que ainda resiste desta última tradição. É possível identificar resquícios da visão de que somos incompletos e precisamos de um alguém que nos complete para o conhecimento de nossas subjetividades, salvação divina e felicidade extrema. Ao mesmo tempo, esse sentimento é muito contraditório no que causa dor. O status paradoxal atribuído ao amor ainda parece permear as produções que discutem este sentimento. É comum nos depararmos com sujeitos em canções afirmando perderem o ar e estarem dispostos a morrer pelo prazer de um amor inventado e não correspondido. Uma tradição que coloca a expiação como parte central da experiência amorosa poderia não perdurar. Contudo, o código de amor cortês foi largamente utilizado desde seu início até os dias atuais. Ainda há um longo caminho para tentarmos compreender o percurso e status do código de amor cortês nos dias atuais. Por esta razão, concluirei este texto com algumas questões que acredito serem essenciais para a reflexão e continuidade do tema: Que elementos garantiram a permanência dessa tradição no imaginário ocidental? O código amoroso ainda coloca a relação amor e identidade em jogo? Como é a codificação comportamental para o amor não romântico? É possível dizer que atualmente o amor também é um código de comunicação social?

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