Sobre memórias que nos atravessam

Revista intransitiva
Revista intransitiva
4 min readMay 6, 2020

Por Adriana Jordão, professora adjunta de Literatura Norte-Americana na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

No final do século XX, Pierre Nora afirmou, no ensaio “Entre memória e história”, que se fala muito de memória porque ela não existe mais. Para o historiador francês, o momento particular de nossa história, momento de reconhecimento da fratura com a tradição, traz o nascimento do desejo de memória, desejo de consagrá-la em espaços, objetos e narrativas. Com o esgarçamento da força agregadora de instituições que asseguravam a conservação e a transmissão dos valores da tradição e a passagem natural de um passado para dentro do presente — nações, igreja, etnias, famílias –, a herança tornou-se um objeto exterior ao sujeito, objeto que precisa ser ritualizado. O desaparecimento do capital de saber, ou memória, que se vivia em uma coletividade produz a imposição de reconstituí-lo através da história, de examiná-lo e dedicar a ele aquilo que Nora chama de “lugares de memória”, operações de vigilante lembrar, como os museus, as celebrações, os monumentos. (cf. NORA, 1993).

Photo by Rolands Zilvinskis on Unsplash

Não mais a herança inconsciente de si mesma, mas a necessidade de consagração e contínua celebração do ícone para reafirmar a memória. Não mais a identificação orgânica do ser e seus atos, mas a necessidade de investir sentido nos atos para reconhecer-se como ser. Tal pensamento pode se estender do coletivo para o individual. Se a ausência cria o desejo de memória, como indivíduos também buscamos na investidura de sentido deliberada das narrativas pessoais de passado uma ancoragem, uma forma de reconhecimento, de pertencimento, processo que esbarra nas ficcionalizações que o sujeito faz no contínuo transcurso do tornar-se.

Entretanto, outro olhar acerca da memória a percebe ainda como um estado interno do indivíduo, um acúmulo que reúne no mesmo plano o passado e o presente, abolindo as marcas do tempo. O herói proustiano das primeiras cenas de Em busca do tempo perdido tem na “memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas” (PROUST, 2006, p.23) os muitos quartos onde dormira até então, lembranças marcadas em palimpsesto em sua pele. “A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos” (idem). O evento é passado, porém, o efeito, aquele apreendido no momento que ficou no passado ou ainda qualquer uma de todas as suas formas metamorfoseadas que se seguirão na subjetividade cambiante que somos, não será jamais passado. O efeito é sempre presente porque ele é constitutivo, pertence agora àquilo que o sujeito é, daí apresentar-se atualizado, latente, mesmo que algumas vezes difuso e fugidio.

Inevitavelmente, aquilo que foi perdido não será jamais recuperado de forma precisa, mas somente nas versões ficcionadas da memória. Ainda aqui, algo de fictício se dá, pois para que se torne experimentável, tome corpo, seja algo, de fato, o imaginário precisa de figuração, de realização, de mediação inteligível. O passado não possui a fixidez e a estabilidade esperadas de algo que o senso comum imagina inalterável. O passado se mostra oscilante, objeto em construção. Configuração inescapável para trazer o imaginário para o palpável, para o mundo das coisas, a linguagem é agente atravessador, logo figuração de um objeto mas também objeto, produto em si mesma, aberta ao manuseio. Jeanne Marie Gagnebin ressalta que “não há linguagem que se diga sem se desdobrar nas várias dobras do tempo, nem tempo que possa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, sem ser recolhido e articulado por linguagem.” (GAGNEBIN, 2005, p. 8).

Esta ligação recíproca remete, como afirma Gagnebin, a algo que o tempo e o seu narrar através da linguagem têm em comum, sua ligação com a ausência. A linguagem não é o real, não é aquilo que ela representa, ela só remete ao real, ela é um outro objeto, diferente daquele que ela busca representar, assim como uma fotografia não é o objeto que traz em figuração; assim também o tempo não retorna da forma como aconteceu, mas permanece no sujeito, mostrando-se nos seus efeitos, remetendo àquele tempo perdido, passado. Linguagem e tempo — os componentes desmembrados da memória — carregam, portanto, esta marca da ausência, do remeter a algo que não está lá.

A exaltação da memória surge, então, neste celebrar através da elaboração em narrativa, tentativa de transporte em palavras deste pedaço de experiência acumulada, vivido reconhecidamente constituinte, disseminado nos imaginários coletivo e individual e, no entanto, sempre inapreensível em sua totalidade, surge na investidura de vontade de alcançar pela palavra, pelo simbólico, a transformação da memória plena à condição de lugar de memória. Inatingível mas sempre e ainda assim buscada através da representação.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. 2ª edição. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. N. 10. São Paulo: Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / PUC-SP, 1993. p. 7–28.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. v. 1: No caminho de Swann. Tradução: Mario Quintana. São Paulo: Editora Globo, 2006.

--

--

Revista intransitiva
Revista intransitiva

Revista artístico-literária online e gratuita produzida em um projeto de extensão da UFRJ. Leia-nos em: https://revistas.ufrj.br/index.php/intransitiva