Um futuro invisível

Revista intransitiva
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4 min readApr 16, 2021

por Diana Xavier

As concepções de legado e de herança estão presentes desde muito cedo na história do ser humano. Através de construções e pinturas, povos contavam vitórias e derrotas de outros, deixando suas marcas para um futuro desconhecido. Como conta Gombrich (2018), monarcas mesopotâmicos encomendavam monumentos para demonstrar seus triunfos; assim como romanos também construíam tantas obras para narrar suas vitórias, como Trajano que “erigiu uma gigantesca coluna para ostentar, em imagens, a narrativa completa de suas guerras e vitórias na Dácia (a Romênia de hoje)” (GOMBRICH, 2018, p.95). Acontecimentos para contar a história de seus povos, glorificá-los por suas ações, e que sobreviveriam ao tempo e seriam admirados em um futuro que aquelas pessoas não poderiam enxergar. A partir dessas heranças do passado, outras pessoas formam seus presentes e constroem um futuro e, consequentemente, um legado que irá continuar mesmo após a sua morte.

As heranças que a sociedade traz consigo do passado refletem o que ela é atualmente. Trata-se da transmissão de patrimônios para um sucessor antecessor, da transferência de bens, ideias e culturas de uma geração passada a outra. O Brasil, por exemplo, traz consigo a herança de diversos povos. No caso dos povos indígenas, há como herança hábitos, cosméticos, e palavras na própria língua portuguesa, como “mandioca” ou “arara”, que são palavras de origem Tupi-Guarani. Além disso, também há a herança africana presente na religião, na culinária e na música, entre outras áreas. No caso da música, por exemplo, “há várias danças, folguedos e cantigas que foram introduzidas nos costumes do Brasil por negros africanos que vieram no período da escravidão” (CASTRO, 2008, p.23). Essas heranças são responsáveis por influenciar o indivíduo e suas crenças e como a sociedade a enxerga, tanto de forma positiva quanto negativa. Por isso, a herança também influencia na pessoa a aspiração de construir algo para o futuro, imaginando, assim, um legado.

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Para se compreender o conceito de legado, pensemos no musical Hamilton, produzido por Lin-Manuel Miranda em 2015 e adaptado para filme em 2020. Nele, Alexander Hamilton (Miranda) vive para construir seu legado, definindo suas ações de forma que possa construir algo que viva além dele. Até que, momentos antes de sua morte, ele apresenta em seu discurso o termo legado como “plantar sementes em um jardim que você nunca verá”, percebendo seu momento final. Pensando assim, construir um legado é construir um mundo invisível que você não poderá prestigiar; erguer atos, ações e palavras para que no futuro alguém se lembre do que você fora em vida.

Seja pensando em um resultado voltado para o âmbito individual (como, por exemplo, sua família), ou para a sociedade, legados são estimulados por motivos pessoais. Talvez seja o desejo da imortalidade do ser humano que o faz buscar esse resquício de reconhecimento. O medo do esquecimento após a morte de seus conhecidos e da sua própria morte, de saber que não irão se lembrar mais de você na terra que uma vez pisou; ou o desejo de inspirar outros a seguirem uma paixão, de forma que ela se mantenha pelos anos futuros. Todos eles são definidos pela pessoa e vão sendo construídos de forma paciente durante a vida. Assim, como é narrado no filme Sombras da Vida (2017), legados são construídos “pedaço por pedaço, e talvez todo o mundo irá lembrar de você ou apenas algumas pessoas, mas você faz o que puder para ter certeza de que você ainda estará por aqui depois que partir”.

Além disso, ao se deixar um legado, você também deixa uma continuidade. Ele poderá ser seguido por outros que compartilham seus ideais, que irão seguir seus passos e expandir o que você construiu. Como Miranda canta em Hamilton, é escrever “notas no início de uma música que alguém irá cantar para mim”. Quando Martin Luther King morreu assassinado em 1968, suas ideias não morreram com ele e seu legado permanece por outros que compartilham de seus ideais. Em 2020, o movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) refletiu o discurso do ativista estadunidense, evidenciando como os seus pensamentos ainda são presentes na sociedade atual.

O legado, dessa forma, origina-se com o desejo de deixar algo para o próximo e como uma tentativa de permitir que outros se lembrem de você e o que a sua vida representou. É ter na própria herança um anseio para mudar o presente e o futuro. É deixar uma marca no mundo e conceder que outros sigam os seus passos e que idealizem diferentes futuros, permitindo que assim o tempo caminhe e proporcione novas possibilidades.

Diana Xavier é formada em Letras: Português-Inglês pela UFRJ. Participa da Revista intransitiva desde 2017, é professora de inglês e apaixonada por literatura.

Nossa próxima edição, “Heranças que recebemos, legados que deixamos” (v. 5, n. 2), será publicada no segundo semestre de 2021. Convidamos nossos leitores e leitoras a enviar textos literários e, a partir desta edição, trabalhos visuais que façam inspirar o interesse de imaginar o que sobreviverá de nós e como nossas histórias serão contadas.

Cheque as normas para submissão e envie seu trabalho até 9 de maio!

CASTRO, Marília de Cássia Souza de. “Danças”. In: Brasilidades que vêm da África. QUEIROZ, Sônia (Org.). Belo Horizonte: FALE/UFMG. 2008.

GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Tradução de Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2018.

HAMILTON (2020). Direção de Thomas Kali. Produção: Walt Disney Pictures. Disney+. 2020.

SOMBRAS DA VIDA. Direção de David Lowery. Produção de Toby Halbrooks, James M. Johnson, Adam Donaghley. 2017.

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