A mística do corpo feminino na obra de Calixthe Beyala

Cécile Dolisane-Ebossè. Tradução : tania navarro swain

Revista Labrys
Revista Labrys
11 min readJul 26, 2019

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Texto original

A cultura do questionamento: um desafio ao masculino ou um “jogo-utopia” literária?

Resumo:

O corpo feminino violado e violentado toma uma dimensão de quase obsessão na obra de Calixte Beyala. Esta autora destaca categorias marginalizadas, agressivas e extremamente profícuas, tais como uma pletora das prostitutas e isto nos permite destacar, neste artigo, três paradigmas: uma perspectiva revolucionária, que visa desmantelar o sistema falocêntrico e ultra conservador, a vingança de um matriarcado prospectivo emancipador e enfim, uma estética das margens, um jogo de escrita, que ironiza a sordidez da realidade .

Palavras-chave Calixte Beyala, perspectiva revolucionária, matriarcado emancipador, estética das margens.

Se Hélène Cixous propõe às mulheres de se escrever, a fim que seus corpos se façam ouvir, Awsa Thiam as exorta a se reapropriar da palavra verdadeira, respectivamente em Le rire de la Méduse e Parole aux négresses. [1]

Isto significa o desejo de verdadeiramente se subtrair à dominação masculina, e a ação, nos dois últimos casos, é o último recurso.

Esta mensagem foi perfeitamente ouvida por C.Beyala, romancista franco-camaronesa, que em sua jovem e brilhante carreira literária, teve por pano de fundo a busca da autodeterminação das mulheres, a partir de seu corpo e de uma tomada da palavra quase imediata e incisiva. Desde c’est le soleil qui m’a brûlée (1987) até femme nue femme noire (2003), num total de 12 romances, esta liberação se efetuou pelas categorias mais marginalizadas: as prostitutas e as crianças.

Demarcando-se por sua linguagem ultra agressiva e licenciosa, estas esquecidas da história simbolizam também a degradação do corpo feminino, que gera uma vingança crescente contra as forças alienantes. Com este ponto de partida, esta autora não estaria apontando o conjunto das estruturas sociais arcaicas de essência patriarcal? Mas que métodos utiliza ela para realizar seu sonho, a edificação do ser humano? Em outros termos, como quer ela construir uma cidadela igualitária?

Cada povo tem uma história que lhe é específica, e os caminhos conceituais suscetíveis de nos guiar em nossa análise são plurais, tendo em vista esta escrita pós colonial híbrida. A sociologia literária de Barthélemy Kotchy nos permite situar a obra em seu contexto negro- africano, enquanto que as reivindicações que fundam os escritos de Beayla levam-nos a explorar as pesquisas de Mariama Bà , sobre a função política das literaturas africanas escritas.

Ainda mais, para dar à nossa pesquisa um valor de inovação, interessamo-nos particularmente às obras pouco exploradas pela crítica, como les amours sauvages e femme nue, femme noire, sem, entretanto, esquecer o incontornável C’est le soleil qui m’a brûlée, obra que serve de plataforma ao conjunto de seu pensamento literário.

Assim, nosso trabalho gira em torno de dois pólos: tentaremos de início mostrar, a partir da obra romanesca de Beyala, como as mulheres são asfixiadas pelas estruturas convencionais, talhadas na medida do masculino e em seguida, tentaremos apreciar os métodos que ela adota para aniquilar o poder patriarcal, tão pouco propício à edificação das mulheres.

Antes de entrar no cerne do assunto, seria necessário apresentar uma breve sinopse das obras de referencia: C’est le soleil qui m’a brûlée é a história de uma heroína, Ateba, criada por uma longa linhagem de mulheres, todas prostitutas. Ela ataca seus amantes e se mostra intratável em relação aos homens, aproximando-se das mulheres a quem devota um culto quase mítico.

Em les amours sauvages, a história se passa na França, em Bellevile, um bairro insalubre de imigrantes. Uma jovem, Eve- Marie, cujo apelido era “a moça do grande prazer” encontra-se trabalhando para um cafetão chamado M 30%, pois retém 30% das bebidas e do dinheiro pago às prostitutas. Após toda esta exploração, acaba por casar com Plethore, um poeta que frequenta as prostitutas e as casas da noite. Enfim, Femme nue, Femme noire é a história de uma jovem ladra Irène Fofo, que decide tomar tudo que a sociedade lhe recusa : a liberdade de existir e de usufruir de seu corpo. Considerada como louca, ela mantém relações sexuais com todo o bairro e os homens aproveitam deste estado de fato para humilhá-la, satisfazendo-se sexualmente.

I - A cultura do desafio ou o corpo feminino confiscado.

De início, Ateba, jovem heroína do C’est le soleil qui m’a brûlée é submetida a um controle crescente por sua mãe . Uma educação rígida, ordenada pela obsessão quanto à virgindade, impede a jovem de desabrochar. Paradoxalmente, este espaço de sobrevivência é marcado pela corrupção, pela depravação, a exploração sexual e as perseguições de todo tipo. No caso, quando Ateba vai a um encontro galante com seu amante Jean Zeep, encontra sua mãe, que entra em uma cólera indescritível. Esbofeteia sua filha, injuriando-a, chamando-a de prostituta, “ Puta, espécie de puta, você me desonra? O que dirão os vizinhos (…) Quero te matar…. quero matá-la, viram suas roupas, parece uma puta… quero jogá-la na rua” (SCB,64)

Com a reiteração da palavra “puta”, seguida de altercações verbais e de injúrias lascivas e triviais, nota-se claramente o conflito mãe — filha, paralelo às relações dominantes/ dominados, conflito que mascara um problema entre as gerações.

A mãe, substituta do pai, adapta-se às exigências falocêntricas. Torna-se, por isto, a castradora, devoradora da personalidade da filha, a ponto de transformá-la em mercadoria.

A mãe de Eve-Marie, em Les amours sauvages, ensina-lhe algumas astúcias para atrair os homens, enquanto que no primeiro romance , Ateba deve vender seu corpo para suprir as necessidades de sua velha mãe, Betty, usada pela prostituição.

Nem é preciso sublinhar que neste meio extremamente precário, as crianças tornam-se adultas muito cedo e são exploradas por sua própria família. Assim, o corpo feminino, desde a mais tenra infância, é procurado pelo que C.Beyala chama “ as nádegas habituais” (CSB,74), e a genitora apresenta-se como a guardiã das tradições intangíveis.

A exploração sexual é clara em Les amours sauvages: Eve-Marie está bloqueada entre o comerciante M 30% e o poeta Pléthore. Mostra-se infiel quando isto lhe agrada. Com uma arrogância notória, trata seus clientes de “ negros nostálgicos” e de “ brancos enegrecidos” (FN,FN, 54)

Em um ambiente carcerário, Eve-Marie é explorada pelo europeu que pretende marcar sua supremacia sexista e racista, com uma preocupação maior: a rentabilidade econômica, os “ 30%”.

Embalada pelas ilusões de uma Europa paradisíaca e confrontada às duras realidades econômicas, seu casamento com Pléthore torna-se então a esperança última de uma mulher que se dá conta de ser o brinquedo dos homens; que ela não existe como ser humano em uma sociedade corrompida. Em uma palavra, ela é uma domestica e um vaso, controlada e possuída como mulher e como força de trabalho.

Enfim, a narradora descobre o mundo das falácias, das “ caridades interessadas” e das “ sensualidades comercializadas”. Reconhece-se então , claramente, um desafio às identidades sexuais, um conflito e um antagonismo de gêneros.

Ora, para dar um sentido à vida destes “ esgotos da terra”, a autora , revoltada, rejeita as doces palavras da mãe carinhosa, para incluir em seu discurso um novo sopro poético, abrasivo, uma escrita das margens, que descreve as zonas tabu: o inominável. Segundo ela, este amordaçamento das mulheres clama por métodos insolentes e audaciosos. Utiliza então uma escrita violenta, como resposta à estratégia patriarcal. Enfim, os abandonados se apoderam da palavra pública, dita masculina.

II - Acultura do desafio ou a palavra masculina “castrada”.

Em um primeiro momento, a castração ou a erradicação do poder masculino se manifesta através da marginalização do homem. As mulheres da ficção são particularmente arrogantes , vindicativas e cínicas. Esta animosidade vai desde a rejeição total ao desejo de morte. Por exemplo, uma multidão de mulheres encontra Eve-Marie, toda assustada após uma briga com seu marido. Perguntam-lhe se seu marido morreu, mas antes de ouvir a resposta, uma dentre elas, determinada, grita: “ bem, melhor assim!”( FN,FN, 17)

Por outro lado, os homens aparecem como inimigos das mulheres, pelo seu complexo de superioridade; eles as subestimam e as coisificam, ao mesmo tempo em que elas lhes dão a vida, encarnam a criação. Por causa deste antagonismo, dito natural, tem destinos radicalmente opostos e para provocá-los, Irene Fofo une-se a todos os homens: dos homo aos heterossexuais, passando pelo echangismo, para provar-lhes que não há monopódio do falo.

Em sua estratégia, o essencial é subverter as regras, usufruir seu corpo e transgredir as convenções sociais rígidas. Já que os homens consideram as mulheres como um monte de carne, é melhor ignorá-los, aprender a viver sem eles e se possível, eliminá-los, quando se mostram impiedosos com elas.

É nesta ordem de idéias, que Betty, mal tratada por seus múltiplos amantes, é suspeita de feitiçaria, já que muitos deles desaparecem misteriosamente. Com um cinismo sem igual, a narradora de C’est le soleil qui m’a brûlée tenta explicar-nos sem emoção, que “ depois de uma relação sexual, suas mãos experimentadas, dotadas de sensibilidade e saber, estrangulavam os homens” (SCB,68) Este mesmo espírito de vingança leva Eve-Marie , com um espantoso sangue frio, a encaminhar seu marido às prostitutas, caso não estivesse contente de ser enganado .

Com efeito, o homem simboliza o caos, a ruína e a destruição; é portanto, inútil nele confiar e a ele aliar-se, pois não merece senão a humilhação. Isto se evidencia no caso da violência feita às mulheres por Jean Pierre, que mata sua mulher Flora depois de tê-la espancado.

Diante das decepções, desta injustiça milenar, a escritora apela à solidariedade feminina universal. Segundo ela, se as mulheres querem verdadeiramente se realizar enquanto identidade autônoma devem mostrar-se intransigentes em relação a seu opressor, o macho.

É pelo viés de outras mulheres, que poderá assumir várias identidades sexuais. As mulheres devem então trazer a luz às mulheres, devem ser seus próprios guias. Assim, Ateba buscava a mulher mítica, a “mãe- mar”. É por isto que estabelece a correspondência com outras mulheres. A ruptura com os homens tendo sido consumada, ela deve caminhar entre três verdades:

“ . regra 1: buscar as mulheres

. regra 2: buscar as mulheres

. regra 3: buscar as mulheres e eliminar o caos”(CSb,88)

Esta resolução mostra-nos que a heroína se mantém imperturbável em sua decisão, na medida em que, para se subtrair das garras do sistema masculino, fincado em fortes raízes, necessita-se de uma determinação ardorosa e esta revolução sexual toma dimensões mais amplas, para atingir a revolução política.

Trata-se, no dizer de Awa Thiam, de uma reorganização social:

“ Os costumes devem ser levados em conta, pois para uma liberação total das mulheres, uma reconversão das mentalidades é indispensável. É uma transformação total das estruturas neocoloniais atuais que é preciso realizar, e mais do que isto, uma revolução radical.” (Thiam, 97)

Se Beyala encontra Thiam na questão da revolução sexual como um prelúdio à revolução sócio político, o radicalismo da primeira recusa toda atitude sexista em sociedades onde tudo é feito para os homens; para a segunda, não há mais nada a esperar dos homens, covardes e demagogos. Assim, sua heroína escreve suas missivas apenas às mulheres, opta claramente por uma “ginocracia”. [2]

III - Jogo de alternância mulher- homem: uma atividade lúdica e a utopia literária.

Com efeito, a literatura não é um manual sociológico, e o exagero próprio a C. Beyala é mais um fenômeno de sua criação que uma verdade histórica. A escritora romanceia a realidade, ela diverte-se recriando um mundo a partir de uma poética, de versos, de um lirismo. Projeta esta parte de sonho da qual a humanidade tem tanta necessidade. Seu ideal, ela o desvela no les amours sauvages, dizendo que sua poesia mudará a face do mundo. [3]

Apresenta-se como uma despertadora de consciências, busca uma sociedade igualitária. Reconhece que sua responsabilidade transhistórica está ainda longe de seu término. A criadora está simplesmente em busca de um novo humanismo, além da aparente agressividade em relação ao sexo masculino. Aliás, ela diz que uma mulher que se constrói ela mesma é frágil. Mas para edificar esta cidadela igualitária, a missão é das mulheres, é óminitemporal.

As personagens femininas de Beyala, entretanto, tentam humilhar os homens. Este método, ainda que contestado por uma boa parte da crítica, deixa entrever que as mulheres tentam forjar utopias a partir de ambições ilimitadas. Este caminho não é , talvez, realizável, mas coloca em questão as tradições socioculturais ainda vivas na África e mais ou menos no mundo todo, sobre o corpo feminino. Por sua insolência, expõe uma audácia criativa que não deixa indiferentes nem suas leitoras nem aquelas/es que defendem os direitos das mulheres.

*

O corpo feminino na obra de C.Beyala é confiscado pelas forças patriarcais: a mãe tradicional, as forças públicas e os homens. Mas as categorias que sofrem esta opressão mostram-se, elas também, rebeldes e intratáveis em relação aos mesmos que as aviltam. Tentam eliminar o caos por todos os meios.

Em uma linguagem de baixo calão, suas figura marginais simbolizadas por Ateba, Eve-Marie e Irene Fofo nomeiam o inominável, tocam a indecência, levando o privado para o público. A escrita surgida dos bas-fonds e dos guetos se transforma em uma estética revolucionária.

Com efeito, tecem um texto a partir do qual o sexo é transgressivo e subversivo, mas é também profundamente original e inovador para a jovem literatura africana pós — colonial. A recepção de uma literatura deste estilo não é muito favorável na África, enquanto o é de forma altamente positiva na América do Norte.

Isto posto, não se pode perder de vista que dois aspectos interferem na luta negro-africana: uma luta pela independência econômica e política e uma luta pelos direitos das mulheres. Ora, em nossa opinião, toda forma de precipitação e amadorismo está destinada ao fracasso. As mulheres devem, portanto, usar a educação para melhor comunicar-se entre si e com os homens decididos a partilhar esta luta. Este auxilio não representa uma fraqueza e sim um fortalecimento para melhor preparar o combate. É nesta perspectiva que se pode triunfar num caminho cheio de emboscadas.

Falando de “ quatro gerações de mulheres para construir esta arquitetura harmoniosa onde não haverá nem raça nem sexo, mas seres humanos, (ibid), a autora tenta o desafio de todos os grandes utopistas. É esta mulher, edificando um projeto de futuro que nos leva a concluir, com a senegalesa Mariama Ba, sobre a função política das literaturas africanas escritas:

“Cabe a nós, mulheres, tomar nosso destino entre as mãos para transformar a ordem estabelecida contra nós e não mais sofrê-la. Devemos usar como os homens, esta arma pacífica, com certeza, mas segura, que é a escrita. “(Ba, 3)

Referências

Calixthe Beyala, C’est le soleil qui m’a brûlée, Paris, Stock, 1987.

- Tu t’appelleras Tanga, Paris, Stock, 1988.

- Les Amours Sauvages, Paris, Albin Michel, 1999.

Femme nue, femme noire, Paris, Albin Michel,2003.

II- Les ouvrages critique sur les théories littéraire et féministe africaines

Ba Mariama, Une si longue lettre, Paris, Présences Africaine,1981.

— — — — — — — — « la fonction politique des littératures africaines écrites » in Etudes Françaises,pp.3–7..

Kotchy Barthélemy « Sociocritique, littérature et contexte socioculturel », revue d’ethnologie n°2–3, pp61–65.

Thiam, Awa, Parole aux Négresses, Paris, Denoël /Gonthier, 1978.

III- Autres travaux sur la théorie féministe en relation avec notre sujet

Braidotti, Rosi, « Pour un féminisme critique» in Les cahiers du Grief, Paris, Editions Complexes,1992.

Cixous, Hélène, Le rire de la méduse, L’arc, n°16, 1975, p.66.

Biografia

Cécile Dolisane-Ebosse é especialista das literaturas africanas e antilhesas e de Estudos femininos e do gênero. Sua tese, em 1998, se intitulava « A imagem da mulher na literatura camaronesa: o caso de Mongo Beti, F. Bebey, L. Dooh-Bunya et Werewere Liking”. É igualmente titualar de um DEA em ciência política: ” le processus démocratique au Cameroun: mythe ou réalité”(1993). Conferencista internacional, suas novas áreas de pesquisa se direcionam para as questões de identidade, os novos cosmopolitismos assim como os mitos e os ritos femininos na África negra, sob a égide o Centro de Estudos Africanos de Leiden(Holanda. Sua última publicação está no coletivo MONGO BETI, sob a direção de Oscar Mfouma en juin 2003. « Le traumatisme féminin ou la métaphore de la servitude dans Perpétue ou l’habitude du malheur » seguido de uma homenagem : « L’exil perpétuel d’un fils de la forêt : Mongo Beti »., além de publicar « L’ambiguïté du portrait féminin dans le roman camerounais : Déesse ou sorcière » in Women in french, Spring 2003, pp. 141–160.

1 Hélène Cixous, Le rire de la Méduse, L’Arc, 1975, p.16. et Awa Thiam, Parole aux Négresses, Paris, Denöel Gonthier,1978,p.20.

2 Rosi Braidotti, « Pour un féminisme critique» in Les cahiers du Grief, Paris, Editions Complexes, 1983, p.99.

3 Ela deseja ardentemente, além da feiúra do mundo real, escutar as sonoridades envolventes que embriagam a alma e permitem ao ser humano uma evasão, sobretudo à mulher, de se subtrair à opressão sociopolítica. Ela convida « à escansão de um poema » efetuada pelo tamborim, Femme nue, Femme noire, p.35.

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