As Mulheres de Platão a Derrida ou o sujeito impossível da história[1]

Michele Riot-Sarcey. Tradução: Letícia Fernandes Resck. Revisão: tania navarro swain

Revista Labrys
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8 min readAug 7, 2019

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Texto original

Resumo

A antologia crítica que nos apresentam Françoise Collin, Evelyne Pisier e Eleni Varikas oferece às/aos leitoras/es uma seleção de discursos sobre o feminino notavelmente escolhida[2]. Ao mesmo tempo, abre um enorme campo de interrogações. A historiadora, bem particularmente, fica perplexa diante desse inventário de enunciados filosóficos que, essencialmente, parecem escapar à história. Poucas diferenças de conteúdo, em efeito, dentro desses textos : incansavelmente, os homens letrados tecem a mesma malha que, sob cores diferentes, representa o sexo feminino, inferior, incompleto, mutilado, culpado.

Palavras-chaves : discurso filosófico, inferioridade do sexo feminino.

Sujeito decadente, vítima de sua natureza, racionalmente e portanto, razoavelmente dominado pelo homem. Único ser político, este personifica a autoridade da qual depende a ordem da cidade. Outras exceções, claro, mas nós as revisitaremos. O conjunto de textos, oferecidos à leitura nessa obra, esclarece uma forma de construção da diferença entre os sexos — método de análise familiar às feministas. Porém, mais ainda e, além dos princípios de exclusão há muito tempo repertoriados, a leitura contínua da antologia revela uma myse en abîme de uma categoria humana. Pela mediação conceitual se constrói, ao longo dos séculos, um ser abstrato que deveria representar o conjunto das mulheres, cuja existência se inscreve na imutabilidade dos tempos.

Mais precisamente, a experiência das mulheres, seja qual for o período considerado, não intervém na construção do sentido na história. Assim, a negação de toda a capacidade histórica não permite senão a percepção de sujeitos desprovidos de toda individualidade e que, sem exceção, são desprovidos de expressão pública. Isso pode explicar, em parte, e malgrado a profusão dos trabalhos sobre a exclusão das mulheres ou sobre a construção das diferenças, as razões pelas quais, com exceção da história das representações, a história pode razoavelmente se interpretar e se escrever, como sempre, na ausência das mulheres. Pois a expressão conceitual que as encarna, fonte privilegiado dos historiadores como instância de legitimação de uma categoria dominada, neutraliza a realidade e não impede em nada a inteligibilidade de uma história que se delineia sem elas.

A formação das categorias de pensamento, principalmente a força do paradigma filosófico, retira toda possibilidade de expressão aos indivíduos considerados incapazes de existir socialmente. Ao mesmo tempo, pilares dos sistemas políticos, de todos os sistemas: clássicos, teológicos, modernos, democráticos, as mulheres não acedem jamais, nos discursos que as citam, ao status de sujeito. Incessantemente representadas sob a abstração de uma feminilidade evolutiva, admirada, temida ou afastada, as mulheres são assujeitadas a uma função.

Sob o império de um significante, seu futuro permanece incompleto e a autonomia de sua existência, uma utopia. O modo de significar o papel social de um grupo (sua representação) permite o apagamento, ou a inversão de realidades possíveis: o significante (feminilidade, feminino, feminina) que as define se impõe a tal ponto que hoje, em uma atualidade paritária, perdura uma especificidade feminina. Ora, esse feminino, herdado de uma categoria historicamente construída encarna o obscurecimento, não somente do ator ou da atriz, mas do sujeito da história.

Apesar da dificuldade do exercício — uma antologia, como um dicionário, recorta, seleciona, reduz, ou no melhor dos casos, sintetiza — as autoras souberam evitar as principais armadilhas desse tipo de edição, infelizmente cada vez mais ao gosto dos leitores, desejo de abarcar a totalidade de um saber ilusório. Contra os preconceitos largamente difundidos, elas buscaram, na medida do possível, situar todas essas idéias tornadas normativas no campo da história. É ao longo da metodologia, e aprofundando a reflexão sobre a construção do sentido da história, que eu tentarei analisar o alcance dos enunciados, principalmente filosóficos, apresentados nessa obra.

“Nós quisemos colocar a historicidade a serviço da singularidade dos textos. Ao recolocá-las no tempo, dentro da configuração singular das condições de produção e dos desafios teóricos ou políticos em relação aos quais eles foram escritos ou debatidos, nós buscamos protegê-los e libertá-los : por um lado dos efeitos repetitivos de uma leitura ahistórica que, de Aristóteles a Comte, não via mais que uma mesma significação de inferioridade natural das mulheres ou da distinção público/ privado; e de outro lado, dos efeitos de um determinismo historicista que filtrava tudo aquilo que, na sua leitura, viria desafiar as idéias preconceituosas definidoras de uma época, e do que é ‘precursor’ ou ‘retrógrado’ ”(Introdução p.18–19). Sob minha perspectiva de historiadora, tentarei analisar o dispositivo de diferentes teóricos que são bem sucedidos, pela abstração conceitual, não somente em construir um gênero com funções específicas, mas igualmente em eliminar da história os sujeitos submetidos a um modelo autoritário, cuja referência se impõe à grande maioria dos indivíduos que ele supõe representar.

Historicidade contra contexto

Como dar conta do sentido desses textos, historicamente datados, mas participes da construção de um invariável feminino? Como, além do paradigma filosófico, incessantemente repensado e reiterado fora da linguagem histórica, restituir as tensões, os antagonismos, os desafios de uma verdade que se deseja infinita, atemporal, definitiva? A reinvenção permanente de um feminino imutável, idêntico à ideia que se faz da realidade, não presente mas passada, está no cerne das questões que não conseguem perfurar a couraça de um certo modo de pensar a história.

Como escapar à abstração do feminino, instrumento de exclusão, útil à análise da construção da diferença, mas impotente ao restituir a historicidade do conflito entre dominante e dominado? Essencialmente, as mulheres estão, dentro desses textos, efetivamente separadas do real. Assim, como sair de uma objetificação recorrente, expressão de uma naturalização das funções sociais, quando se conhece a tendência da história social ao privilegiar os conjuntos representativos? Ora, não podem ser representativos de uma categoria senão os grupos se comportam conforme às representações das quais eles são o objeto.

Isto é porque, inversamente à metodologia tradicional em história, importa abandonar os atalhos balizados do contexto para dar conta das historicidades dos enunciados significativos dos textos, mas igualmente dos objetos em questão. Inúmeras vezes, em história, o contexto é invocado para a legitimação de um modo de pensar, de uma realidade hierarquizada, de manifestações de exclusão, de rejeição ou de incompreensão. Ora, a referência ao que se manifesta em torno do objeto estudado, impede a relação do que é — apresentado como um dado: o contexto — e do que será — objeto da análise do/a historiador/a. Impossível, parece-me, separar os elementos de interação contínua no momento observado. O contexto é, com freqüência, o pretexto para não questionar os diferentes pré-julgamentos que geralmente o constroem. [3].

Por causa de sua má utilização, o contexto é perfeitamente substituível pela noção de contextualização. Imprecisa demais, essa noção arrisca-se a evacuar a relação de tensão entre o que era e o que se tornou. A busca da historicidade parece-me mais rigorosa pois permite restituir as questões, a recepção de uma ideia ou de uma prática pela explicitação do sentido que ela carrega. Tal é o objeto da pesquisa sobre a feminilidade.

A noção de historicidade ainda é pouco dominada pelos historiadores. François Hartog foi um dos primeiros a considerá-la, mas de uma maneira bem particular. Através do que ele denomina de regimes de historicidade, ele busca entender a “ acontecimentalidade” (recipiente de acontecimentos) numa “temporalidade” que lhe será própria, principalmente no do relacionamento que uma sociedade instituída com seu passado.

“Eu entendo com isto uma formulação hábil da experiência do tempo que, em retorno, modela nossas maneiras de dizer e de viver nosso próprio tempo (…). Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento (…). Ele ritma a escrita do tempo, representa uma ‘ordem’ do tempo à qual podemos aderir, ou ao contrário (e o mais das vezes) desejar escapar, procurando elaborar uma outra ” . [4]

Se uma forma de pensar pode ser atribuída a um período, a situação é totalmente outra quando interrogarmos a especificidade de um discurso através da linguagem de um autor. Dessa perspectiva, a referência à noção de historicidade se relaciona frente da metodologia de análise de R. Koselleck, complementada pelo ponto de vista crítico de Henri Meschonnic.

“A historicidade não é somente a inscrição de valores dentro da história. Isto seria sua característica histórica. O historicismo consiste exatamente na ilusão de uma limitação de sentido às suas condições de produção, a ilusão de que o conhecimento do sentido não é outro senão o conhecimento de suas condições. É o positivismo dos historiadores. Na medida de sua convicção de ciência os torna surdos à teoria da linguagem.”[5]. Entretanto, no pensamento de Meschonnic, a atenção se fixa sobra a posição do sujeito. Ora os teóricos que analisamos aqui objetificam, pela intrusão na linguagem de práticas de dominação, uma categoria social, enunciando verdades de direito, que comandam o exercício de sua própria razão.

De fato, eles suspendem a historicidade de um sujeito tornado inoperante por sua não-existência. Entretanto, é precisamente pela análise da linguagem que é possível chegar à significação de uma mutação na direção da abstração do feminino (eterna verdade) cujo efeito conceitual conduz a uma exclusão da história que faz sentido. Na condição, é claro, de estar atenta/o à maneira pela qual são enunciadas essas verdades, infinitamente mas diferentemente repetidas para tornar-se, em cada instância do presente, a Verdade do ser das mulheres. Reencontrar o sentido de uma forma de objetificação, num dado momento, é também tornar visíveis os referentes e as questões de significação aos quais ele remete.

É igualmente estabelecer a singularidade de um discurso que, pelo viés do paradigma filosófico, torna crível a universalidade de um modo de ser em sociedade. Se a história, no sentido liberal do termo, é uma sucessão de relações de força, essa forma de relação antagônica de um gênero particular não é legível no acontecimento, mas passa a ser acessível na elaboração das representações que tornam verdadeira uma realidade inteiramente construída em torno de uma ordem social pré-concebida. Isso supõe a redescoberta das tensões, dentro e fora do texto, pela observação da relação entre sujeitos concretos e o ordenamento da representação da qual ele é o objeto.

Eu aproveito essa reflexão para exprimir os limites de uma leitura histórica exclusivamente centrada numa certa forma de representações “coletivas”, sob o justo pretexto de que o historiador não pode ter acesso diretamente às práticas dos contemporâneos, sem passar por suas interpretações textuais ou arquivísticas que lhes dão sentido. Limitar o conhecimento do passado ao conteúdo de suas representações, mesmo se tratamos dos imaginários sociais fundadores de culturas populares ou criadores de normas através dos discursos das elites, é reduzir a análise dos textos à inteligibilidade de seus enunciados e se proibir a análise das questões semânticas que revelam suas anunciações.

Práticas de reconstrução ou de apagamento de um aspecto de uma realidade que recobrem. Experiência distinta que podem expressar outros sujeitos, evacuados com freqüência do tempo longo história. Limitar-se à análise das representações ditas “coletivas”, é multiplicar a exclusão das experiências singulares, dissonantes ou defasadas em relação às representações cujo grupo é objeto. Em outras palavras, reproduz-se o discurso dos vencedores, que deveriam representar o grupo dos vencidos, destituídos de voz. Constatar isso não é o suficiente, ainda falta decodificar o modo de construção significativa desses discursos.

Nota da editora: este texto é apenas o início do original, que pode ser consultado integralmente neste número de Labrys, études féministes, em francês.

Biografia

Michèle Riot-Sarcey, professora de história contemporânea na Universidade de Paris 8. Especialista da história do século XIX, particularmente do gênero e da utopia. Autora de inúmeras obras, dentre as quais a “Démocratie à l’épreuve des femmes” (Albin Michel1994), “Le Réel de l’Utopie” (Albin Michel 1998) e “l’Histoire du féminisme” (La Découverte.2002). Organizou igualmente numerosos livros coletivos sobre a aprendizagem da democracia, do poder, das representações, etc e recentemente um “Dictionnaire des Utopies” (Larousse 2002)

[1] texto publicado na “Temps Modernes” de julho de 2002, revista à qual agradecemos a permissão de re-publicação

[2] F. Collin, E. Pisier, E. Varikas, Les Femmes de Platon à Derrida, Anthologie critique, Paris, Plon, 2000

[3] Chritian Jouhaud, “ Littérature et Histoire ”, Annales, Histoire, Sciences sociales, mars-avril 1994, n°2, 49e année, présentation, p.273–274. Citation reprise d’un texte de Xavier Bourdenet , à l’issue d’un débat au sein de notre séminaire de l’Arsenal

[4] François Hartog, “ Temps et Histoire ”, Annales ESC, 1995, n°6, nov-dec, p.1220–1221.

[5] Henri Meschonnic, Politique du rythme, Politique du sujet, Paris, Verdier, Lagrasse, 1995. p. 142

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