Claude Cahun e Marcel Moore
Um casal literário e artístico dos anos 20 precursor do gênero “neutro”

Marie-Jo Bonnet. Tradução : Maria Fernanda Vasconcelos de Almeida. Revisão: tania navarro swain

Revista Labrys
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20 min readAug 7, 2019

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Texto original

Claude Cahun e Marcel Moore

Resumo

Claude Cahun (pseudônimo de Lucy Schwob (1894–1954) e Marcel Moore (pseudônimo de Suzanne Malherbe (1892–1972) formaram um casal literário e artístico raramente estudado enquanto casal de mulheres criadoras. Perguntamo-nos se a ocultação de Suzanne Malherbe não está inscrita em seu trabalho e nas opções filosóficas que elas trilharam em um contexto cultural misógino, anti-semita e lesbofóbico da primeira metade do século XX. Fotógrafas, elas trabalharam a imagem das mulheres ou, mais exatamente, a persona, a máscara facial, os gêneros masculino e feminino, através de retratos de Claude Cahun, cuja contemporaneidade é surpreendente. Escritora, Claude Cahun antecipa o conceito contemporâneo de espaço virtual no seu texto Vues et Visions (ilustrado por Marcel Moore) que explora uma maneira nova de representar a homossexualidade feminina, sem cair na armadilha do masculino-feminino. Mas, optando pelo “falar neutro” e pela imagem óptica, elas não falaram no masculino, o que explicaria a invisibilidade do casal e de seu trabalho pelos surrealistas e, mais amplamente, a ocultação do desejo da mulher pela mulher, que se torna irrepresentável na sua abordagem.

Palavras-chave: a arte do século XX, casal literário e artístico, feminismo, França, lesbianismo, identidade, imagem óptica,lesbofobia, fotografia, surrealismo.

A obra de Claude Cahun, da qual se fez nos últimos anos, de maneira que me parece abusiva, a precursora da retomada em questão das identidades de sexo e gênero, parece-me o exemplo desse acesso impossível à imagem do casal de mulheres numa sociedade que não oferece outra alternativa à mulher avant-garde a não ser rejeitar “a feminilidade” para existir em igualdade com o homem.

Descoberta no início dos anos 1990 graças ao trabalho de François Lepelier (Leperlier, 1992), a obra de Claude Cahun é conhecida, sobretudo pelos seus extraordinários auto-retratos, nos quais ela se mostra de cabeça raspada. Mas ela inclui outras facetas igualmente importantes, tais como a narrativa de sonhos, textos que aparecem na revista do Mercure de France e outras revistas menos conhecidas como La Gerbe ou Philosophies, traduções e livros ilustrados de desenhos e montagens fotográficas (heliogravuras) realizadas por sua amante Suzanne Malherbe; esta última tem sido simplesmente ignorada por nossa modernidade que se interessou apenas pela figura de uma Claude Cahun surrealista e precursora de drag queens. Ou seja, embora tenham sido inseparáveis na vida, o foram igualmente em grande parte dos trabalhos fotográficos atribuídos a Claude Cahun, o que nos levar a indagar se a ocultação de Suzanne Malherbe, em relação a Claude Cahun não foi induzida pela própria obra.

Em princípio, notemos que os críticos contemporâneos não procuraram saber quem tirava as fotos. Seria Claude Cahun? Mas, nesse caso, é preciso interrogar-se sobre o status do autor pois a modelo poderia ser, ao mesmo tempo, a fotógrafa? E o que dizer da revelação, feita a maior parte do tempo no seu laboratório particular em Nantes, Paris e depois Jersey, da qual Claude Cahun faz eco em Aveux nos avenus, dizendo:

“No minuto em que nossas duas cabeças (ah! Nossos cabelos misturavam-se inextricavelmente) se debruçavam sobre uma fotografia — retrato de uma ou de outra, nossos dois narcisismos se afogando nela, era o impossível visto num espelho mágico (Cahun, 1930 : 13).”

Impossível revelar de melhor forma o trabalho em comum.

Em seguida, é um casal que entra na literatura sob uma dupla assinatura masculina: Claude Cahun para o texto, Marcel Moore para as ilustrações. Por que elas duas adotam pseudônimos masculinos? Para contornar a misoginia do mundo literário ou porque a identidade é precisamente o que lhes faz falta? Talvez menos no caso de Claude Cahun, enquanto praticamente nada sabemos sobre Suzanne Malherbe, que não deixou arquivos; Claude Cahun, ao contrário, escreveu uma longa carta em 1951 a seu amigo de Nantes, Charles-Henri Barbier, na qual ela conta os acontecimentos importantes de sua vida, trazendo uma nova luz à biografia de François Leperlier (Leprelier, op. cit., p. 262)

Claude Cahun nasceu em Nantes em 1894, numa família judia. Ela recebe o nome de Lucie Schowb. Seu pai Maurice dirige o jornal nantês Le Phare de la Loire e sua mãe, Mary-Antoinette Courbebaisse, está doente. “Eu tinha apenas quatro anos na época de sua primeira crise mas a lembrança ainda está viva”, escreve ela na carta. Mas sua mãe passa por novas crises e logo será internada numa clínica parisiense onde morreu, ao que parece, em 1937. Mathilde, sua avó paterna, terá uma grande influência sobre ela.

“Minha admiração pela avó Mathilde, somada aos sentimentos que eu experimentaria, dez ou doze anos mais tarde, pelo filho e pela viúva de Leon Cahun, foi o motivo de… Claude Cahun — que representava (representa, a meus olhos) meu nome verdadeiro, mais do que um pseudônimo ( Neuvecelle: 1990, p. 32).”

A esse traumatismo acrescenta-se o do caso Dreyfus, que fez com que seu pai envie Claude Cahun para estudar na Inglaterra até que, em 1909, um “encontro fulminante”, a retira desta atmosfera, onde a loucura paira como uma sombra: trata-se de Suzanne Malherbe, que tem dois anos a mais do que ela e cuja mãe liga-se ao pai de Lucy, antes de casar-se com ele em 1917, depois da morte de seu marido. Não só elas vivem “uma paixão ciumenta, exclusiva”, mas ei-las também irmãs pelo casamento dos pais. “A estranha coincidência que nos reunia em família parecia arranjar tudo de forma ainda melhor. Mas é preciso levar em conta anos de revolta pelos quais eu tinha passado, o estado de espírito que eles tinham engendrado…”

A constituição do casal, ou do duplo casal, está fortemente ancorada em uma espécie de destino, que, entretanto, não consegue apagar o fantasma da loucura materna. Claude Cahun é anoréxica e às vezes se droga com éter. Ou seja, nega seu corpo em um esforço desesperado de viver a ficção construída pela maior parte dos anoréxicos, como ressalta Henri Neuvecelle:

“ser o sujeito de uma palavra neutra, desvinculada da imagem do corpo sexuado. Muito mais que ao homem, cabe à mulher este dilema singular: aceitar a imagem inconsciente do corpo (…) é aderir ao signo da negação e não de seu reconhecimento como pessoa; recusá-la é privar-se da possibilidade de uma identidade fiel a seus princípios “.(Neuvecelle, 1990 : 32).

Para Claude Cahun, falar neutro equivale a escapar dos gêneros, da identidade sexual, como ela confessará em 1930:

“Embaralhar as cartas. Masculino? Feminino? Mas isso depende dos casos. Neutro é o único gênero que sempre me convém. Se ele existisse na nossa língua, não se observaria essa flutuação do meu pensamento. Eu seria, seguramente, um bom exemplo dele(Cahun, 1930 : 176).

Vamos ver como uma problemática individual (a anorexia) encontra um contexto sócio-cultural que só pode reforçar seu falar neutro, já que a feminilidade só é reconhecida numa relação de submissão ao masculino. Falar neutro não existe. Falar neutro, para uma mulher, é falar no masculino; é não aceitar o corpo a não ser através de seu reflexo, ou sua sombra projetada como se verá no seu primeiro texto publicado com Suzanne Malherbe, Vues et Visions.

Casal de mulheres na vida íntima, é um casal de homens que assina a primeira obra realizada em comum. Lucy Schwob escolheu o pseudônimo de Claude Cahun, enquanto que Suzanne Malherbe, o de Marcel Moore.

“C.C.” e “M.M.”! Admiráveis significantes de um amor “inicial” que se esconde sob a pluralidade dos possíveis significados de suas iniciais. É C que ama M, ou Cesse (CC), ela me ama, ou Moore, mais um pouco, ou morte, Marcel e Caim etc. Atrás do casal de homens que reivindica a paternidade da obra comum, esconde-se um casal de mulheres, que pode igualmente considerar-se a matriz da obra ou sua sombra silenciosa. A questão do casal articula-se com a questão do duplo, ou seja, da reduplicação da identidade masculina e/ou feminina com sua sombra. De que sexo é o autor de Vues et Visions? Ninguém sabe, mas o que se pode saber, em contrapartida, é como esse livro coloca em cena esta questão na construção do próprio livro, como se ele fosse um espelho usado para dissociar visualmente o semelhante e o diferente.

Elas realizam uma montagem em página dupla de texto e de desenho. Cada página dupla é consagrada a uma história “vista”. Na página à esquerda, o narrador — é um homem, evidentemente — conta uma cena vista em Croisic, pequena vila de pescadores na Bretanha onde Claude Cahun passava sua férias. Na da direita, ele vê a mesma cena, mas que agora está situada na Antiguidade, com um tema diferente. Em “O Encontro”, por exemplo, o narrador de Croisic vê duas embarcações encontrando-se sobre o mar. Em Roma, ele vê duas cortesãs andando uma ao encontro da outra.

Este duplo deslocamento no espaço e no tempo, durante o qual só algumas palavras diferem de um texto a outro, permite introduzir um olhar sobre a homossexualidade, mas de forma tão alusiva que um leitor distraído pode muito bem não ver nada, confundido pelos pseudônimos masculinos atrás dos quais se escondem as autoras. Por exemplo, no “encontro” o balé de sedução das duas cortesãs é “visto” assim pelo narrador:

“Vestidas de jóias e seda, elas aproximam-se uma da outra e, apesar da imensidão do lugar deserto, elas se tocam de leve; em um momento, suas sombras azuladas confundem-se; em outro, elas retardam o passo, depois afastam-se e cada uma retoma seu próprio reflexo. Mas meu olho, seduzido por esta visão breve demais, as une sem confundi-las” (Cahun, 1919 : 6–7) .

É nesse pequeno texto , que passou completamente despercebido por seus biógrafos e críticos que Claude Cahun se mostra nossa verdadeira contemporânea. Ela antecipa, com efeito, as pesquisas de arte contemporânea sobre o conceito de espaço virtual. Não é necessário representar a união de duas mulheres. É o olho que a produz no cérebro, no seu espaço mental, sem ter necessidade de recorrer à representação imagética.

O narrador sugere a união. Cabe ao/à leitor/a visualizá-la. “Mas meu olho, seduzido por esta visão breve demais, reúne as duas sem confundi-las”, escreve Claude Cahun, mostrando que ela tem perfeita consciência de criar uma imagem óptica e, no sentido mais amplo, o espaço de uma visualização mental da homossexualidade feminina, contanto que o olhar se exercite.

Como vai fazer a desenhista Marcel Moore para alcançar a mesma ideia de união “óptica”? Ela retoma a distancia do espelho com um desenho situado num pórtico que enquadra o texto sobre as duas páginas. No semi-pórtico da página da esquerda, onde a cena se passa em Croisic, ela desenha um rosto de mulher prolongado por nuvens. Na da direita, as nuvens são substituídas por um segundo rosto de mulher, religado ao primeiro por linhas sinuosas, e que sugere a ideia de um possível beijo entre duas mulheres. A desenhista é, portanto, menos “neutra” que o narrador, o que explica porque “ele” deve recorrer a procedimentos repetitivos para esconder o verdadeiro tema da união, como o fará Gertrude Stein no seu célebre A rose is a rose is a rose is a rose. Ela joga com a repetição a fim de criar um estado mental particular que prepara o terreno para a aparição do assunto tabu, no caso “ela”, já que a frase termina com “ela é minha rosa”, “ela” referindo-se a Alice Toklas.

Em Vues et Visions, Claude Cahun e Marcel Moore criam um espaço mental onde duas cortesãs aparecem, unem-se e desaparecem. Se esse espaço está impregnado da atmosfera de Chansons de Bilitis, que elas certamente leram, dela afasta-se radicalmente pelo fato de que o casal não está nem mesmo formado. São suas sombras azuladas que se confundem por um instante, e não seus corpos, e “cada uma retoma seu próprio reflexo”, o que significa que o real (Vues) e o imaginário (Visions) permanecem no estado de simples miragens, sem que possam religar-se um ao outro. A homossexualidade feminina permanece, então, ela também, totalmente virtual e não se arrisca a corporificar-se — medo da anoréxica — já que, escapando ao corpo, ao casal e à dualidade, o narrador só pode falar de sombras e reflexos.

Dessa forma, vê-se como o falar neutro escapa à reflexão sobre uma possível articulação entre o semelhante e o diferente, inerente a toda prática simbólica. As sombras, aqui, não são as projeções do sujeito, e sim palavras sem luz que fazem a imagem perder esse pano de fundo metafísico, pelo qual uma ausência remete sempre a uma presença — e reciprocamente.

Dois “auto-retratos” de 1928 mostram como esse tema do reflexo e do duplo não saem do olhar especular característico do espelho. Num deles, vemos o reflexo do rosto de Claude Cahun, rosto num espelho, fazendo aparecer dois rostos idênticos, mas visto sob um outro ângulo, numa mesma fotografia; no outro, vemos um rosto fotografado de perfil que foi colado no mesmo rosto visto de perfil, mas invertido da esquerda para a direita. Ou seja, o rosto remete-se apenas a ele mesmo, a sombra desapareceu e, com ele, o que sustenta o visível e que faz com que a imagem não seja uma simples cópia de um modelo. O duplo tornou-se uma reduplicação de uma mesma imagem, como se a divisão tivesse sido tão bem sucedida que o sujeito perdeu até mesmo a memória do seu outro ele-mesmo.

Esse desaparecimento é tão perturbador que Claude Cahun não abandonou a representação do casal, muito pelo contrário. Ela o fotografa sob vários ângulos. O casal surrealista, como André Breton e Jacqueline Lambam. Ela utiliza também falsos casais heterossexuais, como esta cena de Banlieue onde ela se mostra travestida de homem ao lado de Hélène Duthé vestida de mulher. Suzanne Malherbe a fotografa igualmente na companhia de Henri Michaux, na Ilha de Jersey em 1939; mas, curiosamente, não se encontra nenhuma foto das duas mulheres juntas, ou mesmo do casal C.C. e M.M.

Paralelamente a esse desaparecimento do casal, o tema da máscara torna-se leitmotiv de seu método fotográfico.

“Sob esta máscara, uma outra máscara. Eu não acabarei nunca de mostrar estas faces”, está escrito em uma heliogravura feita por Marcel Moore para Aveux non avenus (1930). Efetivamente! Claude Cahun não pára de fazer o inventário de todas as suas máscaras: a cabeça raspada, de frente, de trás, de perfil, travestida de homem, de mulher, a boca em formato de coração, deusa hindu, sob uma redoma de vidro, num armário (o “closet”, diríamos hoje) como se fosse preciso inventariar as imagens projetadas sobre as mulheres, já que não se pode captar seu “verdadeiro rosto”.

Todos esses retratos mostram, de fato, a que ponto ela está assujeitada pelo olhar que a sociedade lança sobre as mulheres. Uma sociedade que menospreza a feminilidade a ponto de reduzir a mulher ao seu corpo. Daí a revolta, mas também o impasse da revolta contra os gêneros que leva à confusão, não de gêneros, mas da máscara e do rosto. Negando seu corpo de mulher, Claude Cahun perde sua face ou, antes disso, mostra que um sujeito que se confunde com as figuras da persona não tem rosto.

E chega-se a essa situação paradoxal, na qual quanto mais ela exibe suas máscaras, menos ela está presente como sujeito da revolta. Que bela lição para nossa época fascinada pela crítica de gêneros. Porque, longe de denunciar as construções sociais ligadas ao sexo e ao gênero, Claude Cahun mostra seu assujeitamento aos clichês culturais de uma sociedade misógina e homofóbica, que nega às mulheres o status de sujeito criador, político e amoroso. Como diz C.G. Jung, “A persona não é nada mais do que uma máscara de assujeitamento geral do comportamento à coerção da psiqué coletiva” (C.G. Jung, 1964 : 84).

Falar neutro não é apenas falar no masculino, mas é também falar como todo mundo. Porque o sujeito deve obrigatoriamente assumir suas diferenças, sua “individualidade”, se ele quer ser reconhecido como sujeito pela coletividade. De outra forma, ele confunde-se com ela.

Claude Cahun não cessa de ocultar a mulher e as mulheres que estão na sua vida. Suas referências sobre homossexualidade, são essencialmente masculinas, embora ela tenha encontrado inúmeras lesbianas desde sua chegada em Paris em 1919, como Adrienne Monnier, cuja Livraria “Les Amis des Livres”, situada na Rue de l’Odéon, em frente à Livraria “Shakespeare and Company”, dirigida por Sylvia Beach, sua companheira, terão uma grande importância na vida literária do período entre guerras. Ela encontra também Jeanne Heap, Margarett Anderson e Georgette Leblanc no Teatro Esotérico, as três mulheres discípulas de Gurdjieff, sem falar em artistas que viviam em Montparnasse onde o casal se instala em 1922, na Rue Notre Dame des Champs.

Do mesmo modo, seu primeiro manuscrito, que nunca será publicado, intitula-se Jeux Uraniens (1916–18), em referência a Platão e ao conceito do uranismo retomado pelo alemão K.H. Ulrichs em 1868 para qualificar “a mulher que ama a mulher de forma inata”. Muito pouco empregado na França, ele é utilizado, sobretudo entre os homens, para designar a presença de uma alma feminina num corpo masculino. É dessa ideia, aliás, que nasce a noção do “terceiro sexo”, aquele que não procria, mas que contribui para o progresso intelectual da humanidade. Por que ela emprega esta palavra “uraniana” ao invés de homossexual, lesbiana ou sáfica, apesar de ter publicado, em 1925, um texto sobre Safo, na revista do Mercure de France. Talvez porque Safo continua sendo “a incompreendida”, como ela diz no próprio título de seu artigo, mesmo uma desconhecida, já que Claude Cahun retoma, o mito ovidiano de seu suicídio no penhasco de Leucade, ignorando as traduções do helenista Salomon Reinach. Aliás, sua cultura é anglo-saxônica. Em 1929, ela traduzirá para o Mercure de France a obra La femme dans la societé do psicólogo inglês Havelock Ellis.

Cultura de referências masculinas, é também com homens homossexuais que nós a reencontraremos em 1925, entre os raros intelectuais que mantêm a revista Inversions, perseguida pelos poderes públicos por “ofensa aos bons costumes”.

Fundada por dois jovens funcionários dos correios, Gustave Beyria e Gaston Lestrade, para “agrupar os que sofrem de solidão”, a revista não irá além do quarto número porque os responsáveis são perseguidos e condenados a três meses de prisão e cem francos de multa, sem que nenhuma das grandes vozes homossexuais masculinas que se projetavam na “grande” literatura tenha intervindo a favor deles.

Apesar de tudo, um apoio foi organizado sob a forma de um questionário endereçado a alguns escritores e jornalistas, entre os quais se encontram Claude Cahun e Suzanne de Callias, únicas mulheres a engajar-se publicamente em favor de uma revista homossexual. Publicadas em 1925 na revista “L’Amitié”, as respostas não salvarão os dirigentes da revista da prisão, mas Claude Cahun assim se expressa sobre a questão:

“A revista “Inversions” ofendeu seus bons costumes?”A revista “Inversions” não ofendeu meus costumes, sejam eles quais forem, bons ou ruins — não é dizer o bastante? Que seja! Mas, acima de tudo, eu creio que ela não saberia ofender os costumes de ninguém, talvez colocada nas mãos de todos os adultos, sejam quais forem seu sexo e sua crença sexual. Minha opinião sobre a homossexualidade e os homossexuais é exatamente a mesma opinião que eu tenho sobre a heterossexualidade e os heterossexuais: tudo depende dos indivíduos e das circunstancias. Eu defendo a liberdade geral de costumes, de tudo aquilo que não causa danos à tranqüilidade, à liberdade, ao bem-estar do próximo. Pensava que também assim era — admirável na França — a Opinião da Lei — teria ela mudado?Infelizmente, com freqüência mulher muda… Pois é, frequentemente mulher muda de opinião…” ( L’Amitié, 1925 et Bonnet, 1998 )

Que estranho fecho, depois de um tão vigoroso apelo à “liberdade geral de costumes”! e que deixa escapar uma misoginia bem convencional. É preciso crer, como o afirma François Leperlier, que tudo desviava Claude Cahun da “reivindicação propriamente feminista. A incerteza sobre sua própria opção sexual (sua androginia), sobre sua identidade corporal (seu angelismo), a aversão à feminilidade comum (…), ela nunca estará senão ao seu próprio lado noutro lugar que não seja do seu próprio lado (Leperlier, 1992 : 55)”.

Fácil de dizer, mas que explica mal esta ocultação da homossexualidade feminina numa mulher que chama sua amante de “o outro eu”. Seria porque o lugar deste “outro eu”, não é simbolizado, o que a leva a ocupar o lugar de esposa apagada, do duplo emudecido e invisível de uma criadora que se basta a si própria? Isto a leva assim a se situar do lado da negação das mulheres e de si mesma, assim como de sua amante, segundo a lógica do “falar neutro”, que analisamos. “ O outro eu” não é o reflexo de mim, nem seu duplo. É um outro alguém.

Mas não é em se fotografando com o crânio raspado, ou travestida em homem que ela mostra seu desejo orientado para uma mulher. Salvo na suposição que todo casal mulher/homem é o arquétipo de toda união sexual. Claude Cahum destrói os clichês sem revelar a fonte escondida de seu desejo de denunciá-los.
Ela embaralha as identidades convencionais do sexo social, sem ir ao ponto de misturar os gêneros para fundar sua individualidade de mulher sobre uma identidade livre das identificações familiares, sociais e culturais.

“Eis que Pigmalião e Galatéia invertem-se um no outro — indefinem-se (Ibid. p. 37.) escreve François Leperlier para explicar seu desinteresse pelo feminismo. Talvez, mas referindo-se ao mito, o biógrafo não diz que Claude Cahun existe unicamente no plano da psiqué coletiva, do mito, de estereótipos, e que ela não é individualizada como sujeito falante. Daí o lado “incerto”, “indefinido”, deste quase-homem que vive com uma mulher num meio homofóbico. François Leperlier pode situá-la no lado da indiferenciação sexual, como se a indiferenciação fosse a desejada superação do feminismo. Ela não está menos do lado da negação das mulheres e de si mesma e de sua amante, segundo a lógica do falar neutro que nós analisamos.

O “outro eu” não é o reflexo do eu e nem o seu duplo. É algum outro. Mas é preciso acreditar que Claude Cahun fala a língua da persona de nossa época, pois as interpretações a seu respeito tornam-se muito contraditórias. Assim, Elisabeth Lebovici escreve exatamente o contrário do que diz Leperlier, afirmando que “o contexto de sua aparição é o de uma irrevogável sexuação de discursos quebrando sua universalidade”. Ela fala, em seguida, do

“potencial crítico da homossexualidade na lógica universalista que distribuiu, de antemão, os lugares e polaridades do desejo (e pressupõe que um homem dirige seu desejo a uma mulher e vice-versa) (E. Lebovici, 1995 : 12)]

É possível, então, indagar se esse trabalho fotográfico não mostra um profundo pânico identitário, cuja expressão revela-se nesta carta para Adrienne Monnier, escrita para pedir-lhe que prefaciasse Aveux non avenus e que o publicasse na sua pequena editora:

“Querida amiga,

Estou feliz por ter vencido minha falsa timidez, minha falsa modéstia, minha falsa discrição, essa frágil vitória: ter feito o esforço de entrar na sua casa, de sentar-me à sua frente, de falar-lhe, como podia… Sim, muito sem jeito e sem muita liberdade. Aliás, impulsionada por um interesse egoísta. Interesse, no entanto, creia-me, eu lhe peço, do que há de melhor em mim. Não critique meu espírito. Conceda-me a benevolência que tão generosamente havia-me dado, por ocasião de nossos primeiros encontros. Encoraje-me com sua paciência. Eu mudarei muito lentamente (eu sou muito lenta), mas eu creio na direção que, de acordo com a vida, você me indicou… Você encontrará em mim uma ambição talvez temerária, nunca fugaz. Você encontrará também (você deve ter visto… é tão evidente quanto minha origem judia, mas é humano, em suma) uma certa parte de ambição “realista” (…) “(Cahun, 1928).

Era 1928. Claude Cahun conhecia Adrienne Monnier havia dez anos! O livro será publicado por um outro editor com um prefácio de Francis Carco e não sabemos o que Adrienne Monnier lhe respondeu. Mas nós temos aqui um exemplo dessa dissolução do sujeito própria do falar neutro, que o encontro com André Breton, em 1933, pouco depois de sua adesão à Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, não irá melhorar.
De todos os surrealistas, Breton é, com efeito, o mais homofóbico. Assim, na reunião do grupo consagrado às “pesquisas sobre a sexualidade”, ele não hesitou em fazer calar seus amigos que discutiam a pederastia de forma apaixonada, proclamando a plenos pulmões:

“Eu acuso os pederastas de estarem propondo à tolerância humana um déficit mental e moral que tende a transformar-se em sistema e a paralisar todas as empresas que eu respeito, diz ele. Eu faço exceções, uma delas a favor de Sade e uma outra, mais surpreendente para mim, a favor de Lorrain (La Révolution surréaliste ,1928: 33).

Reabilitar Sade quando ele promove a “ditadura de paixões da libertinagem”, fazendo da mulher objeto do prazer do homem: que mau presságio para as mulheres libertárias do surrealismo. Além disso, essa posição é compartilhada por outros surrealistas, como o pintor André Masson na série de desenhos pomposamente intitulada “Lesbos”, que não é nada mais do que um comentário da visão sadiana das “tríbades”.

Vê-se, com efeito, um amálgama de corpos femininos imbricados uns aos outros e totalmente indiferenciados. Podemos admirar a fluidez do traço, mas não sua finalidade emancipadora. Esses corpos destinados ao consumo inscrevem-se no como herdeiros da mitologia heterossexual surrealista. Da mulher-criança à mulher-fatal, passando pela mulher-flor, a mulher indomada e as “mulheres condenadas à fogueira”, eles não hesitaram em utilizar largamente as imagens mais convencionais da feminilidade. Eis um movimento que defende o amor extravagante e que demonstra uma ignorância perturbadora em relação ao amor entre mulheres. Na sua famosa sessão de 1928 sobre a sexualidade, citada mais acima, lemos o seguinte diálogo entre os homens do grupo:

“PE (Benjamin Perret) — Queneau, como é que você imagina que seja o amor entre mulheres?
BR (André Breton) — O amor físico?
PE — Naturalmente.
Q. — Eu imagino que uma mulher faz o papel do homem e a outra, o da mulher, ou o 69.
PE — Você tem informações objetivas sobre esse assunto?
Q — Não. O que eu digo é livresco e imaginativo. Eu nunca entrevistei nenhuma lésbica.
PE — O que você acha da pederastia?
Q — Do ponto de vista moral?
PE — Que seja.
Q — Do instante em que dois homens se amam, eu não teria nenhuma objeção moral a fazer sobre a relação fisiológica deles”.

E aqui está uma questão claramente bem marcada. De acordo com as evidências, o Eros lésbico não participa da fantasmática erótica surrealista. O surrealismo é um movimento de homens a serviço do imaginário erótico do homem heterossexual e dificilmente se pode ver como Claude Cahun poderia sentir-se aceita na sua homossexualidade ou mesmo na sua identidade de artista, pois essa grande fotógrafa não foi sequer convidada a participar da Exposição Internacional do surrealismo, organizada em Londres em 1936, embora estivesse fisicamente presente, como se pode ver numa foto tirada naquela época. Mas nenhuma obra fotográfica, nenhum livro, nenhum de seus objetos surrealistas será exposto. Que humilhação para uma artista que defendeu enfaticamente as opções políticas do grupo (especialmente no caso Aragon) e cujo trabalho com Suzanne Malherbe, sobre os sonhos, as montagens fotográficas, as máscaras, prefigurava o trabalho dos surrealistas. É essa ocultação que as leva a deixar Paris em 1937, definitivamente, para exilar-se na Ilha de Jersey, onde permanecerão até a morte de Claude Cahun em 1954:

Claude Cahun aproveitou a ocasião da morte de sua mãe para partir? Tantas questões não elucidadas, às quais soma-se o saber se a recusa de Adrienne Monnier não as teria lançado no ativismo político e num movimento surrealista tão fechado às lésbicas. Parece que Adrienne Monnier estava situada num espaço identitário inacessível para Claude Cahun porque, se nós acreditarmos em Gisèle Freund, Adrienne Monnier “estava sempre pronta a apoiar a causa das mulheres”. Além disso, ela publicará, em 1936, na sua pequena editora, a tese de Gisèle Freund sobre a história da fotografia. Por que ela recusou o livro de Claude Cahun? Provavelmente porque seus “Aveux” não eram suficientemente “acidentais”. Escritos no masculino, expostos como um espelho quebrado, onde aflora uma misoginia e um ódio de si própria insuportáveis, esses textos dificilmente poderiam satisfazer seu gosto pela transparência e pela comunicação.

“Nunca deixar a sombra para a presa”, proclamava Claude Cahun em Aveux non avenus. Esta frase resume admiravelmente uma ética de vida que explica porque o trabalho desse casal literário e artístico não podia deixar rastros [1] Ele não demonstra justamente que o “falar neutro” é o melhor caminho para que uma presa seja devorada por predadores masculinos?

Referências

M.J.Bonnet, 1998"L’ancêtre de la presse gay”, Ex Aequo n°15, février
— 2000. Les Deux Amies, Essai sur le couple de femmes dans l’art, Ed. Blanche,

Claude Cahun, 1919.Vues et Visions, Ed. G.Crés et Cie,
— Lettre à Adrienne Monnier du 20 juin 1928, Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet.
— Aveux non avenus , 1930. Préface de Pierre Mac Orlan, Illustré de onze héliogravures composées par Moore d’après les projets de l’auteur, Ed. du Carrefour

Claude Cahun, 1995.Catalogue d’exposition, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, Ed. Paris Musées / Jeanmichelplace,

C.G.Jung, 1964.Dialectique du Moi et de l’inconscient, Gallimard, Folio essais,

François Leperlier, 1992. Claude Cahun, l’écart et la métamorphose, Jeanmichelplace,
F. Leperlier, 1994.“Claude Cahun, la gravité des apparences”, Le Rêve d’une ville, Nantes et le surréalisme, Ed. R.M.N. / Musée des Beaux Arts de Nantes et Bibliothèque,

Henri Neuvecelle, 1990, “Dans sa parole toute entière”, Cahiers jungiens de psychanalyse n°64, 1er trimestre p.32.

La Révolution surréaliste, 1928.n°11, 15 mars

Biografia

Marie-Jo Bonnet, historiadora, escritora, especialista em História Cultural, participou do Movimento de Liberação das mulheres e do surgimento do movimento homossexual em 1971. Ela publicou “As relações amorosas entre as mulheres do século XVI ao século XX”, Edições Odile Jacob, 1995 (reeditado em pocket em 2001), “As Duas Amigas, ensaio sobre o casal de mulheres na arte”, Ed. Blanche, 2000, e numerosos artigos na França e no exterior. Além de um “Guia de mulheres artistas nos museus da França”, iniciado em 1991 e concluído recentemente, seu último livro intitula-se “O que uma mulher deseja quando ela deseja uma mulher?”.

[1] Elas não aparecem nos dicionários e nas inúmeras obras sobre o surrealismo publicados antes da biografia de Leperlier, nem na notável obra de Whitney Chadwick, Les femmes dans le mouvement surréaliste, Chêne, 1986, e não se pode presumir se isso foi feito de forma pré-concebida. Suzanne Malherbe sobreviverá dezoito anos a Claude Cahun (morta em 1954), sem falar, aparentemente, de seus escritos e nem mostrar as fotos.

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