Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade

Rosi Braidotti. Tradução Roberta Barbosa. Revisão Marie-France Dépêche

Revista Labrys
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29 min readFeb 21, 2019

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Texto original

Resumo

Este artigo situa as re-interpretações feministas da subjetividade e identidade em relação com as discussões sobre globalização e novas relações de poder geopolíticas. Enfatiza as questões de mobilidade e desenraizamento e discute-as nas perspectivas política e filosófica , tendo como referência o pós-estruturalismo. De acordo com as políticas feministas de localização — apresentada não apenas como um quadro metodológico, mas igualmente como ponto de vista político — explora formas de responsabilidade e atuação política, requerida em uma era de fluidez, mudanças e transições. Argumentando sobre a relevância e a utilidade de uma visão não unificada do sujeito, intenta traçar uma cartografia política da subjetividade. Atenção especial é dada à tarefa da construção de uma definição feminista e anti-racista da identidade européia, no contexto do contestado espaço da União Européia.

Pós-modernidade

Existe quase um acordo geral do senso-comum entre as críticas culturais do tipo progressista (feministas, pós-colonialista, queer, e outros “outros”) e, para citar Apparadurai ( 1994):O mundo em que vivemos agora parece rizomático mesmo esquizofrênico, exigindo teorias de ser sem raiz, alienação e distância psicológica entre indivíduos e grupos, por um lado, e fantasias (ou pesadelos) de ubiquidade eletrônica, do outro. Isto é, um dos paradoxos de nossa condição histórica é a ocorrência simultânea de tendências contraditórias: por exemplo, por um lado a globalização dos processos econômicos e culturais , que engendra um crescente conformismo no consumo, estilos de vida e telecomunicações. Por outro lado, vemos também a fragmentação desses mesmos processos: o ressurgimento do regional, local, étnico, cultural e outras diferenças não apenas entre os blocos geopolíticos, mas também dentro deles.

A economia transnacional afeta nossa vida diária no Ocidente, em níveis macro e micro e produz contradições intermináveis. Assim, o fluxo de capital não retido pelas coerções territoriais tem transformado o ciberespaço em um espaço social altamente disputado, mais do que um lugar, ciberespaço é um conjunto de relações sociais mediadas por fluxos tecnológicos de informação. O dinheiro circula no ciberespaço e ocasionalmente se materializa como verdadeiras moedas e notas, tendo aparecido primeiro em uma tela de computador, como dados digitais. Assim, a pós-modernidade é intimamente relacionada com a eletrônica, a qual apresenta alguns aspectos problemáticos:

Em primeiro lugar, é desigualmente distribuída através do mundo, em termos de acesso e participação. Gênero e etnia são os maiores eixos da diferenciação negativa. Em segundo, a pós-modernidade tecnológica congela o tempo e desloca o sujeito, levando em conta relações interpessoais adiadas ou virtuais. Tem relação com hipermobilidade.(Braidotti, 1994:41–56) Isso também caminha para extensões protéticas de nossas funções corporais: secretárias eletrônicas multiplicando nossa memória e nossas habilidades auditivas; faxes; fornos de microondas; escovas de dentes elétricas; embriões congelados; gravadoras de vídeo e redes de telecomunicações, ampliando outras capacidades corporais.

Tudo isto significa o fim do continuum espaço-tempo da tradição humanista. Espalha nosso eu corporal, por vários locais descontínuos. O problema é: nós já vivemos dessa forma, mas nós não podemos representa-lo para nós mesmos, de maneira criativa. Esquizofrenia é a única imagem que podemos propor, que vejo como sinal da nossa pobreza imaginativa. Voltarei a esta questão. Seguindo o trabalho dos pensadores pós-colonialistas como Gavatri Spivak ( Spivak,1992:54),Stuart Hall, Paul Gilroy e outras/os, penso que — de uma perspectiva européia, um dos efeitos significantes da pós-modernidade é o fenômeno da transculturalidade, ou o advento de um contexto pluri-étnico ou multicultural. A migração mundial — um grande movimento populacional da periferia para o centro — tem desafiado a dita homogeneidade cultural das nações-Estado europeias. Este novo contexto histórico requer que nós façamos a transferência dos debates políticos das diferenças entre culturas para diferenças dentro da mesma cultura.

O movimento feminista é especialmente consciente desta necessidade. Spivak o declara claramente (Spivak,1992:54):

“A face do feminismo global é voltada para fora e deve ser bem-vinda e respeitada como tal, ao invés de fetichizada como a figura do outro”

Appadurai repete isso, e diz:

“Dessa forma, a característica central da cultura global , hoje é a política dos esforços mútuos da igualdade e da diferença, em canibalizar um ao outro e assim proclamar seus bem sucedidos sequestros das idéias gêmeas iluministas do universal triunfante e do particular resistente.” ( Appadurai,1994 :334)

Um dos paradoxos centrais da condição pós-moderna histórica é a base mutante na qual periferia e centro se contrapõem um ao o outro, de uma maneira perversa e complexa, desafiando as maneiras de pensar dualísticas ou contrárias, e requerendo , ao contrário, uma articulação mais sutil e dinâmica.

Por último e não menos importante, o dilema do pós-modernismo diz respeito à troca do poder geopolítico do Atlântico Norte em favor da borda do Pacífico, e, em especial o Sudeste Asiático. Cornel West o coloca de maneira sucinta, de uma perspectiva norte americana:

“O pós-modernismo é um conjunto de respostas devidas à descentralização européia — de viver num mundo que não mais se apóia na hegemonia e dominação européia nas dimensões política, econômica, militar e cultural , que se iniciaram em 1492.” ( West, 1994:25)

Apesar de um pouco menos otimista sobre isso, Spivak basicamente concorda, mas levanta a suspeita de que muitos discursos sobre a “crise” do humanismo ocidental e mais especificamente da filosofia pós-estruturalista, podem na verdade reafirmar algumas posturas universalizantes a pretexto das posições específicas, localizadas ou difusas sobre o assunto.

Minha posição sobre este assunto é um tanto quanto diferente. Acho que este deslocamento do poder geopolítico torna-se confirmado e teorizado na filosofia pós-estruturalista, em termos de declínio e do sistema logocêntrico, situado na Europa. Filósofos como Deleuze, Derrida, e Cacciari (Cacciari, 1994) têm apontado um fato interessante sobre esses deslocamentos de relações de poder geopolítico, e isto faz com que o discurso deles sobre o fim da hegemonia Ocidental Européia, seja radicalmente diferente do discurso nostálgico da Direita sobre o “declínio do Ocidente”, tão popular no fim deste último século, no trabalho de Otto Weininger(1904) e Oswald Spengler( 1920/22).

Eurocentrismo

Em uma perspectiva contemporânea, a linha mais radical da desconstrução do eurocentrismo de dentro da Europa, prossegue da seguinte maneira: o que faz com que a cultura filosófica ocidental seja tão perniciosamente eficaz e sedutora é que ela tem anunciado sua própria morte, por mais de cem anos. Desde a apocalíptica trindade da modernidade: Marx, Nietzsche e Freud (e Darwin), o Ocidente tem pensado na inevitabilidade histórica e a possibilidade lógica de seu próprio declínio. Tanto assim, que o estado de crise tem se tornado o modus vivendi dos filósofos ocidentais: nós nos comprazemos com isto, escrevemos interminavelmente sobre isso, e se a crise não existisse, provavelmente teríamos que inventá-la. Ninguém, fora os pensadores críticos, deveria, portanto, tomar a noção de crise do humanismo ocidental ingenuamente ou ao pé da letra: este estado de prolongada e auto-agonizante crise pode ser a forma “leve” que a pós-modernidade do Ocidente escolheu para se perpetuar. Novamente, Spivak aponta:

“ Dada a divisão internacional do trabalho em países imperialistas, é compreensível que a melhor crítica do universos ético-político-social europeus, deva vir do Atlântico Norte. Mas o que é ironicamente apropriado no pós-colonialismo é que a crítica encontra seu melhor palco fora do Atlântico Norte, no desfazer do imperialismo. ( Spivak, 1992:54)

Que o discurso pós-estruturalista sobre o declínio do eurocentrismo seja ao menos parcialmente subversivo, pode ser demonstrado apontando-se sua impopularidade nos círculos acadêmicos institucionalizados, apesar de que esta característica é menos evidente no sistema universitário americano, do que no europeu.

As carreiras relativamente sombrias dos líderes pós-estruturalistas, em seus próprios países natais, testemunham o fato de que as correntes principais de filosofia e ciência social na Europa vêem o pós-estruturalismo com grande suspeita. Butler e Scott ( 1992) sugeriram que isso pode ser relacionado ao fato de que esta filosofia evoca o medo da perda de maestria e uma espécie de despossessão cognitiva — por isso encontram recepções muito hostis.

Parece-me, portanto, que o desafio ao poder do discurso logocêntrico, a denúncia ao hábito etnocêntrico ocidental de colocar a Europa no centro do mundo, confinando os outros a uma enorme periferia, é fruto da reflexão pós-estruturalista. Posso afirmar-lhes, estas margens estão superlotadas..

A convergência entre o discurso da ‘crise’ do Ocidente, dentro do pós-estruturalismo e a desconstrução pós-colonial do embranquecimento imperial não é suficiente para uma aliança política, porém eu argumentaria que é uma condição necessária. Esta convergência dispõe as bases para a possibilidade de uma tal aliança.

Anthony Appiah (Appiah 1991:336–57) lembrou- nos a necessidade de não confundir o “pós” do pós-colonialismo com o “pós” do pós- modernismo, mas para, em troca, respeitar os lugares históricos específicos de cada um. E feministas estão em uma ótima posição para saber que a desconstrução do sexismo e do racismo não acarreta automaticamente sua ruína.

Entretanto, eu desejo enfatizar a concomitância dessas linhas de crítica e sua necessária interseção com a questão da subjetividade política e resistência em termos de identidade e diferença sexual.

Não se deve pensar nem por um minuto que estou gostando dessa proliferação de “pós-ismos” e eu tenho ido a grandes distâncias para evitar o fatal e mal-aconselhado “pós-feminismo”. Muitos têm criticado esse modo preposicional de pensar.

Mas acho que enfrentar essas demandas contraditórias é nossa responsabilidade histórica, porque europeus –como povo do Atlântico Norte, no começo do século 21 — somos historicamente condenados à nossa história, tanto quanto constituímos aqueles que vem após o declínio das promessas do Iluminismo. Não faz muita diferença a escolha de nomear nossa complicada condição de ‘pós-moderna’, ‘pós-humanista’, ou ‘neo-humanista’. O que importa, entretanto, é nossa consciência compartilhada de que devemos nos tornar responsáveis da história de nossa cultura, sem enterrar a cabeça na areia, porém, sem ceder ao relativismo. Relativismo não é uma opção, pois isso desgasta a possibilidade de coalizões políticas e debates intelectuais.

No caso específico da crítica ao etnocentrismo europeu, penso que a perspectiva pós-estruturalista feminista nos leva a discutir muito seriamente, por exemplo, as bases nas quais postulamos a identidade (européia). Identidade não é compreendida como algo fixo, essência dada por Deus — do tipo biológico, psíquico ou histórico. Pelo contrário, identidade é um processo: é construída nos mesmos gestos que a colocam como ponto de ancoradouro de certas práticas sociais e discursivas. Conseqüentemente, a questão não é mais essencialista: o que é a identidade nacional ou étnica?, mas ao invés, crítica e genealógica: como a identidade é construída? Por quem? Sob que condições? Para que fins? Como Stuart Hall sublinha: quem é autorizado a reivindicar uma identidade étnica ou nacional? Quem tem o direito de reivindicar este legado, de falar em favor de e torna-lo uma plataforma política? Essas são questões sobre prerrogativas, sujeitos grupais e subjetividade que rondam a questão da identidade cultural.

Em uma posição levemente provocativa , gostaria de prosseguir para o oeste e sustentar que consideramos a União Européia como a ilustração perfeita dos paradoxos da pós-modernidade, tal como os defini, entre os quais o menor não é a desconstrução da filosofia européia , que Lyotard chama de “narrativas-mestras” do Ocidente. Explico-me.

Acho que todos concordamos que a pretensão universalista da Europa, ligada a seu passado colonial — é baseada no poder e potência simbólica das nações-Estado. O nacionalismo na história européia caminha lado a lado com a missão auto-imposta pelos europeus de agirem como o centro. Hoje em dia, o processo da economia transnacional anuncia o declínio das nações-Estado, como princípio da organização política e econômica.

Ralph Dahrendorf , entre outros, tem analisado esse grande paradoxo dos nossos tempos: é o próprio capitalismo que acarreta a desintegração das economias, topologicamente baseadas. O declínio da nação-Estado também marca a crise histórica dos valores que representavam, principalmente a autoridade masculina fundada e personificada na família patriarcal, na heterossexualidade compulsória e na troca de mulheres — todos articulados do outro lado do cadinho da masculinidade imperial.

Este declínio tem gerado uma enorme onda de nostalgia que, como Frederic Jameson (Jameson, 1991) nos lembra, é uma das características-chave das políticas pós-modernas.

Falando como uma feminista anti-racista, entretanto, eu certamente não posso ficar de luto pelo declínio das nações-Estado e as formas de masculinidade e nacionalismo que elas sustentam. Pelo contrário, na verdade imagino a ideia das nações-Estado tornando-se uma espécie de museu da cultura popular e folclore: não teriam mais função em absoluto, exceto personificar o capital simbólico de um país, seus costumes e tradições históricas, linguísticas e literárias.

Enquanto a essência de seus mecanismos de tomar decisões estaria além de suas fronteiras nacionais; é perfeitamente claro que a chegada da divisa eletrônica e das estradas de informação aceleram o processo da desmaterialização na nação- Estado.

Neste contexto, o projeto da União Européia é a manifestação perfeita do declínio histórico das nações-Estado europeias e mais especificamente do vírus de um século do nacionalismo europeu.

Quando de Gaulle, Adenauer, de Gasperi e o governo americano colocam as bases para a União Européia, após a Segunda Guerra Mundial, na verdade não estavam somente tentando impedir o fascismo europeu de ocorrer novamente — e também estancar mais guerras civis intra-europeias (erroneamente chamadas guerras “mundiais”) — mas eles também estavam, obviamente, tentando reconstruir a economia, em oposição ao bloco soviético.

Na verdade a demora (quase 50 anos) em inserir as questões culturais e educacionais no programa da União Européia, ao lado das prioridades econômicas e militares, mostra o quão complexa e potencialmente divergente a cultura é, no amplo contexto de um projeto que visa finalmente o desfazer das nações-Estado europeias e o re-agrupamento das mesmas, em uma federação.

Isto afirmo lembrando que, no Continente, a oposição à União Européia é liderada, por um lado, pela Direita autoritária, especialmente Jean Marie Le Pen e seus companheiros; e por outro , pela nostálgica Esquerda, que parece sentir terrivelmente a falta das fundações topológicas para a solidariedade da classe trabalhadora. As tradições ‘internacionalistas’ da esquerda organizada não são de nenhuma assistência na época da economia transnacional. Falando como uma intelectual de Esquerda, devo dizer que esta é tão incapaz quanto outras forças políticas de reagir com energia e visão à evidência histórica que é a crescente irrelevância das práticas e pensamento euro-cêntricos para o mundo atual.

Sua tradicional empatia com o ‘terceiro mundo’ e especialmente com o socialismo do terceiro mundo, reproduz a relação centro/periferia e parece incapaz de subvertê-la. Em tal contexto, precisa-se de mais lucidez e um renovado senso de estratégia política. Os movimentos feminista, pacifista e anti-racista, podem ser grandes inspirações neste processo.

Além disso, tenho sustentado que, enquanto projeto, a União Européia está relacionada com a rejeição do falso etnocentrismo, que historicamente fez da Europa o lar do nacionalismo, colonialismo e fascismo. O projeto de unificação é relacionado à experiência des-inebriante de resguardar nosso lugar específico.

Daniel Cohn-Bendit, líder fundador do movimento estudantil de Maio de 68, em Paris, e agora membro do parlamento europeu, especialmente ativo no campo do anti-racismo, recentemente declarou que se quisermos realizar esta Europa unida, deveríamos partir da assunção que a Europa é o lugar em que vivemos e que devemos nos responsabilizar por ela (Cohen-Bendit, 1995:1–4).

Imaginar qualquer outra coisa seria repetição daquele voo para a abstração, pelo qual nossa cultura é in-famous ( trocadilho= famosa/infame n.t.): na melhor das hipóteses, podemos conseguir os benefícios do escapismo; no pior, a luxúria da culpa. Devemos começar por onde estamos.

Quero insistir neste ponto porque, dado o legado do colonialismo, é muito mais fácil para os europeus se debruçarem sobre as questões sociais relacionadas a lugares distantes, ao invés de encarar os problemas em seu próprio quintal. Nem a Esquerda política, nem os movimentos feministas são exceção: quanta energia e tempo não gastamos especulando sobre, por exemplo, a terrível situação das mulheres em outros países e culturas, como se o status quo na nossa prática diária fosse tão incrivelmente perfeito?

No entanto, mulheres “ de cor” como Chandra Mohanty (( Mohantym 1994:196–220) : advertiram-nos fortemente contra o hábito etnocêntrico, que consiste em construir a ‘mulher do Terceiro Mundo’, como um objeto de opressão que requer nosso apoio; Spivak também equacionou esta forma de ‘solidariedade’ com paternalismo benevolente, o que tem muito a ver com colonialismo. É contra este voo para a abstração que feministas têm proposto perspectivas situadas e aplicadas às políticas de localização: é hora de olharmos com frieza para nossa própria situação.

Meu olhar é, conseqüentemente, um apelo para a lucidez e para perspectivas ancoradas e personificadas. Precisamos de , ao mesmo tempo, de estratégias políticas e figurações imaginárias adequadas à nossa historicidade.

‘Fortaleza Europa’

Entretanto,isto é apenas um lado da moeda paradoxal da desconstrução européia. O outro lado, simultaneamente verdadeiro e ainda assim absolutamente contraditório, é o perigo de recriar um centro soberano, através da nova federação européia. Que ambas estejam neste caso faz da identidade européia uma das áreas mais contestadas de filosofia política e social no nosso mundo no momento.

A tendência reativa a um sentido soberano da União é também conhecida como a síndrome da ‘Fortaleza Europa’, que tem sido extensivamente criticada por feministas e anti-racistas como Helma Lutz, Nira Yuval-Davis, Avtar-Brah, Floya Anthias e Philomena Essed. Elas nos alertam sobre o perigo de recolocar o eurocentrismo inicial em um novo “europeísmo”, i.e. a crença em uma Europa etnicamente pura. A questão da pureza étnica é crucial e é, claro, o germe do euro-fascismo. Que isso resultaria na balcanização de toda a região deixa pouca dúvida, especialmente depois dos eventos na antiga Iugoslávia.

A ‘Fortaleza Europa’ é um problema, não apenas para os muitos que ficam trancados do lado de fora, mas também para aqueles que ficam trancados do lado de dentro. A celebrada “ circulação livre” dos povos dificilmente compreende as minorias étnicas que vivem na Europa. Como H. Lutz sublinhou:

“as fronteiras entre a Europa e o resto do mundo são constantemente fortificadas. Nunca antes a Europa se preocupou tanto com medidas justificadoras adotdas para impedir a entrada da ‘torrente estrangeira’. Desde que as medidas para excluir os ‘outros’ vão junto com a construção da condição cultural, religiosa ou ‘racial’ do outro, minorias raciais dentro da União Européia tem se tornado gradualmente os alvos desta ‘construção da alteridades’”.( Lutz, 1996:5)

A razão pela qual quero insistir nas contradições e paradoxos do caso europeu é para não apenas trazer a discussão sobre pós-modernidade/pós-colonialismo, mas também aproximá-la da Europa, ao invés de deixa-la, convenientemente enterrada, sob o programa cultural europeu.

Isto visa igualmente abordar a difícil porém crucial questão da correlação histórica entre a crise da pós-modernidade, exemplificada pelo declínio das nações-Estado europeias e a emergência das perspectivas situadas, que tem a ver com desconstrução crítica do ser branco (whiteness).

Anteriormente disse que para pessoas que não habitam a região européia, a ‘pós-condição’ é traduzida, concretamente, no fim do mito da homogeneidade cultural, que — como Michael Walzer (1992) sustentou — é o mito político fundador, na Europa, tanto quanto o multiculturalismo é o mito central nos Estados Unidos. É claro, a história européia, em qualquer ponto no tempo, fornece ampla evidência ao contrário: ondas de migrações vindas do Leste e do Sul fazem troça de qualquer reivindicação de homogeneidade étnica e cultural na Europa, enquanto a persistente presença de cidadãos judeus e muçulmanos desafia a identificação da Europa com a Cristandade. Apesar disso, o mito da homogeneidade cultural é crucial para a fábula do nacionalismo europeu.

Na nossa era, estes mitos estão sendo expostos e destruídos em questões relacionados à prerrogativas e ação grupal. Assim, a União Européia encontra-se em face com a questão: pode alguém ser europeu e negro ou muçulmano? O trabalho de Paul Gilroy sobre ser um sujeito britânico negro (Gilroy, 1987) é indicativo do problema da cidadania européia e a negritude emergindo como uma questão controvertida.

Mas –quero acrescentar — este é o caso também do ser branco. Uma das implicações radicais do projeto da União Européia é a possibilidade de dar um lugar específico, e conseqüentemente uma fixação histórica na memória — para os brancos. Isto pode, finalmente, tornar racial nosso lócus , o que alimenta a questão, pois até recentemente na Europa, apenas os pró-supremacia branca, nazi-skins e outros fascistas, cultivavam uma teoria sobre as qualidades, inerentes às pessoas brancas. E como todos os fascistas, são essencialistas biológicos e culturais.

Além disto, o ser branco era simplesmente, invisível, simplesmente não visto, pelo menos não pelos brancos. Localizados na pureza branco-lírio da nossa fantasia universalista, não localizada e desincorporada, na verdade pensávamos que não tínhamos cor. Então Toni Morrisson nos coloriu (Morrison, 1992).

Representação

Em sua análise da representação do ser branco (whiteness) como uma categoria étnica em filmes comerciais, Richard Dyer (1993:141–163) os define como “ um vazio, ausência, negação ou mesmo uma espécie de morte”. Sendo a norma, é invisível, como se naturalmente inevitável. A fonte do poder representacional do branco é a propensão para ser tudo e nada, ao passo que negro, é claro, é sempre apontada como uma cor.

O efeito desta invisibilidade estruturada e do processo da naturalização do ser branco é que ele se mascara como uma “falta de cor multicolorida”. O branco contém todas as outras cores. A conseqüência metodológica e política imediata disto é que o ser branco é muito difícil de ser analisado criticamente. Dyer afirma que: “o ser branco se desfaz nas suas mãos tão logo você começa”. Tende a sucumbir a subcategorias de ser branco: a irlandesa, a italiana, a judaica, etc. Segue-se, portanto, que não-brancos tem uma percepção muito mais clara do ser branco do que os brancos. Sublinho aqui o importante texto de bell hooks sobre o ser branco como terror e força engendrando a morte (hooks, 1995).

O reverso, entretanto, não se produz: negros e outras minorias étnicas não necessitam desta lógica especulativa para ter um lugar próprio. Como Deleuze argumentou, o centro está morto e vazio; não existem começos lá. A ação está nos portões das cidades, onde tribos nômades de poliglotas viajados estão descansando.

A experiência dos imigrantes brancos tende a confirmar a falta de substância do ser branco. Sendo a identidade cultural externa e retrospectiva, é definida para os europeus em confronto com outros — normalmente negros — povos. Esta foi a experiência dos imigrantes irlandeses, italianos e judeus em países como EUA, Canadá e Austrália. A “brancura” deles emergiu em oposição, como um fator que os distanciava dos nativos e negros.

Críticas feministas como Brodkin Saks analisaram este fenômeno ( Saks, 1994) , como o “processo de embranquecimento” pelo qual euro-imigrantes foram construídos como cidadãos nos EUA.

A extensão deste tipo de identidade “embranquecida” mostra seu caráter ilusório e racista, quando vemos o quanto estão divididas as comunidades imigrantes das diásporas europeias, antagonistas em seus respectivos guetos, fechadas em trancados em mútua suspeita. Mas todos são igualmente “embranquecidos” pelo olhar fixo do colonizador, empenhado em contrapô-los à população negra.

Frankenberg instiga os brancos a uma personificação radical e a uma responsabilização: vendo sua posição-de-sujeito (subject-position) como racializada, as pessoas brancas abrem espaço para trabalhar por formas anti-racistas de ser branco, ou pelo menos, por estratégias anti-racistas, a fim de re-trabalhar o ser branco. Gostaria de argumentar que isto é — como Cohn-Bendit sugere — um dos pontos-chave em jogo no projeto de integração européia e o mais suscetível de dar errado.

Minha própria estratégia, nesta consideração, é afirmar a identidade européia como um espaço de contradições históricas e enfatizar a necessidade política de desenvolver resistência crítica a identidades hegemônicas de toda espécie. Minha própria escolha de re-trabalhar o ser branco na era da pós-modernidade é primeiramente situá-lo, desnaturalizá-lo e personificá-lo e fixá-lo. Em segundo lugar, “nomadizá-la” ou desestabilizá-la para desfazer seu caráter hegemônico. Ser um sujeito nômade europeu significa estar em trânsito, mas suficientemente ancorado em uma posição histórica, para aceitar responsabilidade por isso. Esta definição do europeu transnacional é um tanto “sem-teto”, é um desenvolvimento distinto para reivindicar-se qualquer tipo específico de europeu (italiano, irlandês, etc). Mas então novamente, é uma pessoa branca ítalo-australiana, franco-alemã, pós-estruturalista falando.

A Política das Figurações

Um dos paradoxos da pós-modernidade e não o menor, é que sustenta o papel da imaginação como uma prática social e uma área fortemente disputada. Appadurai fala de uma busca constante pelo controle sobre o imaginário social contemporâneo. O ciberespaço é uma das zonas por onde esta batalha está explodindo atualmente. No feminismo, a luta pelo imaginário, particularmente sobre a re-nomeação e re-significação positiva, tem uma longa história. Em meu trabalho, analisei isto em termos de figurações.

Uma figuração não é mera metáfora, mas um mapa cognitivo politicamente informado que lê o presente em termos da situação fixa de alguém. Baseado na teoria de Adrienne Rich(1987) da “política de localização”, têm sido redefinido com o insight das noções pós-estruturalistas de discurso — para evoluir até a ideia de Donna Haraway(1990) de “conhecimentos situados” — como genealogias corporificadas ou responsabilidade encarnada.

O ponto é realmente muito simples, como o movimento feminista afirmou, muito antes de Deleuze filosofar a respeito: precisamos aprender a pensar de maneira diferente sobre nossa condição histórica; precisamos nos reinventar. Este projeto transformador começa com a renúncia aos hábitos de pensamento historicamente estabelecidos que, até agora, têm fornecido a visão “padrão” da subjetividade humana.

A renúncia a isto tudo seria uma posição mais confortável, em favor de uma visão descentralizada e multi-dimensionada do sujeito como entidade dinâmica e mutante, situada em um contexto, em transformação constante. O nômade expressa minhas próprias figurações de uma compreensão situada, culturalmente diferenciada do sujeito.

Este sujeito também pode ser descrito como pós-moderno/industrial/colonial, dependendo de seu lugar. Esses lugares diferem e essas diferenças têm importância. Enquanto eixos de diferenciação como classe, raça, etnia, gênero, idade, e outros interagem uns com os outros na constituição da subjetividade, a noção de nomadismo se refere à ocorrência simultânea de muitos deles de uma vez. Subjetividade nômade tem a ver com a simultaneidade de identidades complexas e multi-dimensionadas. Falar como uma feminista acarreta o reconhecimento da prioridade do gênero, em estruturar essas relações complexas.

O sujeito nômade é um mito, ou ficção política, que me permite pensar sobre e mover-me através de categorias estabelecidas e níveis de experiência. Implícita na escolha desta figuração é a crença na potência e relevância da imaginação, da construção de mitos como um meio de sair da crise política e intelectual destes tempos pós-modernos. Ficções políticas podem ser mais efetivas, aqui e agora, do que sistemas teóricos. A escolha de uma figura iconoclasta e mítica, tal como o sujeito nômade é, conseqüentemente, um passo contra a natureza estabelecida e convencional do pensamento teórico e especialmente filosófico. Re-conecta-se com Nietzsche e com uma contra-tradição, algo controversa, na filosofia ocidental.

Esta figuração, a meu ver, tem um apelo imaginativo, relacionado ao movimento transnacional que marca nossa situação histórica.

Em meu último livro fiz a distinção entre subjetividade nômade e duas outras figurações com as quais é freqüentemente — de modo desfavorável — comparada: primeiro o migrante, depois o exilado. O itinerário clássico do migrante é composto por lugares fixos: da “casa” para os países “anfitriões”, em uma série de deslocamentos consecutivos. Argumentei que o migrante — como figura das duras condições econômicas — tende a se apoiar nos valores “natais”, enquanto tenta se adaptar àqueles do ambiente anfitrião (um corte congelado de história).

O exilado, por outro lado, marca a separação radical de — e a impossibilidade de retorno ao — ponto de partida. Mais freqüentemente, mas devido a razões políticas, o exilado não conhece vindas periódicas, e idas e voltas de dois lugares comparativamente fixados.

O nômade por outro lado se posiciona pela renúncia e desconstrução de qualquer senso de identidade fixa. O nômade é semelhante ao que Focault chamou de contra-memória, é uma forma de resistir à assimilação ou homologação dentro de formas dominantes de representar a si próprio. As feministas — ou outros intelectuais críticos, como sujeitos nômades — são aquelas que tem uma consciência periférica; esqueceram de esquecer a injustiça e a pobreza simbólica: sua memória está ativada contra a corrente; elas desempenham uma rebelião de saberes subjugados. O estilo nômade tem a ver com transições e passagens ,sem destinos pré-determinados ou terras natais perdidas.

Assim, o nomadismo refere-se ao tipo de consciência crítica que resiste a se ajustar aos modos de pensamento e comportamento codificados. É a subversão do conjunto de convenções que define o estado nômade, não o ato literal de viajar. Mas outras figurações vêm-me à mente, e não apenas as clássicas, como ciganos e os judeus errantes.

Dentro das ethnoscapes (paisagens étnicas) da pós-modernidade estamos experimentando, no momento, uma proliferação de figurações alternativas da subjetividade pós-humanista. O/a trabalhador/a itinerante, o/a estrangeiro/a ilegal, o/a trabalhador/a do sexo que cruza a fronteira, e vários tipos de deslocamento, diásporas e hibridismos. Os cyborgs do dueto pós-moderno de Donna Haraway e Zigmunt Bauman: o turista e o vagabundo. Sem teto e sem raiz são significantes poderosos da nossa situação presente.

Mais uma vez, as teorias feministas são desbravadoras neste processo, tendo produzido ficções políticas poderosas para re-figurar a Mulher, não como ‘Outro do Mesmo’ — para citar Luce Irigaray — mas ao invés, como o outro em sua imensa diversidade.

A própria Irigaray( 1997) favorece as figurações que se referem à morfologia feminina, mas outras são as expressões das alternativas possíveis : Monique Wittig(1991) escolhe chamar o (pós-mulher) sujeito feminista — lesbiana — o que é ecoado por Judith Butler(1991), com a “ política paródica da mascarada”. Nancy Miller(1986) denomina ‘mulher’ — fêmea feminista, sujeito de outra história. De Lauretis (1990) a chama “sujeito excêntrico”; Trinh Minh Há (1989) “ o outro inapropriado”; Spivak(1995) “o sujeito pós-colonial”; Alice Walker (1984) “a “mulherista” (womanist); Gloria Anzaldua (1987) trabalhando a partir da área de NAFTA aponta-a como a “mestiza”.

Outras figurações têm sido propostas: de “companheira de transporte cotidiano”a “viajante em trânsito”. Chantal Mouffe ( 1994) fala de processos permanentes de hibridização e nomadização. Mas figurações históricas , ainda mais específicas, foram propostas: a noiva encomendada pelo correio, a prostituta ilegal, a vítima do estupro de guerra procurando por asilo político na União Européia e não conseguindo obtê-lo, pois o estupro não confere status de refugiado político; a doméstica das Filipinas que dorme no emprego, substituta da figura mais familiar da baby-sitter ou da jeune flle au-pair, às cyber feministas cross-dressing eletronicamente, enquanto surfam na internet. A lista está aberta.

Estas figurações estão todas materialmente fixadas e assim não são metafóricas. Helma Lutz(1995) analisa estas novas formas de deslocamento, em termos das “carreiras femininas de migração”.

Uma forma de definir as apostas políticas da luta pelo controle do imaginário social, na pós-modernidade, é, portanto, apontar a transfiguração geral que ocorre no horizonte de nossos ethnoscapes, sempre em câmbio.

Nesta estrutura, nomadismo — com ou sem Deleuze — vem abaixo do criticismo. Stuart Hall teme um modismo na utilização do termo que pode despersonificar os sujeitos nômades e ignorar seus lugares históricos específicos.

Kaplan e Grewal expressam grande resistência a metáforas de viagem de todo tipo, mas especialmente aquelas de deslocamento que tanto marcam a filosofia pós-estruturalista. Em seu ponto de vista esta é uma forma de orientalismo filosófico, uma forma de sentimentalizar o exótico. Estes autores são tão críticos em relação a isso, quanto eu o sou em relação às metáforas do feminino nas mesmas filosofias (Braidotti, 1991).

Zygmunt Bauman( 1993) rejeita as figurações nômades, por razões totalmente diferentes: elas não são radicais o suficiente. Os nômades sempre retornam e tendem a seguir rotas preestabelecidas, não rompendo, assim, suficientemente, com um senso de propósito teleológico defeituoso. James Clifford teme assimilações desmedidas do nomadismo pelos ‘pós-modernistas neo-primitivistas’ ocidentais — que iriam metaforiza-lo em um novo paradigma, de seus próprios lugares específicos. Defende, ao contrário, imagens de viagem, que são historicamente fixadas e conseqüentemente palpáveis. (agentes, fronteiras, guias, documentos, visto, etc).

Clifford igualmente apóia, como Bauman, a figuração do peregrino, apesar de suas insinuações teosóficas. Também concorda com Stuart Hall e Paul Gilroy na ênfase a formas de creolização, transculturalidade, diásporas e hibridismo. Enfatizando que todas essas posições sociais móveis do sujeito são o efeito da pós-modernidade transnacional, Clifford afirma que:

“No fim do século vinte, todas, ou a maioria das comunidades têm dimensões diaspóricas. Algumas, entretanto, são mais diaspóricas que outras.” (Clifford, 1994)

Concordo plenamente. E falando do lugar geopolítico e histórico específico que delineei na primeira parte deste trabalho, quero reafirmar meu argumento: figurações de subjetividade móveis, complexas e mutantes estão aqui para ficar. Falando como uma embranquecida anti-racista pós-estruturalista européia mulher feminista, eu apoio figurações de subjetividade nômade, para agir como uma desconstrução permanente do falologocentrismo eurocêntrico. Consciência nômade é o inimigo dentro desta lógica.

Como Nietzsche afirmou:

“Nós que somos sem-teto/sem-lar/sem-pátria — entre europeus hoje não há falta daqueles que são autorizados a chamar a si próprios sem-teto/sem-lar/sem-pátria, em um sentido característico e honroso. (…) Nós reprovamos todos os ideais que possam levar alguém a se sentir em casa, mesmo nesse frágil, despedaçado tempo de transição. (…) Nós mesmos que somos sem-teto/sem-lar/sem-pátria constituímos a força que quebra o gelo e todas as outras tão frágeis ‘realidades’”[i].

Este chamado está relacionado com e é situada em um diálogo de troca com outras formas de desenraizamento ou diásporas especificamente localizadas. Cria as bases de uma aliança com elas.

A poeta de Gana Abena Busia, citada por Gloria Wekker isto exprime através da diáspora africana, quando diz: “nós podemos ir a qualquer lugar, menos para casa”(Wekker,1994).

Isto é ecoado, de um lugar diferente dentro do Ocidente, por Caren Kaplan e Inderpal Grewal, que nos convidam a abandonar o lar, porque o lar é freqüentemente local do sexismo e racismo — um local que nós precisamos re-trabalhar politicamente, construtivamente, e coletivamente. Ao que eu acrescentaria, com Deleuze e outros: identidades fixas devem ser abandonados, como o local sedentário, que produz paixões reativas tais como ganância, paranoia, ciúme edipiano e outras formas de constipação simbólica.

Isto é bastante diferente da marca elitista do cosmopolitanismo, que hoje em dia, é apoiado por Martha Nussbaum (1995) e anteriormente foi defendido por Virginia Woolf em sua famosa declaração:

“Como mulher eu não tenho pátria — como mulher minha pátria é o mundo inteiro.”

Embora eu resista à característica universalista desta declaração, ciente de que a maior parte das mulheres no mundo não escolhem sua pátria mas antes, tem suas origens nacionais tatuadas ou ferozmente marcadas em seus corpos — acredito que na era dos movimentos transnacionais e “cidadania flexível”, a realidade se aproxima de uma observação de Aihwa Ong, citada por Clifford:

“Posso morar em qualquer lugar do mundo, contanto que seja próximo a um aeroporto.” (Clifford, 1994:312)

Essa é uma declaração nômade sobre viajem, mas é relacionada a falta de pátria/lar. Para compreende-la devemos confiar na engenhosidade dos sujeitos nômades e em suas formas específicas de incorporação e ancoragem.

“Cerca de doze pessoas vivem agora permanentemente no Aeroporto Kennedy, acomodando-se à noite nos cavernosos terminais internacionais que nunca fecham, se desvencilhando da bagagem como passageiros cansados, em cadeiras modulares ou no chão. Como grupo, eles são diferentes dos sem-teto, que dormem nas ruas ou nos metrôs. Eles são, na verdade, invisíveis, trabalhando a cada dia para se misturar com o tráfego humano. Eles não parecem sujos ou agressivos, e raramente esmolam. Muitos são doentes mentais, mas não são ameaça para si próprios ou para os outros. Alguns são instruídos. Eles preferem as condições do aeroporto aquecido, com ar condicionado, relativamente sem crimes, às da rua. O problema de sem-tetos nos aeroportos não é exclusivo de Nova York.(…) Em Chicago, a cidade abriu um albergue de 80 camas, quatro anos atrás para tirar os sem-teto do aeroporto O´Hare, pois as coisas haviam caminhado longe demais: alguns trouxeram plantas para decorar seus cantos.” ( N.Y. Times,1995:1)

Espaços de transição requerem negociações constantes. Apesar da sala de espera familiar da estação da ferrovia local ter sido substituída como lar nômade por lustrosas salas de estar de aeroportos, é forte da mesma maneira a necessidade de decora-las, com suas próprias plantas ou desenhos. Em tempos de crescente segurança eletrônica, de alta tecnologia em todos os espaços públicos, os aeroportos podem ser mais receptivos aos sem-teto, do que as ferrovias ou estações do subúrbio. Em parte porque, por mais que seja paradoxal, aeroportos podem funcionar em um ritmo mais lento do que a média de estações de trem de viagem diária.

Em uma exibição de imenso talento mimético, os sem-teto, que vivem em aeroportos, se disfarçam pelo que são: indivíduos carregando bagagens, se misturando com o tráfego humano. Onde eles diferem dos passageiros com tíquetes é em não Ter a mais remota intenção — nem meios financeiros — de partir dos locais do aeroporto, que eles habitam como seu lar. Em uma espécie de “mise-en-abyme” da situação de viagem, eles enfatizam a importância do lugar, para determinar que sentido, se algum existe, pode ser dado à noção de mobilidade. Sem-teto, são nômades que não viajam. Como diz bell hooks (e eu aqui respondo a James Clifford):

“Viagem’ não é uma palavra que possa ser facilmente evocada para se falar da Passagem do Meio, da Trilha das Lágrimas, da chegada dos imigrantes chineses, da mudança forçada dos nipo-americanos, ou da situação difícil dos sem-teto. Teorizar essas diversas jornadas é crucial para nossa compreensão de qualquer política de localização.” (hooks,1995:43)

Localizações são histórias personificadas e fixadas, cuja diversidade pode ser conhecida e deve ser respeitada. A consciência nômade, que advoguei se erige pela desconstrução da ideia falogocêntrica e eurocêntrica de uma consciência triunfante, cuja tarefa supõe-se ser a supervisão da ação humana, em todos os seus aspectos.

Os olhos insones da Razão, vigiando seus domínios, são uma boa figura dessa visão obsessiva da subjetividade. Outra imagem clássica é a da Bíblica Árvore do Conhecimento, que supostamente compreende todas as possíveis ramificações. Contra essa fixidez e pretensão universal, que relacionei à auto-reflexão e colonialismo europeus, apóio, ao contrário, a visão da subjetividade embranquecida como mutante, parcial, personificada e conseqüentemente reconhecida.

Ela define o sujeito como um aparato complexo, dotado de memória e capaz de funcionar em meio a estruturas coletivamente negociadas. Jogando esta imagem contra a visão sedentária e monolítica da subjetividade clássica no Ocidente, segui o chamado da desconstrução, do ponto de vista hegemônico, em termos de nomadismo. Não há nada mais a se fazer com a visão clássica do sujeito a não ser desfaze-la.

A/O nômade é literalmente um/a viajante “do espaço”, sucessivamente construindo e demolindo sua morada, antes de seguir em frente. Ela/ele funciona dentro de um padrão de repetições que não é desordenado, apesar de não ter destino final. O oposto do turista, a antítese do migrante, o viajante nômade é unicamente empenhado no ato de ir, de atravessar.

Nomadismo é uma forma de intransitividade nascente: marca um conjunto de transformações, sem produto final. Sujeitos nômades criam mapas politicamente informados para sua própria sobrevivência. Viajantes nômades são gênios da oralidade, confiando na memória e conhecendo os lugares de cor. Portanto, a ideia de “visitar”, não no sentido burguês, mas como uma tentativa de compartilhar o mesmo local fixo. Esse tipo de “visita’ é o oposto do modo consumista da apreensão de “outro”, na posição-sujeito de turista. A “visita” é uma troca que pede ambos: reconhecimento e cuidado.

O nomadismo feminista marca o itinerário político específico das mulheres feministas que apoiam multiplicidade, complexidade, anti-essencialismo , anti-racismo e coalizões ecológicas. Feministas nômades visam desfazer as estruturas de poder, que sustentam as oposições dialéticas dos sexos, enquanto respeitam a diversidade das mulheres e a multiplicidade dentro de cada mulher.

Como imaginário social e expressão da estética contemporânea, tanto quanto sensibilidade política, o nomadismo é explosivo entre as riot girls, as bad girls, as guerilla girls da era pós-feminista. A estratégia política delas é brincalhona, em repetição mimética.

A infinita capacidade de Kathy Acker de se transformar em outro, artistas visuais, ocupando o espaço público, como ruas ou praças com posições oriundas da experiência da dominação e intimidação vivida pelas mulheres . Artistas nômades como Catherine Richards e Cindy Sherman exploram sua carne real e virtual, através de trabalhos de arte, que desvinculam a experiência carnal das mulheres do regime visual masculino. Elas cortam sua própria carne, como Orlan, mas também cortam além de sua carne — como Kruger e Holzer. Fazem experimentos acústicos com seu sistema de som corporal: voz, ressonância, grito, musculatura. Feministas nômades viajam pela Internet em identidades feitas de dados digitais , ainda que generizadas.

Elas nunca cessam de expor e explodir o racismo, o masculinismo, a violência masculina, e a monotonia destruidora de almas do patriarcado, sem fazer concessões, nem para crenças essencialistas na superioridade das mulheres, nem na possível homologação, dentro do suposto fluxo de identidades pós-moderno que impõem o gênero. Elas tentam combinar complexidade com compromisso ao projeto de empoderamento das diferenças que o feminismo pode fazer.

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[i] Citado em Paul Gilroy The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness, Verso, London, 1993.

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