Feminismo como pensamento da diferença

Valeska Wallerstein

Revista Labrys
Revista Labrys
19 min readJul 26, 2019

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Texto original

Resumo:

Pensando com o feminismo, a diferença deve aparecer necessariamente. Entretanto, o feminismo não aparece como uma prática ou como uma forma de pensamento derivados do pós-modernismo, pós-estruturalismo e de nenhum outro movimento do pensamento contemporâneo — que se arrogam o status de pensamento da diferença. Mesmo sem uma dívida de gratidão, muitas das questões que o feminismo tratou antes da grande eclosão dos discursos pós-modernos aparecem como solo comum. Neste sentido, o feminismo, como modo de pensamento, é uma espécie de movimento de vanguarda.

Palavras-chave: feminismos, pensamento da diferença, pós-estruturalismo, vanguarda.

Como quem inicia…

Feminismo é uma palavra no plural. Algumas pessoas falam em feminismos, gosto disto. Por outro lado, defendo que seja da dinâmica do feminismo essa pluralidade de perspectivas, posicionamentos, práticas e posturas que o dissemina, multiplica, pluraliza, diferencia. Uso aqui a palavra “diferencia” pra indicar que o feminismo comporta, acolhe, hospeda dentro de si a diferença, isto é, articula a diferença de um modo positivo. Meu lugar de fala hoje é a filosofia, em função disto, vou tentar articular de que modo o feminismo aparece como um pensamento da diferença.

Talvez uma coisa interessante a se fazer seja uma história da diferença. A diferença vem sendo vista de diversos modos na história ocidental. Certamente, ao chegarmos ao modo como a diferença é vista hoje, não poderia faltar, nesta história da diferença, o feminismo.

Gostaria de usar uma noção específica de diferença, vem de uma das vertentes do assim chamado pós-modernismo (enquanto movimento do pensamento, já que ele não é só presente na teoria social), o pós-estruturalismo. Este é já um solo múltiplo, diferenciado e cheio de encontros e desencontros de singularidades. Gostaria de usar a diferença no sentido de sem igual, isto é, uma diferença singular, uma diferença sem matriz reguladora, uma diferença que não necessite de uma referência. Não é uma diferença de. É uma diferença intransitiva. Várias/os autoras/es como Rosi Braidotti, Judith Butler, Julia Kristeva, Joan Scott, Gayatri Spivak, Gilles Deleuze, Michel Foucault, entre outras/os vem buscando articular um tipo de pensamento que tente não mais entrar nas velhas querelas que tentam hierarquizar a diferença em relação a uma identidade.

Nem todo o feminismo é “pós”. Como eu já disse, ele é plural. Várias tendências e posições estão ligadas a movimentos políticos que tentam resgatar a imagem das mulheres do esquecimento. Numa trilha de buscar as mulheres da profundeza do apagamento, é necessário, para estes grupos, batalharem por uma identidade da diferente, uma identidade que dê visibilidade para as mulheres, que na modernidade foram simplesmente esquecidas. Neste sentido, esses movimentos identitários no feminismo aparecem num combate a uma política do esquecimento do feminino.

Heidegger afirma que o ser foi esquecido pela metafísica ocidental e que isso não tenha sido problematizado pela filosofia é um escândalo; mas talvez o grande esquecimento da modernidade tenha sido o das mulheres. E isso talvez seja o mais cruel dos escândalos para a filosofia e para a cultura de um modo geral. Por isso, eu não gostaria de me posicionar contra a as posturas identitárias que atravessem o feminismo, nem desferir contra elas nenhuma crítica, pois dentro de um contexto histórico, o valor delas é inquestionavelmente grandioso.

Gostaria, nestas poucas linhas, de mostrar que o feminismo aparece como uma das principais vertentes disto que chamarei de pensamento da diferença, sem que por isso ele seja um derivado, uma consequência do pós-modernismo. Para isto passarei por alguns pontos que tocam a ambos, pensando o feminismo como contribuição para uma crítica de nosso tempo, como uma flecha no coração do presente, como uma luta, uma narrativa que tenta responder a pergunta nietzscheana “como nos tornamos o que somos?”.

O feminismo é filho do pós-modernismo?

Essas imagens maternais são sempre castradoras. Ser filha/o, significa colocar em jogo a mãe. Fiquemos sem mães e filhas/os por enquanto (penso que a paternidade conceitual — como neste caso, é um furto da ideia da maternidade…). As discussões sobre pós-modernismo e feminismo são antigas. Já grandes clássicos foram escritos sobre isto. Não quero aqui resumir, reler, repassar ou fazer qualquer coisa do tipo com relação a estas discussões. Quero apenas levantar uma defesa do feminismo em relação a uma “acusação” um tanto comum (de que o feminismo seria o filho mais importante do pós-modernismo).[1]

É sempre difícil entrar nos terrenos pós-modernos. Até porque uma característica desses solos é serem nômades, desterritorializados. O espaço pós-moderno é móvel, e essa mobilidade às vezes se torna areia movediça. O pós-moderno engole tudo o que passa por seu campo-móvel. Regurgita, revê, inverte, re-joga para o social. Embora pensadores como Habermas tentem dizer que Nietzsche é o pai da pós-modernidade, acho que o pai (que também é já morto!) é um pouco mais jovem: Jean-François Lyotard. Quando evocava o termo “pós-moderno” para pensar uma condição que as pessoas viveriam no presente, Lyotard tinha algumas coisas em mente: a descrença nas metanarrativas, descrença e deslegitimação das fontes tradicionais que têm autoridade com relação ao conhecimento (como a ciência e o Estado, por exemplo), descrença em significados universalizantes, crença em uma crise da representação, que coloca em questão a diferença entre o real e o simulacro; fragmentação e descentramento das identidades sociais, culturais e individuais. Claro que Lyotard não criou a pós-modernidade, ele apenas forjou o termo, para mapear um movimento do presente.

Porém, uma dessas vertentes (que já que não acredita em significados universalizantes, não tem como acreditar em continuidades, linearidades, e coisas afins), pós-estruturalismo aparece enfatizando a questão das práticas discursivas. Dessa forma, criar um termo não é apenas criar uma palavra, mas introduzir um elemento no que se costuma chamar de real. Se Lyotard não cria a pós-modernidade, ele cria um certo tipo de condição pós-moderna, ao cunhar este termo.

Entretanto, tudo isso é muito recente. A década de 1970 é o auge da explosão dos discursos que originariam a discussão sobre a pós-modernidade. Enquanto todo esse movimento acontece de uma forma desorganizada e fragmentária — como não poderia deixar de ser um início pós-moderno — os movimentos feministas já vinham se organizando há muito tempo. Eu poderia ousar dizer que todas essas coisas que Lyotard tinha em mente ao escrever sua La condition post-moderne eram já alvo de preocupações de feministas que por muitos motivos (sobretudo políticos) não se agregariam à pós-modernidade.

Gostaria de pontuar com alguns exemplos que mostram que as feministas, das mais variadas tendências já se preocupavam com essas questões antes da discussão iniciada por Lyotard.

- A descrença nas metanarrativas. Uma metanarrativa é um tipo de explicação ou um sistema teórico que pretenda dar explicações ou descrições completas, abrangentes ou totalizantes do mundo. Autoras como Germaine Greer (1971), Kate Millet (1969), Robin Morgan (1984) e Carole Pateman (1993), em suas leituras críticas do patriarcado, têm atenção para não transformar este patriarcado criticado em uma estrutura naturalizada. Elas descrevem o patriarcado como uma estrutura forjada atendendo a alguns interesses; e que as sociedades nem sempre funcionaram assim.

Se por um lado o patriarcado, enquanto categoria de análise, aparece como uma tentativa de explicação que abranja um certo recorte das relações sociais, ele está longe de ser uma explicação totalizante do mundo ou mesmo universalizante. Vale lembrar que o livro de Greer, A mulher eunuco é de 1969/1970, que o livro de Millet, Política Sexual é do final da década de 1960, e que os livros de Morgan e Pateman não são do tipo que possamos chamar de pós-modernos, nem no estilo e nem em conteúdo, embora sejam mais recentes.

- Descrença e deslegitimação das fontes tradicionais que têm autoridade com relação ao conhecimento. Uma olhada rápida no primeiro volume de O segundo sexo nos mostra como esta postura descrente já era forte em Simone de Beauvoir (1980a). Suas discussões com a biologia, psicanálise, com o então fortemente aceito materialismo histórico desde um ponto de vista não-sacralizador evidenciam uma relação tensa entre o pensamento beauvoireano e a autoridade da ciência. Mesmo na parte tensa, denominada História, onde a autora mantém uma postura ora conservadora, ora ultra-inovadora, aponta para essa visão desconfiada com relação à ciência. E essa desconfiança já antecipa, de algum modo, uma tese cara para Michel Foucault — décadas mais tarde — de que poder e conhecimento estão intimamente imbricados em uma rede multifacetada.

- Descrença em significados universalizantes. Uma teoria tem sempre preensões de universalidade, mesmo quando seus objetos são singulares. As feministas descobriram o quanto isso é nocivo não desde o ponto de vista teórico apenas, mas também desde a perspectiva da militância. Judith Butler e Joan Scott afirmam que a teoria é um termo altamente contestado no interior do discurso feminista (Butler;Scott: 1992, xiii). Nos Estados Unidos, principalmente, mas também na França, Ásia, América Latina e África as mulheres perceberam que um movimento de mulheres como o feminismo estava apenas afirmando como “a mulher” um determinado segmento social.

Pensar as questões raciais, sociais e étnicas, tornou-se um eixo de importância fundamental para o feminismo. Ser mulher não significa a mesma coisa para uma latina, para uma africana e para uma norte-americana de classe média (cf. Davis: 1981). A afirmação “queremos o direito de trabalhar e nos sustentar”, comum entre as últimas, é praticamente sem sentido para uma latino-americana de classe pobre ou africana, por exemplo. Não há, portanto, uma teoria feminista que acolha tudo o que pode ser dito sobre a mulher ou as mulheres, e nenhum enunciado do discurso feminista tem a pretensão validade universal.

- Crença em uma crise da representação, que coloca em questão a diferença entre o real e o simulacro. A questão da representação nos remete diretamente ao duplo essência-aparência, onde a essência é o representado. Novamente de Beauvoir entra em cena. O início do primeiro volume de O segundo sexo é uma pergunta: “O que é uma mulher?” Por que se perguntar por algo que parece evidente? Por que se perguntar por algo que as ciências já decidiram o que é, que já tem toda uma fisiologia, uma psicologia e uma ginecologia? Ao interrogar o que é uma mulher, ela descobre que a mulher não tem essência. Isso para a autora tem dois motivos: o primeiro é que a mulher foi tida como “o outro” do homem, isto é, definida em função deste; o segundo, é que ninguém nasce uma mulher (De Beauvoir: 1980a).

Ser uma mulher é um processo de devir [E aqui notamos aquilo que Deleuze e Guattari chamariam de devir mulher, mais de trinta anos depois (conf Deleuze; Guattari: 1980)]. Depois desta segunda constatação, que motivaria a ausência de essência na mulher, de Beauvoir então passa a olhar algumas representações da mulher, desde um ponto de vista fenomenológico, no segundo volume do Segundo Sexo: a menina, a moça, a lésbica, a mulher casada, a mãe, a prostituta e a amante, a idosa, e por fim a mulher independente: representações de que? Representações de um devir, de um movimento, de um processo e não de uma essência (De Beauvoir: 1980b).

- Fragmentação e descentramento das identidades sociais, culturais e individuais. Talvez este seja o ponto que mais aproxima os discursos feministas aos discursos pós-modernos. Com as discussões entre as feministas e a psicanálise, acontece então a primeira grande cisão de identidades. Juliet Mitchel (1975), Simone de Beauvoir (1980a), Shulamith Firestone (1976), Gayle Rubin (1975), entre outras, saem na vanguarda desta discussão. Se, por um lado, a psicanálise naturaliza estruturas constituídas culturalmente na história, por outro lado, ela racha o sujeito.

Não há mais um sujeito único, fundante que é idêntico a ele mesmo. A subjetividade é esfacelada. A identidade da mulher se esvai pelo vento como a essência feminina (ligada à passividade, fragilidade, maternidade e outros “…ade” que tanta opressão trouxeram às mulheres). Como a passagem da mulher pelo Édipo é já sempre problemática, a subjetividade dela será sempre marcada por uma busca irrefreada daquilo que ela é ciente de não ter (enquanto o homem também não tem, mas tem a ilusão de possuir): o falo/poder. Críticas marxistas, existencialistas e pós-estruturalistas no interior dos discursos feministas, deram outros rumos a esta discussão, mas como saldo de tudo isto, sobrou um sujeito fragmentado, um sujeito historicizado, um sujeito que anseia por ser nômade (quando já não o é!).

Passados esses pontos, podemos ver que não há motivos para afirmar que o feminismo deve sua existência ao pós-modernismo. Há, entre os dois, uma relação de amizade e problematização mútuas. Seguramente, poderíamos afirmar que o pós-estruturalismo, e o pós-modernismo em geral, devem muito ao feminismo. Muito das quebras de evidências, certezas, do abalo à verdade estabelecida como eterna, a-histórica e imutável se deve ao esforço incansável de mulheres que buscavam outros espaços para si mesmas na sociedade.

A diferença?

Uma das marcas fortes deste ambiente pós-moderno e pós-estruturalista é a discussão em torno da diferença. As ciências, lidam com aquilo que elas julgam como regular, constante, universal, previsível, dito de outra forma, com aquilo que aparece como sendo sempre o mesmo. Com a queda da legitimidade da autoridade da ciência sobre a vida, este mesmo vai deixando de ser o cenário mais importante. Em oposição a esse mesmo,surge não um outro, que ainda tem um mesmo como referente, mas um singular diferente.

E o feminismo, aparece neste cenário, como um dos baluartes desta diferença, deste diferente. Já não temos mais um feminismo que luta só pelas mulheres, mas de um feminismo que lute pela diferença. E não uma diferença que seja hierarquizada. A hierarquia entre o diferente e o mesmo acontece apenas se estabelecermos algum parâmetro pelo qual compararmos os dois. Não há a oposição entre o diferente e o mesmo, mas o encontro de diversos diferentes. Voltando a estes pontos que percorri para desmentir a filiação do feminismo ao pós-modernismo, podemos ver que o feminismo aparece como um dos grandes discursos em prol da diferença, mesmo quando ele não aparece como um feminismo pós-moderno (como é o caso das feministas marxistas ou das feministas liberais americanas).

Um dos grandes panos de fundo da discussão no feminismo é a crítica ao binarismo instaurado pelo patriarcado que divide o mundo em dois: um dominador — o masculino, e um dominado — o feminino. A crítica a este binário que é fundante na história ocidental, vai originar um efeito dominó em outros binarismos totalitários na história ocidental (como natureza/cultura; verdadeiro/falso; razão/sensibilidade, etc.). Carol Gilligan (1982), por exemplo, vai apontar que, desde o ponto de vista psicológico de homens e mulheres, este binário é construído na educação de homens e mulheres; e não um aparecimento de uma estrutura psicológica originária.

Esta desconstrução de estruturas binárias que atravessam o pensamento ocidental abala as estruturas do conhecimento fundadas sobre binários. Talvez possamos dizer que como o feminismo, comece a existir uma epistemologia da diferença. É preciso ter cuidado ao falar de uma epistemologia da diferença para que não estejamos reificando a diferença para torná-la conhecível. Pelo contrário, o que as epistemologias de influência feministas tentam fazer é mostrar que conhecer o mundo não implica em reduzi-lo a um conjunto mínimo (que acaba sendo relacionado a um binário fundado no duplo “verdadeiro-falso”) de proposições. A epistemologia feminista tem mostrado, com os belos estudos de Sandra Harding (1986), Carol Gilligan (1982), Donna Haraway (1986), entre outras, que o mundo humano, sendo em grande parte construído pelos próprios homens e mulheres, é multifacetado, plural, múltiplo. Não há sentido em uma teoria do conhecimento que tente reduzir o mundo a um conjunto mínimo de categorias para compreendê-lo, muito menos escolher o mesmo como referencial de conhecimento.

Também não é o caso conhecer o mundo pelo viés da redução a uma diferença já viciada no mesmo. Segundo as epistemologias feministas, conhecer o mundo é pluralizá-lo, perceber as diferenças como amálgamas, sem tentar reduzi-as a algum referencial. Conhecer o mundo é emergir nas diferentes diferenças e a partir delas perceber o mundo não mais como unidade de sentido, mas como produzido por múltiplas matrizes de entendimento. Conhecer, desde este ponto de vista, não é mais encontrar a representação adequada, mas multiplicar olhares.

E essa multiplicação de olhares é politizada. Não há conhecimento desinteressado. Todo conhecimento é uma investida política no mundo. E enquanto atitude política, não se pode aceitar qualquer coisa. Não há um relativismo absoluto nas epistemologias feministas, justamente em função de sua postura política. A epistemologia politizada, que aparece com o feminismo, vai combater as formas de opressão que surgem de um certo tipo de ciência que usa o conhecimento como arma de controle. O conhecimento deve evitar a violência, e não fomentá-la. Não basta combater a opressão as mulheres, mas todo tipo de opressão que se funde em algum tipo de hierarquização entre diferenças. Toda hierarquização é uma relação de forças, que não se justifica por si só, mas que tem suas razões de ser vindas de uma vontade de dominar que algumas pessoas possuem. Se pudermos pensar um humanitarismo desligado de um ideal masculino, o feminismo é um movimento humanitário, multiplamente constituído.

Visto como pensamento da diferença, o feminismo aparece como um grande revisor da história. As relações entre feminismo e história são ricas, múltiplas e cheias de caminhos. O feminismo tem mostrado como a história, seguindo alguns interesses, apagou a mulher de suas páginas, fazendo que ela aparecesse apenas como um outro do homem. Imagens onde a mulher aparece “produtivamente” são simplesmente esquecidas. Mas uma das coisas que o feminismo nos mostra é que a história não é o destino, assim como o corpo também não o é.

Afirmar que a história não é o destino quer dizer aqui que ela não segue nenhum caminho necessário. A história é construída. E como qualquer construção, ela é contingente, pode ser de outra forma. Pode ser desfeita, re-feita, re-construída de outros modos. O social que é o material da história não é sagrado. Não precisamos ter por ele nenhum tipo de reverência que nos impeça de tentar modificá-lo.

Uma das grandes conseqüências do pós-modernismo é uma certa apatia política, que surge justamente em função dessa relativização da verdade e de olhares sobre o mundo. Se não há critérios, se não há garantias, se não há certezas, só o que podemos fazer é mudar de agenciamento para agenciamento, sem poder dizer se há agenciamentos melhores. Isso vem gerando um certo conformismo político em pensadores como Jacques Derrida. Entretanto, para o feminismo esse problema não é acentuado. Há um ponto político inicial que é inegociável: a opressão contra as mulheres (e outros “diferentes”) deve ser combatida. Isso não é uma verdade, mas um postulado político, um ponto de partida de uma ação, um pressuposto que é originado da experiência de sofrimento, dor e morte que as mulheres vem sofrendo na história ocidental. Não há como relativizar este ponto de partida ou dizer que em alguns casos a opressão contra as mulheres possa ser interessante.

Uma postura política afirma pontos e o pensamento pós-moderno apresenta alguns problemas com relação a isto. Mas nem por isso o feminismo deixa de ser autocrítico. Não querer revisar o principio de combate à opressão às mulheres não quer dizer que as formas como isso veio sendo feito não seja objeto de crítica pelas próprias feministas. Aquilo que ficou conhecido como segunda onda do feminismo é um exemplo disto. Neste sentido, o feminismo não aparece como um pensamento ou postura dogmática, e não precisa por isto, deixar de ser visto como um pensamento da diferença por partir de um ponto político. Pelo contrário, o feminismo é uma tentativa de pensar um mundo diferente, onde a diferença seria a ausência de opressão. Desta forma, de maneira nenhuma o feminismo sofreria a acusação do qual é objeto parte do pós-modernismo, de conformismo.

Por outro lado, o feminismo, enquanto pensamento é a figura do impasse. Primeiro porque historicamente as mulheres foram desligadas do pensamento. As mulheres são a paixão, o homem, a razão. Kant, no seu famoso texto sobre a Aufklärung afirma que o Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade da qual ele mesmo é o culpado. E penso que ele não tem a mulher como parte da humanidade, pois ao se referir às mulheres, falava de “todo o belo sexo” como componente desta menoridade voluntária. Essa menoridade é a ausência do uso autônomo da razão.

E esta imagem iluminista da razão ligada ao homem persegue a ciência, a filosofia e a cultura em geral, de algum modo, até hoje. Que o feminismo tenha se afirmado como movimento do pensar é um impasse, uma quebra nesta imagem de que as mulheres não “foram feitas para pensar”. Busquemos nos currículos de História da Filosofia e não encontraremos filósofas. Isso quer dizer que elas nunca existiram? Se um certo modo sim, pois aquilo que falta no registro histórico é visto como inexistente. Mas de forma nenhuma isso indica que mulheres não tenham se aproximado da filosofia.

Desde as pensadoras que caminhavam na escola pitagórica, os trabalhos de Safo, Aspásia, Hipatia, Asiotéia, Hidelgarda, Eloísa, Cristhine de Pisan, Mary Wollstonecraft, entre muitas outras são simplesmente inexistentes em manuais de história da filosofia. Que impressão temos quando abrimos um livro que conta a história da filosofia e não encontramos as mulheres? Dizemos: “elas não pensam”. Mas nunca paramos para ver que o autor do livro fez escolhas, e que essas escolhas, ao lado de uma tradição, dita canônica, exclui as mulheres, por elas não serem afeitas ao pensar. As mulheres, como aponta Simone de Beauvoir são socialmente seus corpos. Como os corpos não pensam, corpos não estão nos livros de história da filosofia.

O feminismo coloca essa posição em impasse. Ele não apenas afirma que as mulheres pensam, mas que têm um pensamento inquietante, um pensamento modificador, um pensamento que abala as estruturas fixas e imóveis do conhecimento viciado pelas estruturas opressoras. O feminismo vem mostrando um aspecto positivo do pensamento, um aspecto de reconstrução de um mundo menos violento, menos agressivo, menos opressor. E tudo isso feito através de um pensamento ferozmente crítico. O pensamento feminista é um pensamento crítico na medida em que ele desconfia das coisas que nos aparecem como naturais. Se a junção mulher-corpo é natural, desconfiemos dela. E ao desconfiar dessa naturalidade, estamos abalando uma estrutura opressora que faz que essa junção pareça natural, pois atende a interesses opressores. O feminismo aparece assim como um pensamento da diferença que promove a mudança. Uma crítica que não aceitando sequer que o social ou o real sejam o limite, reinventa o mundo de formas criativas e diferentes.

Nesse movimento de re-invenção do mundo, mesmo as noções centrais para o feminismo no passado foram sendo revisadas e criticadas, como o próprio conceito de gênero. Em sua crítica aos binarismos, um dos binários que caem, no desenvolvimento do pensamento feminista, é o binário sexo-gênero (Conf. Butler: 2003). Eis a prova cabal de que o feminismo é uma postura autocrítica diante do pensamento e da ação.

Figuras novas surgem neste mundo pós-patriarcal defendido pelas feministas, a/o excêntrica/o; a/o forasteira/o, a/o nômade. Estas figuras mostram como a relação das mulheres consigo mesmas, não são relações modelares, o feminismo não está tentando oferecer modelos para a ação, não está tentando dizer como deve ser o mundo, não está descrevendo o mundo perfeito onde a opressão não aconteça. Por outro lado, a excêntrica, a forasteira, a nômade são marcas de figuras de sujeitos que longe de saber o que são, de saber qual o caminho certo a seguir, qual a referência correta, qual o verdadeiro mundo melhor, são sujeitos errantes, sujeitos autocríticos, sujeitos que desconfiam de identidades, que sabem que toda a história é uma ficção, que não há diferença rígida entre ficção e realidade. Que sabem que tudo é inventado. Os seres humanos são inventores e inventoras. Praticamente não há nada que exista fora do discurso e da ação humana. E aquilo que escapa ao discurso e a ação é invisível para as/os agentes humanos.

Num mundo re-inventado, sem Deus, sem normas garantidas por um poder supremo, sem verdade absoluta, sem garantias, somos responsáveis por nossas ações. Não poderemos mais apelar para a natureza humana para nos isentar de nossas responsabilidades. Um mundo onde homens e mulheres não mais existam enquanto tais, mas tendo o cuidado de quando mulheres não existam não fique o referencial masculino. Sem hierarquias, sem dominação opressiva, sem ancoragens violentas em conhecimentos que agem sobre a ação da/o outra/o tomando-a/o por posse. Um mundo onde a heterossexualidade não seja a norma, um mundo onde sexo e reprodução não tenham ligação unívoca. Um mundo diferente… O sonho e a conquista de mulheres que com suas batalhas incansáveis vem construindo, aos poucos, na nossa história.

Ao modo de inconclusão…

O pensamento feminista como pensamento da diferença é, sobretudo, uma aposta política. Uma aposta na mudança, na dissolução de diferenças rotuladas pelo mesmo. A ligação do feminismo com movimentos ecologistas vem mostrando que, longe de ser um movimento ou discurso ressentido, é um movimento inclusivo. Não acontece uma guerra pela supremacia da identidade feminina. Há uma sim, uma batalha pelo fim das identidades rígidas. O feminismo não é uma guerra das mulheres pelas mulheres. Talvez o feminismo, enquanto movimento e pensamento da diferença seja uma luta por um mundo onde ser homem ou mulher não faça diferença alguma. Ser diferente e que isso não faça diferença: o sonho do feminismo. E isso não quer dizer que o feminismo tente fazer iguais mulheres e homens. Pelo contrário. O feminismo é a luta contra o enfeitiçamento dos discursos e práticas que nos fazem pensar que há alguma vantagem ser homem ou mulher.

Referências

A parte do feminismo que de maneira decisiva contribui com o pós-estruturalismo, afirma que uma tática do pensamento moderno é a argumentação linear que mostrem as referências do pensamento, pois estariam apenas conectando formulações já pensadas com o que aquela/e que escreve, pensa. Porém, sou do tipo de pensadora que tenta se desligar deste tipo de modo de pensar e de escrever. Apesar de entender que uma estratégia política de visibilidade das mulheres é mostrar o que elas disseram, isso não precisa ser feito, reificando o pensamento das autoras na forma de citações que apenas objetificam um pensamento rico e múltiplo. Prefiro ter essas autoras como ponto de partida do meu próprio pensamento, e que elas não apareçam em meu texto cercadas de aspas, mortas em palavras que terei que comentar. Não creio que citar uma frase apenas de uma autora, ilustrando o que eu mesma estou dizendo seja a estratégia ideal. Entretanto, a bibliografia aparece aqui como uma dívida de gratidão por palavras que atravessam minha experiência como pensadora, como alguém que aparece socialmente como mulher. Estrategicamente, esta minha postura também tenta impedir aqueles/as oportunistas que varrem os textos apenas em busca de citações. Defendo uma política da leitura dos textos completos. E aquelas/es que se interessarem pelas coisas que tento discutir, podem ver em meu texto um convite. Por isso, aqui estão as/os autoras/es, que junto comigo escreveram este texto:

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Biografia

Nascida na Áustria, em 1970, mas naturalizada brasileira, a autora vive em Vitória — ES, onde cresceu, cursou letras e filosofia. É mestra em filosofia política pela UFRJ e aventureira solitária nos percursos feministas. Leciona Filosofia Contemporânea e Introdução à filosofia, em várias Instituições Superiores de Ensino do ES, onde tem como um de seus principais focos de pesquisa, a visibilidade das mulheres na história da filosofia.

[1] Ouvi de um professor de filosofia que participava de um seminário sobre corpo e significações sociais no Instituto de Medicina Social da UERJ que “o feminismo contemporâneo deve sua existência ao pós-modernismo…” Esta afirmação foi o motivo de minha investigação para este texto, de vez que aparentemente todos concordaram com esta afirmativa.

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