Feminismos, políticas de gênero e novas institucionalidades

Jussara Reis Prá[1] e Marie Jane Carvalho[2]

Revista Labrys
Revista Labrys
35 min readAug 7, 2019

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Texto original

Resumo

Na ordem global contemporânea os padrões tradicionais de relacionamento entre Estado e sociedade são redefinidos por novas dinâmicas sociais. Nesse marco, as doutrinas e ideologias que no passado orientavam as relações desenvolvidas no âmbito do Estado-Nação hoje se mostram insuficientes para >responder aos desafios impostos pelo aumento da pobreza, da desigualdade e da exclusão social que atingem distintas sociedades. Nesse plano, assume relevância o protagonismo exercido pelo movimento de mulheres e pelo feminismo — pensamento e prática — no estabelecimento de formas alternativas de interlocução entre Estado e sociedade e na instauração de políticas públicas voltadas a >garantir os direitos humanos das mulheres e a equidade de gênero.

Palavras-chave: feminismo, políticas públicas, movimentos de mulheres.

O avultamento dos problemas sociais e a incapacidade do poder público em resolvê-los há muito vêm sendo alvo de iniciativas da cidadania: desde as propostas de caráter libertário dos novos movimentos sociais da década de sessenta, até os projetos mais precisos de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e de mecanismos institucionais de defesa de direitos dos anos oitenta e noventa. A nova institucionalidade que emerge daí aparece como noção — não isenta de polêmica — para identificar uma forma de atuação pública que não busca o poder estatal, mas que tem de assegurar a sua autonomia para poder incidir de modo efetivo sobre as decisões tomadas nos planos do mercado e do Estado.

Nesse plano, assume relevância o protagonismo exercido pelo movimento de mulheres e pelo feminismo — pensamento e prática — no estabelecimento de formas alternativas de interlocução entre Estado e sociedade e na instauração de políticas públicas voltadas a garantir os direitos humanos das mulheres e a equidade de gênero. Apesar dessa expressividade, ainda se carece de estudos que resgatem a contribuição feminista para a inclusão de enfoque de gênero nos diferentes níveis da organização estatal (municipal, estadual e nacional), o que fica mais evidente quando se tem o contexto da América Latina como foco de atenção.

A realidade política na maior parte deste continente, pautada por cortes de natureza autoritária, por crises econômicas e pelo aumento das desigualdades sociais, tem motivado iniciativas da cidadania para articular políticas públicas que incidam sobre os problemas relativos a distintos segmentos dessas sociedades, para o que serve de exemplo o da inserção do tema de gênero nas agendas de governo dos países da região. Isso aponta para a importância da realização de estudos que visem dar visibilidade ao conteúdo e significado da contribuição feminista na experiência de implantação de canais institucionalizados para >tratar das desigualdades de gênero.

O presente trabalho segue essa direção ao abordar o tema das “novas institucionalidades” destacando a relação que se estabelece entre gênero, feminismo e políticas públicas. Ao lado disso, procura refletir sobre as abordagens, métodos e estratégias destinadas a promover a igualdade entre mulheres e homens, tendo em vista os limites que podem permear os processos de elaboração e implantação de uma agenda de gênero no contexto estatal. Para desenvolver a reflexão proposta inicia-se por uma discussão sobre o feminismo e os estudos de mulher e gênero, de modo a buscar subsídios para abordar a questão das novas formas de institucionalidade à luz das experiências latino-americana e brasileira.

Feminismo e ação política para a cidadania

O século vinte foi cenário de diversos tipos de manifestações políticas e registrou, desde conjunturas traumáticas, como as originadas em mobilizações pró-autoritárias (nazismo, fascismo), até as de caráter libertário, geradas por movimentos em defesa da paz, do meio-ambiente, dos direitos humanos e da cidadania[3]. Esse mesmo cenário foi palco de mudanças profundas e aceleradas na condição feminina. Com a intensificação dos processos libertários (Rago, 2002) e a luta contra a exclusão social, as mulheres se dirigiam da esfera privada ao espaço público para nele atuarem como sujeitos e agentes das transformações econômicas, políticas e socioculturais em diferentes sociedades. Tais avanços, contudo, ainda são contidos por várias formas de discriminação que dificultam a promoção da igualdade entre os gêneros e o fortalecimento da cidadania feminina.

Independe disso é inquestionável o fato de o século vinte ser identificado como o século das mulheres. Como sustenta Manuel Castells (2000, p.170), nas últimas décadas do segundo milênio observa-se um processo de conscientização de diferente intensidade, dependendo da cultura e do país, porém de rápida difusão e de caráter irreversível: uma insurreição maciça e global das mulheres contra sua opressão,”

[…] a mais importante das revoluções, porque remete às raízes da sociedade. Se a avaliação de Castells refere-se ao contexto mundial, em relação à América Latina tem-se argumentado que o século vinte marca o início de uma revolução silenciosa, um processo de emancipação pacífico, porém profundo, a dignificação da mulher, a defesa dos direitos da mulher que causou um impacto a mais na América Latina com o desenvolvimento da mulher e a equidade de gênero[4]. (Castells (2000, p.170),

O pensamento feminista sustentou e se nutriu do processo de construção coletiva empreendido historicamente pelas mulheres em distintas partes do mundo. Nesse percurso − cujo exame extrapola os propósitos deste estudo −, o ideário feminista, independente de sua filiação teórica ou tendência política, além de desestabilizar a lógica moldada por mitos e estereótipos, que reforçava a discriminação das mulheres, contribuiu para a incorporação do tema da igualdade de gênero à agenda pública e às instâncias políticas. Teve, contudo, de percorrer um caminho longo e conturbado na busca por legitimidade e reconhecimento em espaços acadêmicos, sociais e políticos. Mesmo assim, marcou presença em todas as etapas da experiência humana, embora assumindo formas diferentes e quase sempre ausentes dos compêndios de história e dos registros de modo geral(Castells, idem).

Já no que compete ao compromisso político com a inclusão do tema de gênero nas agendas governamentais, como observa Clyde Soto (2000, 0.28): O caminho que levou os Estados ao final do século vinte a se comprometerem com a igualdade de oportunidades foi preparado por um amplo, diverso e internacional movimento de mulheres decidido a recorrer aos espaços e mecanismos do poder formal para impulsionar a modificação do lugar de subordinação reservado às mulheres na história da humanidade.

O quadro até aqui esboçado serve para destacar a importância do feminismo como agente de um processo de afirmação histórica que tornou públicas as necessidades e especificidades das mulheres e contribuiu para formatar uma modalidade de participação política que produziu novas formas de interação entre Estado e Sociedade.

No sentido dessas observações eleger o feminismo como foco de interesse se reveste de um significado particular, em especial por se tratar de um pensamento construído a partir da ação política e, poucas teorias, têm essa característica. Associação similar havia encontrado expressividade no marxismo e viria a se sedimentar por volta dos anos sessenta do século vinte no movimento ecológico e, em especial, no movimento feminista. Para o desenvolvimento do campo de estudos feminista tal aliança mostrou-se vital diante das barreiras encontradas para ocupar seu espaço acadêmico (Prá, 1997).

Isso em parte pode ser imputado à conotação pejorativa muitas vezes delegada ao termo feminismo. A ideia de rejeitá-lo é flagrante a ponto de se tornar comum nomear outras pessoas como feministas, com tendência à auto-exclusão, incluindo-se aí os meios político, social e acadêmico. Com relação a este último se tornou bastante comum ouvir pesquisadores(as) explicitando que estudavam as mulheres mas que não eram feministas − argumento ainda hoje bastante utilizado[5].

É certo que o radicalismo presente nas mobilizações das mulheres realizadas por volta da década de 1960, em particular nos Estados Unidos, deu margem a posturas dessa natureza, para o que também contribuíram os meios de comunicação ao exporem o lado explosivo do movimento em textos, sons e imagens, em detrimento do conteúdo e das demandas que moviam as manifestações. Contudo, importa lembrar que este feminismo mais agressivo afetou de forma decisiva as visões de mundo até então estabelecidas e promoveu mudanças de vulto na cultura, valores e comportamentos de distintas sociedades.

É certo que muitas destas alterações ainda não foram devidamente investigadas, todavia seus resultados não deixam de ser perceptíveis no cotidiano de homens e mulheres. Conforme Lorellla Davis (1997, p.2), o feminismo reflete o forte valor crítico de um movimento que no transcurso de mais de 200 anos conquistou para as mulheres transformações culturais sem as quais nossa vida seria impensável (somos cidadãs, temos o direito de votar e ser votadas, podemos estudar nas universidades, somos cada vez mais mulheres ocupando postos de trabalho nas mesmas condições que os homens, etc.).

Ao lado disso importa notar que o feminismo não é um processo hegemônico, mas sim um movimento que assume formas distintas e uma diversidade de orientações e posicionamentos, os quais irão se refletir no discurso feminista atual. A esse propósito, como expressa Mercedes Gómez (1995, p.348), os discursos feministas contemporâneos são de múltiplas e variadas características e tendências. Reconhecer tal diversidade, porém, não significa minimizar o potencial de organização do movimento, muito menos a sua capacidade de realizar uma ação política conseqüente.

É com esse múltiplo olhar que o feminismo tem feito a leitura dos temas sociais e políticos, examinando-os pela ótica da justiça social, da igualdade de gênero e dos direitos humanos. Assim, o feminismo discute o que significa e o que deve ser a cidadania para as mulheres, a extensão dos seus direitos políticos, civis e sociais. Já a compreensão dos direitos humanos passa pela reflexão do poder tradicional que os homens detêm sobre as mulheres (Pateman, 1993; Reis, 1999). As revisões apresentam críticas ao patriarcado moderno destacando: a violência de gênero (Human Rights Watch, 1995a; 1995b), em especial a violência intra familiar (Saffioti, 1997; Walby, 1990); a integração do pessoal e do político (Levine, 1989; Pateman, 1989; 1993; Swain, 2000); o direito ao próprio corpo (Swain, 2002); os particularismos na situação de emprego das mulheres; o trabalho doméstico (Aguiar, 1994; 1997; 1998); os direitos reprodutivos (Barsted, 1999; Estudos Feministas, 1993); os direitos de propriedade (Deere e Léon, 2002); e a cidadania como fundamentalmente gendrada e racializada (Crompton, 1993; Reis, 1999; Saffioti, 1979; 1995). A estas se somam as reflexões geradas como fruto das alianças estabelecidas entre as feministas e outros movimentos sociais que lutam pela cidadania; como é o caso do movimento negro.

Outra observação a ser feita sobre o feminismo refere-se à dificuldade de defini-lo. Trata-se, na verdade, de um termo que acaba sendo flexível, pois compreende todo um processo de transformação sem ponto de chegada, mas que contém uma utopia. Nas palavras de Alves e Pitanguy (1981, p.7), torna-se difícil traduzir todo um processo que tem raízes no passado, que se constrói no cotidiano, e que não tem um ponto de chegada. Como todo processo de transformação, encerra contradições, avanços, recuos

Dada essa característica transformadora o feminismo pode ser interpretado a partir de três dimensões, quais sejam: a política, a crítica e a da práxis-orientada. Cada uma baseada em pressupostos de intervenção social: a política, como um movimento para melhorar as condições e as chances de vida das mulheres; a crítica, no questionamento intelectual às formas dominantes de conhecimento; e, a da práxis-orientada concretizada em ações que alteram as relações de poder (Weiner, 1994). Emanam daí muitas das interpretações desenvolvidas pelas feministas para definir e intervir nas ações políticas, sociais e institucionais. Nesse plano, a dimensão política compreende a inter-relação entre o bem-estar e as condições econômicas, sociais e culturais que possibilitam às mulheres disporem integral e livremente da sua capacidade de agenciamento. A condição de agente se realiza pelo respeito e fortalecimento das mulheres.

Retomando a questão dos esforços voltados a definir o feminismo cumpre ainda registrar a posição de algumas autoras sobre o assunto. Para Lorella Davis (1997, p.1), embora o feminismo possa ser definido de diversas maneiras, existe um consenso de que se trata de um conjunto de crenças, valores e atitudes centradas na valorização das mulheres como seres humanos, quer dizer, não pelos atributos impostos por outros, senão por aqueles que existem e são escolhidos pelas mulheres.

De acordo com Sílvia Yannoulas (2001, p.70), “feminismos referem-se aos movimentos ou conjuntos de pensamento que defendem a igualdade de direitos entre os homens e as mulheres. Já na acepção de Gabriela Llanos (2000, p.2), adequada aos propósitos do presente trabalho, o feminismo é entendido como uma posição política que parte do reconhecimento da hierarquia social entre homens e mulheres, que a considera historicamente determinada e injusta, e busca eliminá-la.

Essa posição política de acordo com Marta Lamas (2002) serve para identificar, no contexto latino-americano, um grupo restrito que denuncia a subordinação das mulheres, defende a perspectiva de gênero ou exige cotas para elas na política; aspecto este que considera ter se sobreposto ao de sua dimensão cultural. Acrescenta a isso que a face política do movimento é difusa e difícil de ser definida pela diversidade de organizações, correntes e orientações que comporta; mas que encontra um ponto de convergência quando substitui a visão da política como território estranho ou prática masculina pela ideia de que a participação no jogo político é algo necessário e apropriado.

Ainda segundo Lamas, a crescente profissionalização da intervenção feminista em instâncias estatais ou partidárias, a promoção de diálogo e a formação de alianças insere o movimento na dinâmica política por meio do exercício cidadão e da exigência de participar da elaboração de políticas públicas. Adverte, contudo, que a incerteza deste cenário requer a criação de identidades políticas democráticas, o que exige refletir sobre as divergências contidas em certos princípios identitários que centram a atenção na mulher sem criticar as relações sociais de exploração e certas estruturas de poder.

Se, de um lado, identifica-se a teoria feminista como “um típico movimento intelectual e social moderno”, por outro, reconhece-se que a construção teórica feminista é “inseparável de uma perspectiva emancipatória” (Sorj, 1992). O feminismo da perspectiva identitária é criticado por apresentar um imobilismo para a ação social. A crítica é endereçada à falta de análise das macroestruturas sociais e aos pressupostos relativistas que desconsideram a importância de avaliar quais são os projetos emancipatórios, sua extensão e sua função social. De outra parte, tal abordagem é bem-vinda pelas novas direções teóricas que aponta ao usar os conceitos de diferença, de local, de posicionalidades do sujeito, de poder etc.

Nesse sentido, desencadear uma ação cidadã mais ampla que se baseie na coalizão de diversidades é para Marta Lamas (2002, p.2) o desafio do novo século; para o que é imprescindível que se renuncie ao essencialismo implícito no reclamo identitário, se impulsione uma intervenção mais eficaz, mais pragmática também, na esfera pública, e se desenvolva maior criatividade no âmbito cultural e mais solidez no terreno intelectual. Só assim se poderá gerar a força política do feminismo.

Pelo exposto, procurou-se, em traços gerais, dar visibilidade à mobilização das mulheres e a sua relação com o feminismo, ressaltando alguns impasses que permeiam a sua trajetória como movimento social que, para além da diversidade de conteúdos, estratégias ou orientações, tem como meta a conquista da cidadania feminina. Cumpre agora avaliá-lo como um movimento que encerra em si não só a possibilidade de reivindicar essa cidadania, mas também de fornecer os aportes necessários para configurar novas formas de fazer política. Daí a pertinência de rastrear, ainda que resumidamente, o percurso que levou à intensificação dos estudos sobre mulher e ao desenvolvimento da temática de gênero.

Mulher e Gênero: objetos de estudo feministas[6]

Os estudos feministas podem ser situados entre as temáticas que mais têm enfrentado desafios para obter legitimidade como questão científica no mundo acadêmico. Sofreram críticas de diferentes áreas de investigação, sendo considerados ora assunto marginal, ora fruto da excentricidade de pesquisadores(as) ou, simplesmente, “coisa de mulher”, no sentido pejorativo do termo.

Tais críticas poderiam ser tidas como procedentes já que o feminismo passou por uma fase onde o seu objeto de investigação se constituía exclusivamente das mulheres. Assumir essa postura, no entanto, se fazia necessária num momento em que era preciso construir e reconstruir tudo sobre o feminino; com a criação um campo de pesquisa abrangente e uma bibliografia extensa sobre a questão da mulher se ampliava o espectro dos estudos feministas mudando o seu foco para o estudo das relações de gênero.

Examinando as diferentes fases que deram origem à introdução, difusão e gradual institucionalização dos temas mulher e gênero, é possível fazer um inventário acerca do seu desenvolvimento. Numa avaliação retrospectiva, é possível situar os estudos feministas entre os temas emergentes que se consolidaram durante as últimas décadas do século vinte. Desde a sua intensificação nos anos sessenta eles percorreram caminhos distintos e obtiveram resultados promissores, incluindo o exame das mobilizações contra a discriminação das mulheres nos anos setenta, passando por investigações sobre a condição feminina e as relações de gênero dos anos oitenta e chegando ao reconhecimento da exclusão social das mulheres. Tais temas, antes relegados a uma posição marginal dentro da hierarquia acadêmica, evoluíram rumo a uma progressiva institucionalização no decorrer dos anos noventa vindo a validar um novo campo de estudos (Rebolledo, 1996).

Sonia Montecino (1996, p. 2), baseando-se na análise de Catherine Stimpson sobre os Estados Unidos, identifica quatro fases no desenvolvimento dos estudos sobre mulher:1) a de sua constituição como disciplina autônoma dentro da academia; 2) a de introdução do tema nas principais disciplinas acadêmicas; 3) a da elaboração de currículos que contemplam a diversidade da condição feminina; e 4) a do avanço no sentido da globalização e da internacionalização da temática.

A primeira delas, datada de 1969, corresponde à criação da identidade destes estudos e tem por finalidade: desconstruir os equívocos a respeito da história (Pedro, 1994; Soihet, 1997), da sociedade e da cultura que levaram ao androcentrismo; construir conhecimento sobre a mulher; congregar iniciativas acadêmicas e produzir novas idéias, paradigmas e teorias. Essa fase, identificada como a de segunda onda do feminismo — ou do feminismo revisitado, em menção aos movimentos de emancipação feminina organizados no século dezenove — origina um processo de implantação de cursos e programas sobre o tema da mulher.

A autora refere-se a essa evolução observando que se em 1969 esses cursos não somavam duas dezenas, no início da década de 1980 chegavam a milhares enquanto os programas dedicados à temática atingiam algumas centenas. Esclarece, no entanto, que esse crescimento resultou de trabalho voluntário, enfrentou a escassez de verbas, o não-reconhecimento e até a marginalização ou segregação de quem a eles se dedicava.

A criação de conhecimentos específicos sobre as mulheres e a sua incorporação a diferentes disciplinas corresponde à segunda fase de desenvolvimento desses estudos, tida como a de sua “maioridade” em razão da legitimidade obtida. O debate surgido então entre as feministas — e ainda não superado — polarizou-se entre quem propunha a autonomia disciplinar e quem pregava a integração com outras disciplinas. Não faltou, também, a defesa de uma estratégia dual, sob a alegação de que conhecimentos altamente especializados devem fazer parte de cursos gerais sobre a mulher nas principais carreiras acadêmicas.

A abertura à noção de multiculturalidade configura a terceira fase desse processo e tem a marca da intervenção das intelectuais negras contra a ideia da existência de uma “irmandade universal de mulheres” e da crítica de que os estudos sobre mulher ficavam segregados por serem fruto da experiência de mulheres de classe média e branca. Essa nova direção alimenta debates que privilegiam as diferenças de etnia e raça, as de classe, religião, idade e as especificidades da participação das mulheres na história e na cultura.

A mudança dos paradigmas clássicos é tida como outro elemento importante desta fase dada a disputa entre

“[…] a noção de subordinação universal da mulher e […] a dicotomia entre as esferas públicas e privadas na vida das mulheres” (Montecino, 1996, p.3), que permeiam “[…] as novas investigações interculturais, especialmente pelo exame das sociedades pré-coloniais e das experiências de mulheres pertencentes às minorias étnicas” (Idem). Este momento também é apontado como aquele em que o modelo da mulher como vítima começa a ser substituído por uma imagem mais positiva.

Finalmente a quarta fase desse processo corresponde à internacionalização de programas sobre mulher e gênero mediante o incentivo às iniciativas de criação de centros de estudos em universidades de países do Terceiro Mundo. O foco de interesse das acadêmicas desloca-se para temas globais que afetam as mulheres, tais como: gênero e globalização, neoliberalismo, fundamentalismo, dívida externa, ajustes estruturais, tecnologias reprodutivas, racismo, família, trabalho e política.

Outro aspecto realçado pela autora é o de que a avaliação do desenvolvimento dos estudos sobre a mulher deixa em aberto algumas questões, como por exemplo, as de sua continuidade em um momento de instabilidade institucional e de diminuição das verbas para pesquisa. Além disso, assinala que a proliferação de estudos étnicos, de gênero e sobre homossexualidade (gays e lésbicas), além de outros, tem levado a indagar sobre a forma futura que irão assumir os estudos da mulher.

As expectativas geradas quanto a esse futuro, certamente não obscurecem a importância das mudanças promovidas pelo pensamento feminista no modo de enfocar a realidade. Nessa dimensão, o conceito de gênero aparece como uma contribuição relevante para orientar as pesquisas, a reflexão acadêmica e a prática política, desde sua introdução pelo feminismo anglo-saxão na década de 1970. Amplamente divulgado para outros países no decorrer do mesmo decênio, este conceito “[…] proporcionou uma base fundamental para questionar o determinismo biológico ao discernir entre a anatomia dos corpos e os papéis socialmente construídos para eles” (Rönner, 1995, p.12).

O ponto a ser destacado aqui é o de que os aportes de gênero contribuíram de modo efetivo para diferentes campos do conhecimento, rompendo com paradigmas tradicionais da ciência — centrados na dicotomia cartesiana e em visões assexuadas (androcêntricas) da realidade — e introduzindo uma abordagem histórico-relacional com ênfase nas relações entre sexo/gênero, raça/etnia e classes sociais (Prá, 1999). Como atesta Teresita de Barbieri (1991, p.30) os estudos de gênero promoveram a ruptura epistemológica da qual se fala na Filosofia, talvez a mais importante dos últimos vinte anos nas ciências sociais (Harding, 1988; Fraser, 1989). Trata-se do reconhecimento da desigualdade social até então não tratada ocultada na dimensão econômica, e nas teorias das classes, e nas da estratificação social.

Contraditoriamente, a falta de legitimidade que em muitos casos ainda é conferida ao assunto não reflete o real desenvolvimento desse como campo de estudos e dificulta-lhe o reconhecimento como questão científica de relevo; o que na América Latina torna-se bem aparente. Críticas provenientes de diversas áreas de investigação, entre elas: ciência política, medicina, psicologia e biologia não raro manifestam descrédito em relação ao aporte feminista e à mulher como objeto de estudo. Isso faz sentido quando se verifica tratar-se de conhecimento que surgiu e se desenvolveu à margem do ambiente acadêmico já que boa parte da produção e renovação do debate teórico sobre as mulheres gerou-se junto aos movimentos sociais (Rebolledo, 1996)[7].

Quando se examina a situação destes estudos nos Estados Unidos, Europa e América Latina verifica-se que os primeiros contam a seu favor com mais de duas décadas de prática institucional e de debate nas universidades. Na América Latina, mesmo que nos anos setenta a discussão acadêmica tenha visado o exame de novos temas sociais; o aumento do interesse em investigar a situação das mulheres coincide com o momento em que as Ciências Sociais experimentam um certo esvaziamento nas instituições de ensino superior, é quanto então os movimentos sociais passam a ser o locus privilegiado para produzir e difundir esses novos conhecimentos.

Em países como o Brasil e em boa parte da América Latina o impacto causado pelos problemas políticos que assolavam a região, as lutas contra o autoritarismo e a defesa da democracia colocam em segundo plano o processo de construção do campo de estudos feminista e estabelecem os limites para o desenvolvimento da “segunda onda” do feminismo. Essa, ao contrário do que ocorrera nos Estados Unidos, só começa a se expandir no continente latino-americano a partir da década de 1970 e se estende por mais tempo − quase duas décadas. Além disso, adota conteúdos bem diferenciados, limitando-se, basicamente, às críticas contra a subordinação da mulher e à estrutura hierárquica existente entre os sexos.

Tal situação assume outras características no curso dos processos de transição política desses países, quando muitos temas antes restritos ao âmbito da sociedade civil começam a se institucionalizar. Na avaliação de Loreto Rebolledo (1996), uma das peculiaridades da introdução desses estudos nas universidades da América Latina é a do avanço de fora para dentro e de baixo para cima, com o reconhecimento progressivo do conhecimento produzido junto aos movimentos sociais e às ONGs pelas instituições de ensino superior. Coube às militantes feministas e ex-exiladas políticas introduzir, difundir e divulgar os estudos feministas com a elaboração de teses e dissertações sobre o tema e pela criação de núcleos de estudos ou de cursos e programas sobre mulher e gênero[8].

A criação de programas e cursos ou a elaboração de currículos, com ênfase nas temáticas de mulher e gênero, no entanto, fica aquém do esperado neste território, em particular, quando se tem por referência o seu desenvolvimento em centros universitários norte-americanos e europeus. Ademais, mesmo que na América Latina se expandam esses cursos e programas, eles nem sempre obtêm o reconhecimento formal e a habilitação necessária para conceder o grau acadêmico a sua clientela. Albertina de Oliveira Costa chama a atenção para o fato de que

“o conjunto formado por estes núcleos universitários não dá conta da extensão e complexidade da comunidade dos estudiosos da temática, que engloba ainda centros privados de pesquisa e organizações não-governamentais criadas por profissionais feministas, para fornecer subsídios à formulação de políticas públicas e prestar assessoria a movimentos populares em luta por seus direitos” (Costa, 1994, p. 406).

Também importa notar, como o faz Loreto Rebolledo, que quando se comparam os estudos desenvolvidos no meio acadêmico com os realizados por integrantes de ONGs e de centros de mulheres, verifica-se certo descompasso entre a produção acadêmica e a militante; ao que se soma a falta de ênfase em temáticas que hoje poderiam servir para potencializar a ação política das mulheres. Dessa ótica, não deixa de ser preocupante a escassez de pesquisas ou de discussões mais aprofundadas sobre temas políticos mais amplos. Assim, se o feminismo uniu, as discussões sobre o sistema político, a democracia e as tendências partidárias, nos processos de transição democrática e de modernização do Estado, podiam dividir (Barrig, 1998, p.12).

Mesmo assim, a difusão dos estudos feministas no contexto acadêmico latino-americano trouxe aportes importantes para distintas áreas de conhecimento e em específico para as Ciências Sociais, inovando conteúdos, estimulando o uso de novas metodologias e integrando várias disciplinas. Em termos conceituais, também apresenta positividade apesar da pertinência das críticas quanto ao uso equivocado do conceito de gênero, em muitos casos restrito ao feminino, o que, registre-se, acaba interferindo no momento de definir a perspectiva política a ser adotada para a promoção da mulher, como será visto adiante.

Deve-se ainda destacar que as categorias mulher e gênero criaram aportes específicos do ponto de vista teórico-metodológico, o que não ocorreria na ausência de uma delas. A perspectiva de gênero amplia o campo de investigação feminista pelo enfoque das relações entre homens e mulheres em diferentes contextos políticos e socioculturais. Já a crítica que faz ao uso do termo “mulher” como categoria de análise universal, possibilita reflexões mais abrangentes sobre a situação das mulheres, tendo agora o masculino como referente. Além disso, permite substituir a visão da mulher subordinada histórica, política e socialmente pela versão de que em distintas sociedades e em todos os períodos históricos há relações específicas entre homens e mulheres que precisam ser delimitadas seja pela igualdade, complementaridade ou desigualdade que comportam, seja conforme as hierarquias sociais, as responsabilidades econômicas ou os códigos simbólicos adotados por cada grupo (Montecino, 1996).

Sendo assim, o conceito de gênero antes de representar uma opção por modelos ou posições deve ser visto como um campo de trabalho a ser explorado por meio do questionamento constante dos estereótipos que perpassam as relações entre homens e mulheres, entre as mulheres e entre os homens. Nesse sentido, a compreensão do conceito pode sustentar uma ação política que integre mulheres e homens na busca de uma sociedade que seja capaz de reconhecer e eliminar as discriminações de gênero, classe, raça/etnia e idade (Saffioti, 1994; 1995). Para tal mostra-se indispensável o respeito aos conteúdos implícitos aos conceitos de mulher e de gênero, pois os pressupostos subjacentes a ambos supõem, também, modos de implementação específicos (Montecino, p.8).

Em suma, é nesse marco que se situam o debate sobre a inclusão da perspectiva de gênero no âmbito das políticas públicas e os questionamentos acerca da criação e do funcionamento dos mecanismos institucionais de defesa dos direitos da mulher, tema tratado a seguir.

Políticas públicas de gênero e novas institucionalidades

A América Latina vem experimentado, com maior ou menor intensidade, com maior ou menor conteúdo democrático, processos de reforma do Estado que, em tese, deveriam contribuir para uma melhor definição das funções estatais, para corrigir deficiências históricas e responder às exigências de um contexto globalizado. De acordo com Virgínia Vargas Valente (2002, p.1), o processo de responder de modo eficiente às exigências de bem-estar social e participação cidadã − intrínseco à concepção de governabilidade democrática − tem sido geralmente débil nos países desse continente. O Estado tem se manifestado de forma mais autoritária do que democrática, restringindo a possibilidade de mediação com a sociedade e, portanto, de >responder às exigências dos novos contextos socioeconômicos, políticos e culturais. Isto atualmente se torna mais limitante diante dos efeitos gerados pelo modelo econômico neoliberal e das reduções do tamanho do Estado, no período de globalização.

Para a autora, apesar destas limitações e contradições, ou justamente por elas, os processos de governabilidade e de reforma do Estado − apoiados muitas vezes por impulsos vindos de fora, especialmente de organizações multilaterais e bilaterais, assim como por pressões da sociedade civil organizada — abriram espaços mais sensíveis a novas práticas cidadãs (Idem, p.1). Localizam aí os esforços para a criação de espaços específicos de participação e de gestão de programas orientados para a promoção das mulheres e da equidade de gênero no âmbito do Estado. É nesse sentido que se fala no surgimento de novas institucionalidades ou da institucionalização do enfoque de gênero.

A posição do Estado em relação às mulheres se manifesta historicamente pelo reconhecimento da dimensão social de sua exclusão e discriminação. A vulnerabilidade que lhes é imputada contribui para torná-las objeto de medidas assistencialistas, definidas como “gasto nas mulheres”; estratégias redistributivas de poder ou de oportunidades sequer são pensadas para contemplar esse segmento da população.

A criação de mecanismos institucionais de defesa dos direitos da mulher, em diferentes países desse continente, por volta da década de 1980, promove uma mudança profunda nesse tipo de política substituindo-se a perspectiva assistencialista pela de inversão social. Refira-se que tais organismos haviam sido implantados pelos poderes públicos da maioria dos países ocidentais a partir da década de 1970, adotando políticas de igualdade de oportunidades voltadas a erradicar a discriminação contra as mulheres e as desigualdades entre os sexos (Astelarra, 1998).

No Brasil, com a articulação das feministas brasileiras com os partidos políticos, entre 1981 e 1988, propostas importantes foram levadas adiante, dentre elas, a criação, em 1983, do Conselho da Condição Feminina nos Estados de São Paulo e Minas Gerais e, em 1985, de Delegacias da Mulher (DDMs). Conselhos e Delegacias se espalharam por diversas capitais brasileiras e as DDMs se constituíram como um projeto pioneiro no mundo para lidar com a violência contra as mulheres. Também, registra-se a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985 no governo de José Sarney, ligado ao Ministério da Justiça. A euforia das ações reformistas dos primeiros anos de transição democrática no Brasil foi importante para abrir espaço para as mulheres, mas muitas dessas instituições foram usadas como álibi político-partidário.

Entre 1986 e 1990, na administração de centro-direita de Orestes Quércia em São Paulo, o Conselho da Condição Feminina teve seus recursos reduzidos significativamente e o Conselho foi marginalizado na arena política. O mesmo aconteceu na esfera federal com o Conselho Nacional da Mulher. As Delegacias da Mulher, inicialmente previstas para funcionar com pessoal treinado e sensível às questões de gênero, para lidar com casos de estupro, assédio sexual e violência doméstica, acabaram por não >receber o devido investimento, reproduzindo, por vezes, nas DDMs o que se condenava nas Delegacias comuns, quando policiais masculinos atendiam as mulheres (Human Rights Watch, op. cit.). Muitas feministas, desapontadas com a manipulação dos partidos políticos, investiram seus esforços no trabalho acadêmico (Alvarez, 1994).

A criação da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (2002), transformada em Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2003), é parte de antiga reivindicação do movimento feminista por espaço e reconhecimento. Seu alinhamento com uma nova sensibilidade na esfera estatal de combate às discriminações, a partir da última eleição presidencial, sinaliza para a ampliação das possibilidades de desdobramentos de inclusão política e social para as mulheres. A despeito desta disposição, seus resultados efetivos ainda serão conferidos.

No que respeita à América Latina, em se aceitando que o Estado e as suas políticas públicas refletem e reproduzem valores, normas e posturas sociais, incluindo as percepções do feminino e do masculino, é correto afirmar que o tratamento dado pelo Estado às questões da mulher ou à da equidade de gênero está condicionado por tendências globais e regionais do modelo de desenvolvimento econômico e social, ao papel e aporte feminino a tal desenvolvimento, aos avanços em termos dos direitos das mulheres, ao próprio conceito de gênero, assim como ao projeto político de cada país.

A esse respeito, conforme destacado em documento da Organização Internacional do Trabalho (OIT) a incorporação do tema da equidade de gênero na agenda pública serve para exemplificar a complexidade de processos dessa natureza. Essa incorporação sem dúvida deve ser creditada ao esforço, à visibilidade e legitimidade que adquire o movimento de mulheres nas duas últimas décadas do século vinte, bem como ao tipo e à qualidade do conhecimento produzido sobre as relações de gênero (Cienterfor, 2002).

Nesse plano, as políticas públicas enquanto linhas de ação coletiva que concretizam direitos sociais declarados e garantidos em lei (Pereira, 1994), aparecem como um campo fértil de análise para identificar as relações entre Estado e sociedade. Ao mesmo tempo são bons indicadores para medir o grau de democratização social. Vistas por esse angulo, as políticas públicas são o resultado de um conjunto de processos mediante os quais as demandas sociais se transformam em opções políticas e em tema de decisão das autoridades públicas (Guzmán e Zalazar, apud Cinterfor, 2002, p. 1).

Sendo assim, não lhes cabe ser objeto de atos administrativos isolados, pois são antes de tudo produtos sociais que resultam de determinado contexto cultural e econômico e que estão inseridos em estruturas de poder e em projetos políticos específicos. Ressalvado que o fato de grupos e classes sociais identificarem seus problemas e as soluções requeridas, não é suficiente para gerar uma ação estatal, o que demanda um longo processo marcado pela emergência de concepções e valores sobre a temática, por tensões e divergências de prioridades entre atores de distintos cenários (local, nacional e internacional), incluindo também organismos internacionais, bem como instrumentos e mecanismos normativos e técnicos por eles promovidos (Idem). No caso das políticas de gênero esse processo é muito bem delimitado quanto às tensões e reações que provoca, bem como aos instrumentos, atores e instituições que acabam sendo envolvidos para a sua efetivação.

A prioridade concedida a uma agenda de gênero no âmbito do Estado, no entanto, além de estar sujeita à vontade política, expressa no âmbito de cada país, também passa a depender da existência de um maior ou menor consenso internacional quanto à necessidade de sua execução. Tal agenda, então, tanto pode ser lida pela ótica da cidadania quanto pela de forças econômicas que põem acento nos processos de crescimento econômico e de modernização política sem considerar seus aspectos sociais e humanos.

O projeto redistributivo das agendas economicistas — como sustentação da democracia, da cidadania e do desenvolvimento social — pressupõe que ao resolver a pobreza os demais problemas se resolvem por si. Concentrar os esforços na questão da pobreza, tendo como parâmetro o desemprego e a distribuição de renda, deixa fora outros fatores intervenientes. A privação das capacidades individuais das mulheres abrange um espectro imenso de condições desfavoráveis que tolhem a sua liberdade de agente. Tão importantes quanto os efeitos macroestruturais que auferem renda e mobilidade social, encontram-se os efeitos deletérios das disposições sociais desfavoráveis que afetam cotidianamente a vida de mulheres e, portanto, limitam as possibilidades de expansão das suas capacidades individuais. A análise da dinâmica das relações cotidianas de gênero, raça e classe social, mostra que há proeminência, em alguns momentos, de uma, duas ou mais relações. Isso responde pela sincronia e não-sincronia dos problemas e das soluções, que afetam os sujeitos ao viverem relações específicas[9].

O modelo de crescimento adotado na América Latina se encaminhou nessa direção. Durante os anos 50 prioriza a abordagem assistencialista para tratar os problemas das mulheres, com base no seu papel reprodutivo. Entre o final dos anos 60 e início dos 70, dado o fracasso do enfoque modernizante, vem à tona a situação de exclusão social das mulheres, avaliam-se as suas relações na esfera privada e a sua contribuição econômica; surgem o enfoque desenvolvimentista e as ações afirmativas, como tentativa de superar desigualdades entre os sexos. No início dos anos 80, se confrontam os conceitos de “eficiência”, de um lado, e de “empoderamento e autonomia”, do outro. Nos anos 90 têm lugar os fenômenos de globalização, capazes de gerar ao mesmo tempo novas oportunidades e novas vulnerabilidades (Cinterfor/OIT, 2002).

Nesse plano, a pressão exercida por iniciativas da cidadania em defesa da equidade de gênero, dos direitos humanos e do desenvolvimento sadio e sustentado rendeu medidas contra a pobreza, pela qualidade de vida e do meio ambiente, com o respaldo programas de cooperação internacional e de políticas nacionais. Ressalvado, porém, que muitas delas seriam adotadas para marcar presença nos cenários nacional e internacional e, particularmente, para debilitar as resistências e os questionamentos às estruturas de poder e da vida cotidiana.

Quanto às mulheres, suas principais conquistas ao longo desse período foram tornar pública a sua discriminação, obter o reconhecimento de suas demandas e, ao lado disso, evidenciar a urgência de criação de uma institucionalidade estatal para propor a igualdade de oportunidades e a equidade de gênero. A integração das questões de gênero às políticas públicas fica claramente definida, como uma estratégia mundial para promover a igualdade dos gêneros, na Plataforma de Ação elaborada na quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada pelas Nações Unidas em Beijing em 1995, que elenca 12 (doze) esferas de atuação como prioritárias para a promoção da mulher.

A partir daí passam a ser elaborados e postos em prática os planos de igualdade de oportunidades; muitos deles, respeitando as especificidades locais e regionais, trazem como inovação a perspectiva da transversalidade de gênero. Trata-se de um enfoque que prevê a inclusão das políticas de gênero, de forma horizontal, no conjunto de ações do governo, seja nacional, estadual ou municipal. Apesar disso, quando se examinam as experiências desenvolvidas por mecanismos institucionais de defesa dos direitos da mulher na América Latina, verifica-se que muitos ainda mantêm um enfoque de políticas públicas dirigido à mulher em detrimento da adoção de abordagens mais abrangentes, como no caso as com a perspectiva de gênero.

O exposto mostra a interdependência entre as políticas públicas e as relações de gênero dominantes assim como a necessidade de incidir efetivamente na definição de ambas visto que não pode conceber umas sem as outras: o Estado e as suas políticas contribuem para configurar as relações de gênero no interior da sociedade ao mesmo tempo em que as relações de gênero configuram o tipo de Estado. Tudo conduz a sustentar que a inclusão da perspectiva de gênero nas políticas públicas vai depender da vontade explícita de parte das autoridades de promover uma redistribuição entre os gêneros em termos de recursos, direitos civis, participação, posições de poder e autoridade e valorização do trabalho de homens e mulheres.

Sendo assim, a possibilidade de romper com as fronteiras políticas que acentuam a exclusão social na periferia do mundo desenvolvido, bem marcante em relação às mulheres, implica numa democratização da institucionalidade política, que incorpore os aportes da sociedade civil a fim de promover a cidadania das mulheres e a equidade de gênero. Neste marco, a elaboração, a coordenação e a implantação de políticas orientadas pela perspectiva de gênero, outorgam vigência e importância a uma temática capaz de promover tanto o fortalecimento da democracia como a construção de um projeto de sociedade capaz de garantir o desenvolvimento humano e a equidade social.

Todavia, as avaliações substantivas a respeito dos procedimentos, alcances, resultados e impactos dos diversos planos de ação voltados para a equidade de gênero ainda não são suficientes. Mesmo que instrumentos dessa natureza apresentem limitações e riscos desde sua implementação até a sua evolução, é certo que eles tornam as mulheres mais visíveis, legitimam suas ações e reivindicações e permitem a incorporação na agenda política de um tema que normalmente não é considerado prioritário. Ademais, podem integrar homens e mulheres no debate sobre as formas de relacionamento social entre os gêneros (Bruena e González, 2001).

Isso faz sentido quando se considera, como Gabriela Llanos (2000, p.10) que o feminismo, independente da diversidade que comporta como pensamento e movimento, permitirá fortalecer gradualmente a cidadania das mulheres, e servirá de motor para os estudos de gênero que mostrem caminhos para a liberação. Estudos, segundo ela, que incorporem processos de sensibilização; que retratem a mulher como sujeito e protagonista; que integrem enfoques anteriores aos novos; que aprofundem mais determinadas temáticas e métodos, resgatando o que for pertinente. Afinal, diz ela:

A ação política e a produção de conhecimentos se têm alimentado e se alimentarão mutuamente. O processo cultural de >construir condições que tornem possíveis as transformações buscadas não será fácil, porém permitirá completar uma das revoluções mais profundas e significativas da história da humanidade. Sem dúvida, tenho a convicção de não estar falando de utopias, senão de processos que já estão em curso.

Enfim, como registrado em outra oportunidade a respeito da relação entre feminismo, gênero e políticas públicas (Prá, 2002), a possibilidade de romper com as fronteiras da governabilidade que acentuam a exclusão social na periferia do mundo desenvolvido, bem marcante em relação às mulheres, implica numa democratização da institucionalidade política, capaz de incorporar os aportes da Sociedade a fim de promover a cidadania das mulheres e a equidade de gênero. Nesse marco, a elaboração, a coordenação e a implantação de políticas orientadas pela perspectiva de gênero outorgam vigência e importância a uma temática com potencial de gerar um projeto de governabilidade social que garanta o desenvolvimento e fortaleça a democracia.

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Biografia

[1] Jussara Reis Prá: Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo — USP; Professora do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS; Conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher — CNDM.

[2] Marie Jane Carvalho: Doutora em Educação; Docente e pesquisadora na Faculdade de Educação/UFRGS nos Programas de Pós-Graduação em Educação, em Informática Educativa e no Mestrado a Distância em Educação — Tecnologias Digitais na Educação Básica; Coordenadora da Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Feministas (REDEFEM).

[3] Cidadania como um princípio de direito jurídico-social dado por certo é uma ficção. Refere-se, antes, a sujeitos englobados no Estado-Nação. Os intitulamentos da cidadania têm sido conquistados tão-somente por meio de lutas e contestação. Gênero, raça, etnia, identidade sexual são vetores necessários da cidadania social e política. Os embates e demandas de grupos específicos revelam que a cidadania é um repositório de interesses divergentes que desfazem sua pretensão universalista (Carvalho, 2002).

[4] Referência feita pelo presidente da Guatemala, Afonso Portillo, no discurso de abertura do Foro de Intercâmbio de Experiências sobre Institucionalidade, reunindo representantes de Mecanismos Institucionais da Mulher (Ministras, Secretárias de Estado e Presidentes de Conselhos da Mulher) de 12 (doze) países da América Latina e do Caribe, em julho de 2002.

[5] Essa discussão encontra-se em Davis (1997); ver, também, Barrig (1998) e Llanos (2000).

[6] Esta avaliação sobre os estudos feministas reproduz parte de trabalho da autora Jussara Reis Prá sobre gênero e ação coletiva publicado em 1999.

[7] Um excelente apanhado sobre o desenvolvimento dos estudos e pesquisas sobre mulher e gênero no âmbito acadêmico pode ser encontrado em Loreto Rebolledo (1996), texto que serviu de base para enfocar este tema no trabalho ora apresentado.

[8] O Brasil e o México são apontados por Montecino (1996) como pioneiros em algumas dessas experiências com a criação, em 1983, do PIEM (Programa Interdiscipinario de Estudios de la Mujer) no Colégio do México, embrião de um curso regular que fornece diplomação em Estudos da Mulher; no Brasil, por volta do mesmo ano, começam a >surgir Núcleos de Estudos sobre a Mulher em universidades estatais e privadas, o que destacaria o país, no conjunto do território latino-americano, como aquele onde esse tipo de experiência atinge os melhores resultados. Para uma análise dos Núcleos de Estudos no Brasil conferir Costa e Sardenberg (1994) e Costa (1994).

[9] Salientar este aspecto implica em ter presente que a perspectiva da pobreza como privação de capacidades não envolve nenhuma negação da ideia sensata de que a renda baixa é claramente uma das causas principais da pobreza, pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da privação de capacidades de uma pessoa (Sen, 2000). Todavia, a renda por si só não explica outros fatores intervenientes. Como bem observa Sen (op. cit., p. 110), a relação entre renda e capacidade seria acentuadamente afetada pela idade da pessoa (por exemplo, pelas necessidades específicas dos idosos e dos muito jovens), pelos papéis sexuais e sociais (por exemplo, as responsabilidades especiais da maternidade e também as obrigações familiares determinadas pelo costume), pela localização (por exemplo, propensão a inundações ou secas, ou insegurança e violência em alguns bairros pobres e muito populosos), pelas condições epidemiológicas (por exemplo, doenças endêmicas em uma região) e por outras variações sobre as quais uma pessoa pode não ter controle ou ter um controle apenas limitado. Sen observa que se a renda familiar é usada desproporcionalmente no interesse dos meninos em detrimento das meninas, nós temos um grau de privação relativa maior para elas.

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