Gênero: uma categoria útil para estudo do corpo e da saúde?[1]

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva

Revista Labrys
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20 min readAug 7, 2019

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Texto original

Resumo

Nosso objetivo neste trabalho é duplo. Primeiro, fazer uma síntese da proposta teórica de Joan Scott para os estudos de gênero, presente em seu texto Gender: a useful category of historical analysis. Queremos demonstrar que esta categoria é realmente útil e tem, efetivamente, transformado os estudos de gênero no campo da História. Em segundo, queremos defender que estas formulações teóricas não devem se limitar às análises históricas, já que possuem um caráter mais geral, pois propõem, em última instância, uma quebra de paradigma. Acreditamos que tal categoria pode ser adotada em diversos campos do conhecimento, sobretudo pelas ciências da saúde, pelas ciências sociais aplicadas e por outras disciplinas das ciências humanas, que se dedicam ao estudo do corpo e da saúde humanos.

Palavras-chaves: Joan Scott, gênero, corpo, saúde, pós-modernismo

Em 1986 foi publicado, no volume 91 da American Historical Review, o artigo Gender: a useful category of historical analysis, escrito pela historiadora norte-americana Joan W. Scott. Preparado originariamente para ser apresentado na reunião da American Historical Association, realizada em Nova York, em 1985, este texto foi traduzido para diversas línguas, inclusive o português, e causou um grande impacto entre os historiadores em diferentes países. Apesar de já ter completado 18 anos, este artigo continua sendo uma leitura fundamental para aqueles que se dedicam ao estudo do gênero.

Joan Scott é professora da Escola de Ciências Sociais do Instituto de Altos Estudos de Princeton, Nova Jersey. É especialista na história do movimento operário no século XIX e do feminismo na França. É, sem dúvida, uma das mais importantes teóricas sobre o uso da categoria gênero em história. O artigo que passamos a comentar apresenta algumas das suas primeiras contribuições à questão.

Em Gender: a useful category of historical analysis, Scott apresenta e discute diversas acepções do termo gênero à luz de diferentes correntes teóricas, elaborando uma definição para tal categoria e apontando a importância de seu uso para a renovação das pesquisas históricas. A seguir, vamos apresentar as linhas gerais deste trabalho.

Scott inicia seu texto destacando que as coisas que têm a função de significar algo, tal como as palavras e as idéias, possuem uma história (p. 265), o que inclui o termo gênero. Desta forma, aponta que as feministas norte-americanas, rejeitando palavras que poderiam trazer a noção de determinismo biológico e realçando o caráter relacional das definições de feminino-masculino, importaram o sentido de gênero da gramática e passaram a utilizá-lo para referirem-se à organização social das relações entre os sexos (p. 266).

Ao adotar tal termo, segundo Scott, mais do que insistir que as mulheres eram objetos da História, as historiadoras feministas buscavam reformular os paradigmas desta disciplina, redefinindo e ampliando a visão tradicional de fazer história (p. 267). Neste sentido é que ela sublinha que para o nascimento de uma nova história haveria que se desenvolver a ideia de gênero, transformando-o em uma categoria de análise (p. 268).

A inclusão do gênero como categoria analítica, tal como as de raça e classe, traria, para Scott, a inclusão dos oprimidos na História; a análise do significado e da natureza da sua opressão e a compreensão acadêmica de que as desigualdades, face ao poder, estão relacionadas ao menos a estes três elementos — gênero, raça e classe (p. 268). Contudo, ela mesma aponta um entrave a esta proposta: a falta de consenso, entre os estudiosos, sobre os significados destas três categorias (p. 268).

A partir deste ponto do texto, Joan Scott passa a discutir o sentido e o uso dado ao gênero em trabalhos acadêmicos, destacando que o emprego desta categoria deveria levar à passagem de análises descritivas para analíticas, mas constata que estas só seriam possíveis com a adoção de novos paradigmas teóricos (p. 268). Assim, ela critica os trabalhos que utilizam o termo gênero como sinônimo de mulher com o objetivo de dar um caráter mais acadêmico e menos político às suas reflexões, já que consideram este termo mais neutro do que as palavras feminino ou mulher (p. 270). Também critica as pesquisas que apesar de analisarem as relações sociais entre homens e mulheres atém-se somente ao estudo de certos setores da organização social, como a família, a reprodução, as ideologias de gênero (p. 271–272). Ela conclui estas críticas realçando que o mero uso do termo gênero, sem uma mudança de perspectiva teórica, faz com que as pesquisas continuem a estudar “as coisas relativas às mulheres”, de forma descritiva, sem que se questione porque as relações entre homens e mulheres estão construídas como estão, como funcionam e como se transformam (p. 272). Mas as quais mudanças teóricas Joan Scott se refere?

O texto de Joan Scott foi produzido em um momento em que, nos Estados Unidos, os historiadores viviam a crise dos paradigmas. Mas que paradigmas são estes? Até a década de 60 do século passado a explicação histórica desenvolveu-se fundamentando-se em teorias que se assentavam em paradigmas provenientes do pensamento iluminista, [2] tais como a crença na razão, na existência de um sujeito estável e coerente, na neutralidade da ciência, na objetividade da linguagem, em leis gerais que regem os fenômenos, inclusive os históricos, dentre outros pressupostos. Neste sentido, as análises históricas pautavam-se, sobretudo, na descrição dos fenômenos, em explicações causais, em estudos de caráter quantitativo, e em generalizações.

Só a partir de meados do século passado, face à descrença com os progressos da ciência e do pensamento racional e objetivo, um novo paradigma foi se constituindo: o chamado pós-estruturalista ou pós-moderno. [3] Os chamados estudos pós-modernistas realçam a subjetividade dos sujeitos e da linguagem; a impossibilidade da neutralidade científica; a importância dos estudos qualitativos e dos fenômenos particulares; negam as leis gerais de explicação dos fenômenos; apontam para a instabilidade dos conceitos e categorias etc.

O que Joan Scott propõe neste seu trabalho é justamente que os estudos de gênero venham a se assentar neste novo paradigma teórico. Para a autora, esta opção permitiria às feministas acadêmicas não só encontrarem “uma voz teórica própria”, como também aliados acadêmicos e políticos (p. 287).

Para fundamentar a sua proposta, a autora analisa, de forma crítica e à luz da perspectiva história, três visões teóricas diferentes sobre o gênero: a dos teóricos do patriarcado, a elaborada pelas feministas marxistas e as teorias psicanalíticas de matriz pós-estruturalista e anglo-saxônica.

Os teóricos do patriarcado, segundo Scott, analisam o sistema de gênero e apontam a sua primazia em toda a organização social. Procuram explicar a dominação da mulher pelo homem em função da reprodução e da própria sexualidade. Porém, não demonstram como a desigualdade de gênero estrutura as outras desigualdades sociais ou afetam aqueles campos que parecem não ter ligação com o gênero. [4] Além disso, estas reflexões se assentam nas diferenças corporais entre homens e mulheres, consideradas imutáveis e, portanto, ahistóricas (p. 274–275).

As feministas marxistas fundamentam suas reflexões na busca de uma base material para o gênero e a encontram na divisão sexual do trabalho. Scott critica esta teoria principalmente devido ao fato de que, nesta perspectiva, o gênero é considerado como um “produto acessório” nas transformações das estruturas econômicas, carecendo, portanto, de status analítico próprio e independente (p. 276–279).

As teorias psicanalíticas abordam os processos pelos quais a identidade do sujeito é criada, centralizando suas análises nas primeiras etapas da vida da criança. Estas teorias, apesar de concentrarem-se nos sujeitos, como realça Scott, tendem a universalizar as categorias homem-mulher, descontextualizando a construção da subjetividade e reforçando o caráter de oposição binária do gênero (p. 280–285).

Joan Scott rejeita cada uma dessas teorias que buscam explicações gerais para o gênero e, pautando-se no paradigma pós-moderno, propõe a busca constante pela historicização e desconstrução dos termos que procuram denominar a diferença sexual (p. 286). [5]

Assim, a historiadora, inspirada pelas reflexões de dois importantes filósofos pós-estruturalistas, Foucault e Derrida, mais do que uma mudança de perspectiva teórica no uso da categoria gênero, propõe uma mudança radical na forma de fazer história, que deveria apresentar novas questões, hipóteses e métodos; abandonar a busca pelas origens dos fenômenos; reconhecer a complexidade dos processos históricos, cujos elementos encontram-se tão inter-relacionados a ponto de não poderem ser estudados isoladamente; discutir como se sucederam os fenômenos, descobrindo os seus porquês; verificar as ligações entre o sujeito e a organização social na busca dos significados; considerar que o poder não está unificado, não é coerente, nem se encontra centralizado no seio das organizações sociais (p. 286–288).

Após todas estas considerações, a autora apresenta a sua definição de gênero. Como ela mesmo aponta, esta definição possui duas partes e várias sub-partes, que estão ligadas umas às outras. Primeira parte: “o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças que distinguem os sexos”; segunda parte: “o gênero é uma forma primária de relações significantes de poder” (p. 289).

E quanto às sub-partes? A perspectiva de gênero de Joan Scott reconhece a sua “dispersão”, que o faz presente nos símbolos e nas representações culturais; nas normas e doutrinas; nas instituições e organizações sociais; nas identidades subjetivas. Estes elementos operam juntos nas relações sociais, mas não são reflexos uns dos outros (p. 290–292).

Por outro lado, ainda que não seja o único campo de articulação do poder, o gênero é a primeira instância dentro da qual, ou por meio da qual, o poder se articula. Baseando-se em Bourdieu, a autora afirma que os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização de toda a vida social, influenciando as concepções, as construções, a legitimação e a distribuição do próprio poder (p. 292–293).

Depois de expor as considerações teóricas, Scott passa, então, a apresentar diversos exemplos nos quais o uso da categoria gênero na perspectiva pós-moderna pode revolucionar os estudos históricos, já que sua aplicação não se limita à análise das áreas “femininas e privadas” da história, mas podem ser empregadas nos estudos sobre a política, a guerra, a diplomacia, a demografia etc, e permite a construção de novas problemáticas, hipóteses e interpretações (p. 294–300).

Em Gender: a useful category of historical analysis, Joan Scott propõe, portanto, uma visão pós-moderna da categoria gênero. A partir das suas idéias, podemos apontar alguns aspectos que caracterizam os estudos de gênero:

- analisam como, em diversas sociedades e momentos, um dado grupo ou indivíduo dá significação ao feminino e ao masculino;

- elegem o particular, renunciando à busca por leis causais e gerais para a explicação das diferenças sexuais;

- tratam os pares homem-mulher ou feminino-masculino não como categorias fixas, mas constantemente mutáveis;

- consideram, apesar de estarem atentos ao caráter relacional do gênero, que o caráter binário sobre a diferença sexual, ainda que seja hegemônico nas sociedades, não é invariável ou imutável;

- rejeitam o determinismo biológico e a ideia de que a distinção sexual é natural, universal ou invariante, a despeito das diferenças anatômicas entre machos e fêmeas na espécie humana, mas que se constrói discursivamente de forma inter-relacional, pressupondo relações hierárquicas de dominação;

- discutem como uma dada visão de gênero construiu-se e impôs-se num determinado grupo num certo momento, apontando para a sua historicidade, desconstruindo-a;

- visam, mais do que descrever e buscar a causalidade dos fenômenos, analisar e compreender (o que Scott denomina de explicação significativa (p. 288) as construções de gênero, que implicam na configuração de instituições, de relações de dominação, símbolos e representações, normas, papéis sociais, identidades subjetivas e coletivas e práticas, legitimando-as;

- atentam que o gênero é disperso e está presente em todas os aspectos da experiência humana, constituindo-os parcialmente, porém, não os determinando.

Gênero, dentro desta perspectiva teórica, é, portanto, mais do que uma palavra; é uma categoria de análise que aplicada a um dado objeto resulta em uma forma específica de abordá-lo. Esta definição da categoria de gênero, porém, não é a única, como o próprio texto de Joan Scott aponta. Há muitas outras formas de compreender o gênero, em sua maioria assentadas no paradigma iluminista. Estas análises, porém, não rompem com as construções hegemônicas de gênero e, muitas vezes, as reproduzem nas pesquisas; não permitem identificar a parcialidade do sujeito; usam categorias estáveis e fechadas, e não pressupõem possibilidades de mudança na organização social.

Acredito que a proposta teórica de Joan Scott realmente é útil e tem, efetivamente, transformado os estudos de gênero no campo da História. Suas formulações, porém, não devem se limitar às análises históricas, já que possuem um caráter mais geral, pois propõem, em última instância, uma quebra de paradigma, podendo ser adotada em diversos campos do conhecimento, incluindo aquelas áreas que se dedicam ao estudo do corpo e da saúde.

Como aponta Joan Scott, “o gênero é uma forma primária de relações significantes de poder” e, portanto, está presente em todas as dimensões da vida social, constituindo-as, ainda que parcialmente. Ou seja, o gênero também está presente nas reflexões acadêmicas das diversas áreas do conhecimento. Contudo, esta presença tem sido ignorada ou desapercebida pela grande maioria dos estudiosos. Isto se explica, em grande parte, pela adoção, ainda hegemônica, do paradigma iluminista, que considera, como sujeito universal, a perspectiva do homem branco heterossexual.

Este dado torna-se mais flagrante quando o corpo e a saúde são os objetos de estudo, pois há uma tendência, mesmo entre os especialistas, a considerar que tudo o que se refere ao corpo é estável, fixo, natural e ahistórico. Porém, como ressalta Jane Flax, natureza e cultura não são elementos autônomos, pois quando a natureza se torna objeto de estudo ou da ação humana, ela perde a sua existência independente. Assim, qualquer reflexão sobre o corpo e a saúde, seja no campo da Biologia, Psicologia, Medicina, Genética etc rompe com as fronteiras entre a natureza e a cultura e implica em uma série de seleções e interpretações dos dados pelo pesquisador e/ou por uma equipe, que por mais amparados que estejam em informações objetivas resultam, ao final, em conclusões influenciadas por diversos fatores, inclusive o gênero.

Há que ressaltar que a aplicação desta categoria é recente e, em muitos casos, os especialistas ainda encontram dificuldades em manejá-las. Neste sentido, nem todos os trabalhos que passo a citar aplicaram o gênero exatamente como propõe Joan Scott. Contudo, os exemplos selecionados apontam para o seu papel nas reflexões e interpretações realizadas sobre o corpo e a saúde elaboradas no decorrer da histórica, bem como para a sua influência na percepção dos estudiosos contemporâneos sobre tais temas. Foram selecionados seis textos: Inventando o Sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud, de T. Laqueur (2001); Atos impuros. A vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença, de J. C. Brown (1987); Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910–1995), de P. Castel (2001); Violência sexual e lei deuteronômica, de C. Pressler (2000); O crime de estupro e o transexual, de Diaulas Costa Ribeiro (1997); A medicalização do Corpo Feminino, de Elisabeth Meloni Vieira (1999).

Durante centenas de séculos, segundo estudos realizados por Thomas Laqueur, homens e mulheres foram considerados como duas variedades de um mesmo sexo.

Durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens, só que — como dizia Nemesius, bispo de Emesa, do século IV — “a delas fica dentro do corpo e não fora”. (…) Homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor vital, ao longo de um eixo cuja causa final era masculina(Laqueur, 2001: p. 14–5).

Segundo Laqueur, no período pré-iluminista, o corpo, assim como o sexo, era compreendido como um elemento acidental ou secundário, enquanto que o gênero, para nós uma categoria cultural, era concreto, “real”. Assim, neste período, o que caracterizava o ser homem ou o ser mulher não era o seu físico, mas a sua posição ocupada na sociedade. Seus corpos, portanto, não eram vistos como fixos e poderiam sofrer alterações, ganhando características de um e de outro.

Esta formulação, estruturada na Antiguidade, em que o sexo único possuía duas versões, uma completa e perfeita, o homem, e outra incompleta e imperfeita, a mulher, legitimava e fortalecia o patriarcado.

No período pós-iluminista o gênero permanece. Contudo, o seu fundamento torna-se, para o pensamento acadêmico, o corpo biológico e a ideia dos dois sexos. Este modelo ainda mantém-se hegemônico na atualidade e nos é tão familiar que o consideramos como natural. Porém, sua estruturação deu-se a partir do final do século XVII e não foi fruto de um avanço meramente tecnológico, mas de transformações políticas e epistemológicas.

A visão dominante desde o século XVIII… era de que há dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos, e que a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papéis no gênero, são de certa forma baseados nestes “fatos”. A biologia — o corpo estável, não-histórico e sexuado — é compreendida como o fundamento epistêmico das afirmações consagradas sobre a ordem social (Laqueur, 2001: p. 18).

Laqueur, ao estudar o que chama de invenção do sexo, alerta que tanto o modelo do sexo único como o dos dois sexos são situacionais, ou seja, mais do que verdades infalíveis e neutras, ganham sentido dentro do contexto da luta do gênero e poder (2001: p. 23).

O gênero também influenciou as visões sobre a sexualidade humana. Durante séculos, segundo aponta Judith C. Brown, o lesbianismo foi praticamente ignorado pelos religiosos, juristas e médicos. Como a sexualidade humana era pensada unicamente como falocêntrica, enquanto o homossexualismo era amplamente discutido, denunciado e punido, praticamente ignorava-se a possibilidade de contato sexual entre mulheres (1987: p.14).

Judith Brown aponta as razões para que a sexualidade lésbica fosse ignorada: alguns não admitiam a possibilidade das mulheres se sentirem sexualmente atraídas por outras mulheres, já que a beleza do homem inspirava mais desejo às mulheres; outros consideravam que a relação sexual entre mulheres era uma forma de “aprimorar e glorificar o sexo de verdade, isto é o sexo com um homem”; havia os que insistiam que esta era uma formadas mulheres, inferiores, tentarem desafiar os homens (1987: p. 19–21). Segundo a autora:

as dificuldades conceituais que os homens da época enfrentavam em relação à sexualidade lésbica se reflete na falta de uma terminologia adequada. A sexualidade lésbica não existia. Nem mesmo, aliás, lésbicas. Apesar da palavra “lésbica” aparecer uma vez no século XVI na obra de Brantône, não foi usada habitualmente até o século XIX, e mesmo então era mais aplicada a uma série de atos do que a uma categoria de pessoas (Brown, 1987: p.27). [6]

Segundo Brown, em grande parte, a ignorância sobre a sexualidade lésbica era, na verdade, uma extensão da ignorância sobre a sexualidade e anatomia das mulheres em geral e do fato das mulheres serem consideradas mais fracas e suscetíveis à sugestão (1987: p. 30–1).

O gênero também foi um fator fundamental na compreensão do fenômeno transexual. No artigo Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910–1995), publicado em 2001, Pierre–Henri Castel discute as modificações históricas na percepção científica, cultural e política da identidade sexual no século XX, e, por inclusão, do chamado fenômeno transexual.

Segundo o autor, no início do século passado o transexualismo foi considerado uma síndrome psiquiátrica. Esta visão foi sendo rediscutida e interpretada ao longo do século por estudos de sexólogos, endocrinologistas e sociólogos. Na análise do fenômeno, segundo Castel, o gênero teve um papel fundamental, ao permitir que as análises superassem a oposição natureza/cultura, ou seja, o transexual passou a ser visto não como uma pessoa que sofria de um desequilíbrio fisiológico, mas como alguém capaz de construir sua própria identidade sexual (Castel, 2001: p. 86–7).

Assim, hoje, o fenômeno é registrado no manual-diagnóstico da Associação Americana de Psiquiatria como “distúrbio de identidade de gênero”, o que, para Castel, “consagra o triunfo em psiquiatria de uma concepção sociológica particular da identidade” (2001: p. 78).

Também o gênero foi um fator importante nos estudos desenvolvidos por Carolyn Pressler sobre a lei deuteronômica. Suas investigações a levaram a concluir que no sistema patriarcal hebraico a sexualidade de uma mulher era propriedade de seu pai ou marido; a mulher não tinha direitos sobre a sua própria sexualidade. Desta forma, quando uma mulher era violentada, este ato não era visto como uma agressão contra a mulher, mas contra os direitos legais e sociais do pai ou marido (Pressler, 2000: p. 111–2). O ofendido, portanto, era o pai ou, se fosse casada, o marido. A eles é que era feito o dano e, portanto, eles é que recebiam a reparação, geralmente feita mediante um pagamento. No caso da mulher solteira, já que uma jovem violentada era considerada um bem danificado, um casamento forçado também era visto como uma forma de compensação para o pai.

Face a estas conclusões, a autora alerta que os pesquisadores devem ter cuidado com o vocabulário que usam em suas pesquisas, pois as categorias modernas e antigas não se equivalem. E acrescenta:

aquilo que consideramos violência sexual ou estupro, aquelas leis consideram adultério involuntário, no caso de uma mulher prometida em casamento, ou um dano financeiro, no caso de uma mulher não prometida. Usar a palavra “estupro” para descrever a relação sexual forçada nas leis deuteronômicas, pode sugerir que as leis estejam interessadas na integridade sexual da mulher ou na vontade delas, quando, de fato, não estão interessadas nisto (Pressler, 2000: p.121–2).

O gênero também é um elemento constitutivo, nas sociedades contemporâneas, no tratamento jurídico dado ao estupro. Vejamos o caso do Brasil. Segundo o código penal brasileiro de 1940, ainda vigente, estupro é definido como conjunção carnal pêni-vaginal mediante violência ou grave ameaça contra a mulher. Ou seja, para uma agressão ser considerada estupro ela deve ser falocêntrica, o agressor tem que ter pênis e a vítima tem que ter vagina. A cópula em outras partes do corpo, por exemplo o ânus, descaracteriza o estupro, sendo classificado, então, como atentado violento ao pudor. A lei, portanto, não reconhece, por exemplo, a violação anal, que pode ser praticada por um homem contra outro homem ou qualquer agressão sexual infligida por uma mulher contra um homem.

Em um interessante artigo disponível on line, Diaulas Costa Ribeiro, comentando a declaração dada pela transexual Roberta Close de que seu maior pânico é ser estuprada, afirma que, pelo direito brasileiro, ela jamais será considerada violentada. Ele explica:

a lei só considera mulher o ser assim identificado na certidão de nascimento. É o chamado sexo jurídico (…) Logo, se para o Direito, para os tribunais, Roberta é um homem, para o mesmo Direito e para os mesmos tribunais Roberta não pode ser vítima de estupro, que exige uma mulher nessa condição. Se os tribunais insistem que ela é Luís, não poderão conceber estupro contra homem. (…) Por outro lado, não poderá ser vítima de atentado violento ao pudor porque esse crime exige que a violência sexual não seja pêni-vaginal. E vagina, Roberta tem. (…)

O tratamento dado pelo direito brasileiro ao estupro fundamenta-se, portanto, no gênero. A sexualidade é pensada ainda como falocêntrica e as mulheres são vistas como seres fracos e impotentes e, portanto, em última instância, as únicas que podem ser vítimas de uma agressão sexual. Além disso, o corpo é interpretado de forma contextual. Este é o caso do sexo jurídico de Roberta Close. Ainda que fisiologicamente ela se aproxime mais de um corpo de mulher, seu sexo jurídico é fruto de uma convenção social, do gênero, que a identifica como homem.

Gostaria ainda de apresentar um último exemplo. Em um artigo em que trata do olhar médico sobre o corpo feminino, Elisabeth Meloni Vieira estuda o nascimento da obstetrícia como especialidade médica (1999: p. 67–78). Segundo a autora, durante séculos as mulheres dominaram os conhecimentos sobre a reprodução e eram as responsáveis pelos partos. Com a medicalização do corpo feminino intensificada no século XIX, relacionada à valorização da maternidade, as artes obstétricas começaram a constituir-se como um saber especializado que se aprendia na escola. Assim, cursos para parteiras começaram a ser ministrados nas academias médico-cirúrgicas. Porém, a obstetrícia ainda não era considerada uma especialidade médica, ao menos no Brasil, e não figurava nos currículos das faculdades de medicina. Como aponta a autora:

Até o final do século XIX, muitos médicos formavam-se sem jamais terem feito um parto ou procedido a um exame obstétrico (…) o ensino prático da obstetrícia encontrou várias dificuldades além da falta de recursos e investimentos nas escolas médicas. Entre elas, o aspecto competitivo da prática liberal e a resistência das mulheres em usar hospitais e enfrentar o olhar masculino (1999: p. 71).

Só a partir do século XX a Obstetrícia foi se afirmando como especialidade Médica; o estágio prático em obstetrícia passou a ser implantado como disciplina e parto transformou-se em um “ato médico”. Porém, como aponta Vieira, pelo fato dos partos terem sido realizados, por séculos, pelas mulheres, a Obstetrícia era considerada uma especialização menor, que não exigia tantos conhecimentos teóricos e práticos. Assim, para consolidar-se academicamente, muitos foram os esforços para controlar e/ou eliminar as parteiras, que, sobretudo nos grandes centros urbanos, praticamente desapareceram. A Obstetrícia enfim consolidou-se e é hoje, como observa a autora, uma especialidade eminentemente masculina (Vieira, 1999: p. 72–3).

Poderíamos alongar a nossa lista com outros exemplos. Contudo, todos serviriam para reforçar a ideia de que o estudo do corpo e da saúde, assim como de qualquer outro tema, é sempre histórico e, portanto, dinâmico. Ao interpretarmos um certo dado, diversos elementos nos influenciam, inclusive o gênero, ou seja, o saber sobre a diferença sexual presente em nossa sociedade.

O mérito do texto de Joan Scott está, sobretudo, em nos alertar para a historicidade das interpretações, mesmo as elaboradas pela ciência. A ciência é uma forma de explicar os fenômenos, não a única maneira de apreensão e compreensão do mundo. Concluo este texto com uma reflexão de Jane Flax: “não há força ou realidade fora de nossas relações sociais e atividades (por exemplo história, razão, progresso, ciência, alguma essência transcendental) que nos livrará da parcialidade e diferença”(1991: p. 249).

Referências

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CARDOSO, C. F. História e Paradigma Rivais. In: ___. e VAINFAs, R. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus 1997. p. 1–23.

CASTEL, P-H. Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910–1995). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 41, p. 77–111, 2001.

CULLER, J. Sobre a Desconstrução. Rio de Janeiro: Record — Rosa dos Tempos, 1997.

Flax, J. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, H. B. (Org.) Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 217–250.

LAQUEUR, T. Inventando o Sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 2001.

PRESSLER, C. Violência sexual e lei deuteronômica. In: BRENNER, A. (Org.). De Êxodo a Deuteronômio a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 111 -122.

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SCOTT, J. A mulher trabalhadora. In: DUBY, G., PERROT, M. História das Mulheres. Porto: Afrontamento, 1993. V. 4, p. 443–475

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Biografia

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva é bacharel e licenciada em História pela UFRJ. Mestre em História Antiga e Medieval (1990) e Doutora em História Social (1996), é docente do departamento de História da UFRJ desde 1992. É professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ. Desde o início de sua trajetória acadêmica dedica-se aos estudos sobre a Idade Média, em especial das penínsulas ibérica e itálica nos séculos XI ao XIII. É co-coordenadora do Programa de Estudos Medievais da UFRJ (www.pem.ifcs.ufrj.br) . Desde 2001 vem aplicando a categoria gênero em suas pesquisas sobre o medievo. Como bolsista PQ do CNPq desenvolve o projeto Santidade e Gênero na Hagiografia Mediterrânica no século XIII: um estudo comparativo. Dentre seus últimos trabalhos publicados encontra-se Gênero e descrições corporais na hagiografia mediterrânica no século XIII: um estudo comparativo (In: THEML, N; LESSA, F. S.; BUSTAMANTE, R. M. C. (Org.). Olhares do Corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 28–40) e Moda, santidade e gênero na obra hagiográfica de Tomás de Celano (In: COSTA, S., SILVA, A. C. L. F., SILVA, L. R. (Org.). Ciclo A Tradição Monástica e o Franciscanismo, 2002, Rio de Janeiro. Atas … Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2003). Paramaiores informações, visite: www.pem.ifcs.ufrj.br/andreia.htm e www.ifcs.ufrj.br/~frazao.

[1] Este trabalho foi apresentado no I Congresso de Saúde, Gênero e Corpo do CMS Waldyr Franco, evento multi e interdisciplinar promovido pela Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro de 25 a 29 de agosto de 2003.

[2] O Positivismo, o Materialismo Histórico e o Estruturalismo, apesar de suas diferenças, repousam nos mesmos paradigmas teóricos, que Ciro Flamarion Cardoso denomina como Iluminista. Este termo não é empregado por Joan Scott em seu texto, mas nós o utilizamos, seguindo Cardoso, já que o consideramos mais elucidativo do que o que a autora emprega, História Tradicional. Cf. CARDOSO, 1997: p. 1–23).

[3] Cf. Sobre o paradigma pós-moderno ver, além do citado texto de Ciro Flamarion Cardoso, Flax, J. (1991). Este texto também apresenta uma crítica aos trabalhos iluministas a partir da perspectiva pós-moderna.

[4] A organização dos estados ou a inflação são alguns fenômenos que poderíamos apresentar como exemplos de campos que parecem não ter ligação com o gênero.

[5] Desconstruir é reverter as hierarquias de um dado sistema, rompendo-o (CULLER, 1997).

[6] Segundo Brown, diversas palavras e eufemismos foram usados para descrever o que as mulheres faziam, como polução, cópula, vício mútuo etc. As lésbicas eram denominadas de fricatices ou tríbades (p. 28).

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