A vela

Farlley Derze
Revista Literária Mente
2 min readJan 12, 2024

110419941624

Luz da vela e sombras que gesticulam na parede. Formas que se evaporam no cimento inerte, vultos que dançam na tela dissimulada. A fumaça escoa manchando o ar. Cheiro de fogo e fumaça com cera derretida. Luz impaciente, debate-se presa ao pavio, deseja sua vida e estar viva na aurora. Por isso se gesticula tentando estar livre do breve destino que se esgota no pires.

O pires, alheio e anônimo na penumbra do quarto, ampara a vela e receberá o clamor da chama no instante derradeiro, em que desfar-se-ão todas as sombras — recentes tentáculos da escuridão.

A cera impregnada na porcelana se acumula enquanto a chama clareia.

Claridade discreta e duvidosa.

Lacrimeja a vela. Chora, chora porquanto incendeia. Luz da vela que luta pela eternidade. O pavio, carbonizado e conformado, não lhe dá trégua. Aprisiona a pobre chama.

E a vela se derrama sobre si própria enquanto pingam estas palavras de meus dedos.

Luminosidade frágil que ilumina esta página, a vela ataca-me com sua luz amarela de intensidade reticente. Sou cúmplice de seu inevitável destino. Do contrário ela ainda estaria na gaveta, pálida e fria. Mas dela eu preciso para escrever estas linhas na escuridão noturna.

Aqui, sozinho neste quarto, na companhia vaga das sombras, vago os olhos na chama e sua cercania. Vejo o contorno do pires e sua superfície onde quase lhe toca a chama. Ou melhor, onde já lhe toca a chama. E agora surge a fumaça mais negra e densa, e seu cheiro que avança me condena neste instante derradeiro. Observo a chama. Quase chama.

Tudo se mistura em total anarquia, tal como o grito — língua, boca e garganta. Lá estão unidos no seu espanto a diminuta vela, o pavio, a chama e a porcelana. A cera agora parece um tumor.

E a chama…

Quase que…

Quase…

Agonizam todas as sombras, agonizam todas as sombras, agonizam todas as sombras.

Nada vejo.

Este conto breve e outros contos estão no livro Plágios do vazio.

--

--

Farlley Derze
Revista Literária Mente

Farlley Derze (Acre, 1963) is the Brazilian author of the book “Caligrafias de afetos” and “Plágios do vazio” published by Microeditora Press.