Domingo dos namorados

Fim de tarde na Rua de Laranjeiras

Gabriel Muney
Revista Literária Mente

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O beijo, Gustav Klimt (1908)

Rapidamente subiu as escadas. Num pique às escondidas, na pontinha dos pés, de sapatos velhos e passos silenciosos. Na boca, um sorriso, indo de orelha a orelha, tomando conta de sua face. Os cabelos lambidos com excesso de gel até o pescoço, para lhe dourar um charme a mais de vaidade. Perfumado, — mesmo que de perfume barato — mas perfumado sim! Desodorante de mercado, roupa de presença; arrumado. Boa pinta. Ah, como é bom estar amando!

Com as mãos escondidas atrás das costas, segurava um presente, embalado numa caixa amarela com laço vermelho, e na outra mão, um buquê de rosas vermelhas. Flores bonitas, daquelas de presentear o amor de sua vida. Estava animado como nunca antes; sentiu um sentimento que na verdade lhe parecia mais como sentir uma mistura incompreensível de todos os sentimentos — de todos aqueles que um dia sentira, e também os outros que nunca ousara sentir. Antes que alguém pergunte se é realmente amor. Poderia ser, mas não é. Quase lhe caíram gotas salinas dos olhos mas “macho que é macho lágrimas não solta” se lembrou.

Já caminhou pela Rua de Laranjeiras antes, todo nos trinques, só para ver se arrumava uma moça de bom feitio que olhasse muito mais para sua gentileza que pra sua feiura. Era feio mesmo; bem que a Irmã Virginia lhe dissera ainda quando criança “menino, mas tu é feio! Parece um preá mau-nascido.” Isso porque se disser que o preá fora deveras abortado, o castigo cairia sobre suas cabeças. Tem pouca consciência disso. Aceita ser feio, e como dizem por aí: quem vê cara não vê coração, não é mesmo?

Chegando no andar de cima rangia os dentes e só percebeu quando estava em frente à porta do quarto prestes a girar a maçaneta. Ouviu o barulho do crec-crec entre os molares. Para piorar, essa baixa densidade do ar entre a distância da porta e seu corpo o fez sentir diretamente o próprio cheiro. Cheiro de homem medíocre, mas aprumado. Cheiro de roupa passada ferro com amaciante. Axilas molhadas, porque o desodorante era do mais barato. Não dava para esperar muito mais do que isso. Ela estava esse tempo todo aqui, logo aqui, na Rua de Laranjeiras. Viera ver Lisinha e finalmente, abençoá-la a eternidade do amor. Para ele, este é um momento que se assemelha ao do próprio casamento. Hora de honra, isto para um homem é.

Mas perceba a ironia: Lisinha mora na Rua de Laranjeiras, mas ele conheceu-a no Parque da Sementeira, na semana passada, quando estava exatamente desse jeito. Todo charmoso, de cabelo engessado e roupa passada. Deixou de andar pelo Centro e começou a passear mais pelo litoral. Já que aqui não achou nenhuma mocinha, lá foi procurar. E não é que encontrou? Toda meiga, sentada no banco à beira de uma árvore, segurando um leque, meias cor bege e a pele negra. Vestido florido, salto baixo e gorducho. Ela também, ele pensou, “toda fofinha, toda cheinha, tem que ser minha.” Sentou ao lado dela, deu um sorriso, ela sorriu docemente de volta, e só para não estragar o clima perguntou “Seu pai é padeiro?”, ela respondeu “meu pai faleceu na semana passada.” Nem quis continuar a cantada, partiu logo para outra. “Teu pai é pedreiro?”, ela o olhou estranhamente e daí que ele percebeu que só conhecia cantadas que começavam com a premissa “seu pai.” Seus olhos bateram-se frente a frente, e então ele se encontrou completamente apaixonado.

Entre tantas tentativas de puxar uma conversa, os sorrisos tímidos da moça, e a mistura de ignorância e rebeldia no tom de sua voz, só o fizeram querer propôr, o mais rápido possível, um trato: “Lisinha, minha linda, fique comigo. Te peço em namoro.” E ela, de sorriso bobo, nunca tendo sido chamada de minha linda antes, disse “Maurício, galanteador, vá até minha casa no domingo, Dia dos Namorados, e será nosso primeiro dia como namorados juntos.” Para bom entendedor, pingo é i. Se julgando entendedor de tudo, Maurício compreendeu o convite como um sim. É sim, e é sim. E quase gritava “eu tenho namorada, eu tenho namorada” no meio da rua, na volta para casa, só não gritou porque não tinha casa para voltar. Vive debaixo do Viaduto próximo a rodoviária.

Lisinha era uma moça limpa, cuidada, cresceu comendo arroz, feijão e lombo. Ele cresceu comendo resto, maçã mordida e tomate maduro demais caído no chão em rua de feira. Pensou em bater na porta antes de entrar, mas num impulso alegre, girou a maçaneta. E lá estava Lisinha, sentada na cama e de olhar concentrado pois parecia já estar à espera da visita. E realmente estava. O cabra até tomou um susto. Ainda assim, elogiou sua beleza. Ela está linda, sim, assim como na última segunda-feira. Vestida numa camisola de renda, cabelos forçadamente lisos e soltos de raízes murchas, maquiagem levemente mais clara que o tom de sua pele, as mesmas meias cor bege e de mãos apoiadas sobre os joelhos.

“Que bom que veio, meu amor” ela disse. O mesmo sorriso bobo, a mesma voz adocicada. “Passou pela sua cabeça que eu não viria?” ele perguntou. “Eu achei que tiveras desistido de mim, meu bem querer” ela respondeu. “Desde que te vi, Lisinha, não saístes mais da minha cabeça” ele disse, ainda de mãos guardadas. “Lhe trouxe um presente” e estendeu a frente o buquê, “rosas vermelhas e cheirosas como você” completou. De bom grado, ela aceitou, ergueu as mãos, tomou o buquê para si e repousou próximo aos seios. Cheirou as rosas, bonitas como as que via quando criança, no jardim dos patrões. Nunca ganhou flor alguma de homem nenhum. Quem dirá um buquê cheio delas. “São tão lindas, obrigada, Maurício”, ela respondeu, abraçando o buquê num intenso carinho.

Ele sorriu, finalmente a convenceu, finalmente a conquistou. E se restava alguma dúvida, agora já tinha a mais absoluta certeza, “ela é realmente minha.” Ainda com o outro presente escondido por detrás, “e tem mais”, ergueu a outra mão na direção de Lisinha, e finalmente sorriu de boca cheia. Não tinha um sorriso bonito; faltavam-lhe alguns dentes, outros estavam escuros, estragados; tinha cáries absurdas e um hálito maximamente desagradável; gengivas escuras e maltratadas. De tão ansiosa para abrir o presente, agarrou-o com as mãos e já ia desmanchando o laço, quando Maurício interrompeu com um “esse você deixa para abrir quando eu estiver de saída, minha Lisinha.”

Ela, mesmo que descabidamente feliz, acalmou-se e aceitou a proposta com um remexer de cabeça indicando um sim. Ele soube: ela quase não dizia sim, mas tudo aceitava. Deu um beijo nela, o primeiro beijo que ela recebeu na vida, e foi assim, por impulso. Foi um selinho rápido, é verdade. Mas para Lisinha foi o mundo. O mundo. “Se estamos namorando temos que estar cada vez mais juntos”, ele disse. Ela apenas observando-o, ainda encantada com as rosas, desviava o olhar para as flores sempre que sentia uma timidez absurda demais para encará-lo. Ele fez algumas perguntas e ela respondeu monossilábica mas absolutamente dócil, abstrata.

“Você já fez amor, Lisinha?” ele perguntou aproximando-se cada vez mais. Ela, balançando a cabeça indicando um não, percebe ele chegando mais perto e o ar ficando mais quente. “Agora que você tem um namorado, pode fazer” ele completou. Lisinha, sem saber exatamente o que tinha de impressionante nisto, sorriu com os dentes limpos, revelando sua arcada dentária completa.

Ele, com a ponta dos dedos, abaixou a alça da camisola de Lisinha. Ela acompanhou os movimentos das mãos de Mauricio com o olhar, curiosa, querendo entender o que é receber presentes de amor. Maurício arrancou a própria roupa, e suado, mostrou-se inteiramente peludo, e para sua própria surpresa, Lisinha parece ter achado a cena convidativa. Teve de ensinar a ela, passo a passo, o que fazer, “amor é toque, mais do que presente, minha doce Lisinha.” Aprendeu rápido a repetir os movimentos com a boca. “Já chupou pirulito antes, Lisinha, meu amor?” tentando fazer aquilo soar o mais familiar possível.

As meias cor bege que cobriam até acima do joelho ela não o deixou tirar. Todas as vezes em que ele tentou tocar em seus cabelos, ela o evitava, desviava a cabeça, parecia completamente insegura. Depois de ter aberto as pernas para Maurício, Lisinha sentia-se com medo, mas preenchida de amor. E se tinha sentido-se assim, assim o amor deveria ser sentido. Fez amor e sequer precisou fazer declarações. Fez amor e ganhou presentes e por mais que tivesse visto, não se incomodou com o sorriso dele, pois homens não gostam muito de escovar os dentes mesmo.

Tendo terminado, “Lisinha, meu amor, eu já tenho que ir” ele disse enquanto limpava com o lençol da cama o líquido branco de cheiro forte na barriga dela. Ela, um tanto confusa, até mesmo insatisfeita, disse “mas já?”, numa expressão de descontentamento. “Sim, tenho que ir. Vamos abrir o seu presente, quero ver se vai gostar.” Ela já tinha até mesmo esquecido da caixa amarela, tinha perdido a animação. Mas agora, que se lembrou, voltou a ficar saltitante em si. Pois é exatamente assim que estava em seu interior. Saltitante sem pular, alegre sem gritar, bonita sem beleza.

Sentou-se novamente na cama, ainda pelada — vestida apenas com as meias, e quando Maurício terminou de se vestir, ergueu novamente a caixa amarela, já de laço desembaraçado. Apoiou no colo dela. Felicidade. Ela enfim puxou o laço, e jogou-o no chão, à beira dos seus pés cobertos pelo tecido bege. Retirou a tampa da caixa num movimento para cima, esperando que a surpresa já lhe fosse revelado de cara. Havia, na verdade, um papel fino dificultando a revelação. Puxou as abas do papel em suas dobras e lá estava. Genérico, brilhante, cinza metálico.

Um revólver, bonito, presunçoso, refletindo a luz amarela da luminária em brilhos saudosos. Sem entender para que exatamente aquilo servia, pois não tinha ligado ainda a situação ao objeto, observou a arma por alguns segundos. Sem mais nem menos, Maurício meteu a mão na caixa e puxou o revólver. Segurou com as duas mãos e engatilhou num só impulso.

Um, dois, três. Três tiros.

Um no meio, bem ali, entre as pernas, que ensanguentou as meias longas espontaneamente. Outro no peito, jogando-a para trás. E quando já estava deitada sobre a cama, atirou na cabeça, pois estava de olhos abertos. O terceiro tiro raramente costuma dar, em outros casos. Mas Lisinha, tão linda, tão dócil… merecia ter os olhos fechados.

Maurício revirou as gavetas, vasculhou os armários. Vestiu um dos casacos, cheirou algumas calcinhas usadas de Lisinha que estavam no balde de roupas sujas, guardou a arma dentro do bolso e desceu as escadas. Mês de junho sempre faz muito frio, tem que ficar bem agasalhado. Bateu a porta, e já na rua, pôs-se a caminhar tranquilamente. Céu quase escuro, num cor de rosa alaranjado calmante e vicioso. Fim de tarde é realmente muito bonito aqui na Rua de Laranjeiras.

Conto escrito em junho de 2022 para o dia dos namorados. (Coisa de solteiro.) Se gostou, compartilha, deixa um comentário dizendo o que achou, e entra no meu perfil para ler meus outros contos publicados. ;)

Nota (Outubro de 2022): Este conto faz parte do segundo capítulo de Delírio Febril (Editorial Casa), minha mais recente (e única, até o momento) coletânea de contos publicada. Compre o livro, ajude um escritor fodido.

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