Nada mais a dizer

Farlley Derze
Revista Literária Mente
6 min readApr 25, 2023

Quando dobrei a esquina vi o senhorio no portão

Abri o jornal e caminhei fingindo interesse numa página

Quando tentei cruzar o portão ele usou seu corpo gordo com os braços cruzados

Pedi licença, ele respondeu “já são três meses de aluguel atrasado”

Eu respondi que ele devia consertar a luz do corredor

Ele descruzou os braços e disse que aquilo não tinha a ver com minha inadimplência

Eu respondi “quando eu entrar no quarto vou dar um telefonema pros donos desse jornal”, e sacudi as páginas no ar

Arrematei “você vai virar notícia quando souberem do tombo da viúva idosa por causa da lâmpada queimada”

Desviei dele e entrei deixando-o sem resposta

Ele sabe que não tenho telefone, mas sabe também que não se deve provocar um inquilino endividado

O que ele acha? Que compro jornal pra ver notícias da bolsa de valores?

Naquela mesma noite a luz do corredor estava finalmente acesa de novo

Vi por debaixo da porta enquanto ouvia os passos da viúva com sua bengala

No chão da minha cozinha havia seis garrafas de cerveja vazias, como defuntos abandonados

Eu precisava escovar os dentes, e comprar um creme dental

Ajeitei meu cabelo no espelho preso atrás da porta e saí

A viúva ia em direção ao portão

Eu a chamei “Dona Violeta”

Ela parou

“Sou eu, aonde vai a uma hora dessas”?

Ela se virou

Eu fui de braços abertos como quem dá um abraço

Ela sorriu e disse que estava com vergonha de sempre me pedir as coisas

Eu respondi que não era nenhum trabalho, devia ter batido na minha porta

Ela disse que acabou o papel higiênico e precisava de um analgésico forte

“Que tal uma injeção”?, perguntei

Ela mudou a fisionomia para melhor

Os idosos gostam de injeção, os comprimidos dão trabalho de engolir e o efeito é demorado

“Vou trazer aquela moça da farmácia até aqui, e trago seu papel higiênico”

Ela abriu a bolsa e me deu duas notas de cem reais

Eu disse que era muito

Ela só balançou a cabeça, ela sabe que estou beflando, sabe que o troco vai me ajudar

Quando a moça da farmácia saiu da casa da viúva, ela bateu na minha porta e me entregou um envelope dizendo que era da Dona Violeta para mim

Eu peguei o envelope

Os olhos da moça se moveram pra um lado do corredor, depois pro outro lado

Eu acho que sei como interpretar certos gestos

A porta estava entreaberta

Eu a abri um pouco mais

A moça entrou

Eu fechei a porta

Ela disse que a viúva me elogiava, que eu era um ótimo poeta e um ótimo vizinho

Eu tirei duas cervejas da geladeira

Era sábado, era verão, eram dez e cinco da noite

“Você pode tomar uma cerveja antes de voltar à farmácia”?

Ela disse que o turno dela tinha acabado às dez e perguntou se podia ler um poema meu, que não fazia ideia que eu era poeta, pois o pessoal do bairro fala muito mal de mim

“Não gostam da minha barba por fazer, não gostam de homens despenteados nem homens de quarenta anos desempregados

“Mas ser poeta é um trabalho”, interrompeu-me com entusiasmo

Eu disse que ia pegar um de meus cadernos para ela ler alguns poemas

Pedi licença e fui até meu quarto

Que bagunça

Dei um jeito na bagunça, esticando o lençol

Levei um caderno

“Abra numa página aleatória”

Ela perguntou se podia botar o copo de cerveja no chão

“Claro”

Abriu o caderno e começou a ler em silêncio

Eu via os lábios dela se mexendo lentamente

Eu a interrompi

“Poderia ler em voz alta, pode recomeçar por favor”?

Ela se ajeitou, encostou-se no sofá e começou a ler como se estivesse narrando minha alma

A noite não me conta

Sei que a noite me conhece

Ela chega e sussurra coisas que não consigo ouvir

Coloca véus na minha consciência

Cobre meus olhos

Me leva a diferentes lugares

Faço perguntas

Ela nunca responde

Já me acostumei a isso

Sinto que a noite deseja minha alma

Ela permite que acenda velas

Então a gente conversa em silêncio

Muitas vozes se foram

Séculos e séculos de vazios

Às vezes uma memória escapa

Surgem em forma de ventos nas frestas das janelas

As chamas da vela resistem

A noite não se intromete e observa as sombras na parede

São cúmplices

Inventam segredos

A cera derrete

Minhas palavras também

Fechou o caderno como quem se lembra de uma esperança e deu um suspiro

Não tive coragem de perguntar o que achou, seu gesto foi intenso

Em vez disso ergui meu copo

Ela se agachou, e lentamente pegou o dela e também o ergueu

Cada um deu um gole à sua maneira com olhares de silêncio

Eu me levantei e escolhi um vinil

Essa é a parte difícil, acertar o tipo de música que a pessoa gosta

As aparências enganam

O bairro fala mal de mim, mas se soubessem que adoro Pixinguinha, Noel Rosa e Cartola, estariam aqui no próximo sábado tomando cerveja comigo

Mas a moça da farmácia, quem sabe ela goste de outra coisa totalmente diferente

“Em que década você era adolescente”?

Anos 80, ela respondeu

Botei um vinil do U2

Escolhi a faixa I still haven’t found what I’m looking for

Ela tomou um gole mais demorado e tinha um sorriso de espuma

Eu ergui meu copo, ela ergueu o dela

Deixei a música no volume baixo

Não perguntei nada, apenas acendi o abajur e desliguei a luz do teto

Ela botou o copo no chão e abriu o caderno

Vi seus lábios balbuciando

Dessa vez fiquei imaginando minhas palavras na sua boca

Eu tinha mais cervejas na geladeira

O Bono estava cantando, o abajur estava aceso, eu tinha mais cervejas na geladeira

Fui até o aparador da sala onde eu tinha deixado o envelope

Eu o abri

Tinha uma boa grana lá dentro

Dava pra pagar seis meses de aluguel e mais algumas cédulas

Levei o envelope pro quarto

Aproveitei e acendi o abajur do quarto

Quando me virei, ela estava lá, com seu jaleco branco, parada na porta do quarto

Mostrou-me o copo vazio

Eu sorri, ela permaneceu de pé

Tirei outra cerveja da geladeira e a servi

Enquanto enchia seu copo, ela disse que ficou muito tocada com um poema que fala da solidão

Deu um gole e voltou pro sofá

O refrão da música é bonito, cantarolei

Eu perguntei onde ela morava

Ela disse que não tinha mais ônibus naquela hora para o bairro dela, e deu de ombros

Eu disse que ela podia dormir no quarto

Ela ergueu o copo dela, eu ergui o meu

O dia amanheceu

Eu preparei ovos mexidos com pimenta do reino, tomate picado e queijo ralado

Espremi algumas laranjas

Fiz o café com coador de pano

Ela saiu do quarto com a minha camiseta do fluminense, eu só a tinha visto de branco na farmácia

As cores lhe caíram bem

Dava pra ver que estava sem sutiã e as pernas completamente expostas

“Senta aqui”

Ela afastou os cabelos compridos e os deixou sobre o ombro direito

Começou a comer antes de mim

Aquilo me fez bem

Depois do café ela perguntou se podia tomar um banho

Eu disse que sim, mas estava sem xampu em casa

Dei uma toalha limpa

Na hora de ir embora perguntou se na próxima folga podia voltar para ler outros poemas

Eu entreguei o caderno pra ela

Perguntou se eu não tinha medo que ela perdesse o caderno

“Você pode perder depois de ler”

Deu um sorriso típico dos vinte e tantos anos de idade

Beijou minha bochecha e foi embora

Eu fui até a porta do gordo

Entreguei o dinheiro dos três meses atrasados e paguei outros três adiantados

Dei bom dia e dei as costas

Dali mesmo fui até à barbearia

Dei um jeito na barba e no cabelo

O barbeiro era meu único amigo no bairro, apesar de ser torcedor do flamengo

Pela vidraça da barbearia dava pra ver a fachada da farmácia

Voltei pra casa e bati na porta da viúva

Eu lhe agradeci pela generosidade

Ela balançou a cabeça sorridente e disse que eu não me preocupasse mais com o aluguel

Meus olhos se encheram de lágrimas

Ela disse “devo muito à sua poesia”

Eu a abracei e me despedi

Fechei a porta dela e fui pra minha casa

Eu precisava esticar o corpo na minha cama

Deitei-me

O cheiro da moça estava no meu travesseiro

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Farlley Derze
Revista Literária Mente

Farlley Derze (Acre, 1963) is the Brazilian author of the book “Caligrafias de afetos” and “Plágios do vazio” published by Microeditora Press.