Nada mais a dizer
Quando dobrei a esquina vi o senhorio no portão
Abri o jornal e caminhei fingindo interesse numa página
Quando tentei cruzar o portão ele usou seu corpo gordo com os braços cruzados
Pedi licença, ele respondeu “já são três meses de aluguel atrasado”
Eu respondi que ele devia consertar a luz do corredor
Ele descruzou os braços e disse que aquilo não tinha a ver com minha inadimplência
Eu respondi “quando eu entrar no quarto vou dar um telefonema pros donos desse jornal”, e sacudi as páginas no ar
Arrematei “você vai virar notícia quando souberem do tombo da viúva idosa por causa da lâmpada queimada”
Desviei dele e entrei deixando-o sem resposta
Ele sabe que não tenho telefone, mas sabe também que não se deve provocar um inquilino endividado
O que ele acha? Que compro jornal pra ver notícias da bolsa de valores?
Naquela mesma noite a luz do corredor estava finalmente acesa de novo
Vi por debaixo da porta enquanto ouvia os passos da viúva com sua bengala
No chão da minha cozinha havia seis garrafas de cerveja vazias, como defuntos abandonados
Eu precisava escovar os dentes, e comprar um creme dental
Ajeitei meu cabelo no espelho preso atrás da porta e saí
A viúva ia em direção ao portão
Eu a chamei “Dona Violeta”
Ela parou
“Sou eu, aonde vai a uma hora dessas”?
Ela se virou
Eu fui de braços abertos como quem dá um abraço
Ela sorriu e disse que estava com vergonha de sempre me pedir as coisas
Eu respondi que não era nenhum trabalho, devia ter batido na minha porta
Ela disse que acabou o papel higiênico e precisava de um analgésico forte
“Que tal uma injeção”?, perguntei
Ela mudou a fisionomia para melhor
Os idosos gostam de injeção, os comprimidos dão trabalho de engolir e o efeito é demorado
“Vou trazer aquela moça da farmácia até aqui, e trago seu papel higiênico”
Ela abriu a bolsa e me deu duas notas de cem reais
Eu disse que era muito
Ela só balançou a cabeça, ela sabe que estou beflando, sabe que o troco vai me ajudar
Quando a moça da farmácia saiu da casa da viúva, ela bateu na minha porta e me entregou um envelope dizendo que era da Dona Violeta para mim
Eu peguei o envelope
Os olhos da moça se moveram pra um lado do corredor, depois pro outro lado
Eu acho que sei como interpretar certos gestos
A porta estava entreaberta
Eu a abri um pouco mais
A moça entrou
Eu fechei a porta
Ela disse que a viúva me elogiava, que eu era um ótimo poeta e um ótimo vizinho
Eu tirei duas cervejas da geladeira
Era sábado, era verão, eram dez e cinco da noite
“Você pode tomar uma cerveja antes de voltar à farmácia”?
Ela disse que o turno dela tinha acabado às dez e perguntou se podia ler um poema meu, que não fazia ideia que eu era poeta, pois o pessoal do bairro fala muito mal de mim
“Não gostam da minha barba por fazer, não gostam de homens despenteados nem homens de quarenta anos desempregados
“Mas ser poeta é um trabalho”, interrompeu-me com entusiasmo
Eu disse que ia pegar um de meus cadernos para ela ler alguns poemas
Pedi licença e fui até meu quarto
Que bagunça
Dei um jeito na bagunça, esticando o lençol
Levei um caderno
“Abra numa página aleatória”
Ela perguntou se podia botar o copo de cerveja no chão
“Claro”
Abriu o caderno e começou a ler em silêncio
Eu via os lábios dela se mexendo lentamente
Eu a interrompi
“Poderia ler em voz alta, pode recomeçar por favor”?
Ela se ajeitou, encostou-se no sofá e começou a ler como se estivesse narrando minha alma
A noite não me conta
Sei que a noite me conhece
Ela chega e sussurra coisas que não consigo ouvir
Coloca véus na minha consciência
Cobre meus olhos
Me leva a diferentes lugares
Faço perguntas
Ela nunca responde
Já me acostumei a isso
Sinto que a noite deseja minha alma
Ela permite que acenda velas
Então a gente conversa em silêncio
Muitas vozes se foram
Séculos e séculos de vazios
Às vezes uma memória escapa
Surgem em forma de ventos nas frestas das janelas
As chamas da vela resistem
A noite não se intromete e observa as sombras na parede
São cúmplices
Inventam segredos
A cera derrete
Minhas palavras também
Fechou o caderno como quem se lembra de uma esperança e deu um suspiro
Não tive coragem de perguntar o que achou, seu gesto foi intenso
Em vez disso ergui meu copo
Ela se agachou, e lentamente pegou o dela e também o ergueu
Cada um deu um gole à sua maneira com olhares de silêncio
Eu me levantei e escolhi um vinil
Essa é a parte difícil, acertar o tipo de música que a pessoa gosta
As aparências enganam
O bairro fala mal de mim, mas se soubessem que adoro Pixinguinha, Noel Rosa e Cartola, estariam aqui no próximo sábado tomando cerveja comigo
Mas a moça da farmácia, quem sabe ela goste de outra coisa totalmente diferente
“Em que década você era adolescente”?
Anos 80, ela respondeu
Botei um vinil do U2
Escolhi a faixa I still haven’t found what I’m looking for
Ela tomou um gole mais demorado e tinha um sorriso de espuma
Eu ergui meu copo, ela ergueu o dela
Deixei a música no volume baixo
Não perguntei nada, apenas acendi o abajur e desliguei a luz do teto
Ela botou o copo no chão e abriu o caderno
Vi seus lábios balbuciando
Dessa vez fiquei imaginando minhas palavras na sua boca
Eu tinha mais cervejas na geladeira
O Bono estava cantando, o abajur estava aceso, eu tinha mais cervejas na geladeira
Fui até o aparador da sala onde eu tinha deixado o envelope
Eu o abri
Tinha uma boa grana lá dentro
Dava pra pagar seis meses de aluguel e mais algumas cédulas
Levei o envelope pro quarto
Aproveitei e acendi o abajur do quarto
Quando me virei, ela estava lá, com seu jaleco branco, parada na porta do quarto
Mostrou-me o copo vazio
Eu sorri, ela permaneceu de pé
Tirei outra cerveja da geladeira e a servi
Enquanto enchia seu copo, ela disse que ficou muito tocada com um poema que fala da solidão
Deu um gole e voltou pro sofá
O refrão da música é bonito, cantarolei
Eu perguntei onde ela morava
Ela disse que não tinha mais ônibus naquela hora para o bairro dela, e deu de ombros
Eu disse que ela podia dormir no quarto
Ela ergueu o copo dela, eu ergui o meu
O dia amanheceu
Eu preparei ovos mexidos com pimenta do reino, tomate picado e queijo ralado
Espremi algumas laranjas
Fiz o café com coador de pano
Ela saiu do quarto com a minha camiseta do fluminense, eu só a tinha visto de branco na farmácia
As cores lhe caíram bem
Dava pra ver que estava sem sutiã e as pernas completamente expostas
“Senta aqui”
Ela afastou os cabelos compridos e os deixou sobre o ombro direito
Começou a comer antes de mim
Aquilo me fez bem
Depois do café ela perguntou se podia tomar um banho
Eu disse que sim, mas estava sem xampu em casa
Dei uma toalha limpa
Na hora de ir embora perguntou se na próxima folga podia voltar para ler outros poemas
Eu entreguei o caderno pra ela
Perguntou se eu não tinha medo que ela perdesse o caderno
“Você pode perder depois de ler”
Deu um sorriso típico dos vinte e tantos anos de idade
Beijou minha bochecha e foi embora
Eu fui até a porta do gordo
Entreguei o dinheiro dos três meses atrasados e paguei outros três adiantados
Dei bom dia e dei as costas
Dali mesmo fui até à barbearia
Dei um jeito na barba e no cabelo
O barbeiro era meu único amigo no bairro, apesar de ser torcedor do flamengo
Pela vidraça da barbearia dava pra ver a fachada da farmácia
Voltei pra casa e bati na porta da viúva
Eu lhe agradeci pela generosidade
Ela balançou a cabeça sorridente e disse que eu não me preocupasse mais com o aluguel
Meus olhos se encheram de lágrimas
Ela disse “devo muito à sua poesia”
Eu a abracei e me despedi
Fechei a porta dela e fui pra minha casa
Eu precisava esticar o corpo na minha cama
Deitei-me
O cheiro da moça estava no meu travesseiro