Porto Seguro da Bahia

(ou ensaio sobre a teoria do ciclo da água).

elis flores
4 min readJun 12, 2024

Eu sou criança, suponho que por isso os adultos me achem tão engraçada. Não cresci ainda e tudo me é novidade. Tenho um metro e trinta e sete de altura. Não cresci ainda e um dia vou ser alta como um poste, vou conseguir quase beijar as estrelas. Que gosto tem uma estrela? Os adultos não se surpreendem com o mar. Ao quase adormecer eu peço ao meu Deus, ao Deus que me disseram que eu deveria adorar, digo assim, amena: Papai do Céu, que nunca me faça perder o dom de chorar ao ver o mar. Na verdade, não sei se ele me ouve. Dizem que se Deus não responder é porque está funcionando.

Eu sinto que a água é minha mãe, que o mar é minha origem. Não consigo explicar. O curso do litoral faz com que eu me apaixone pelo movimento da vida. Se Papai do céu for um ser da mesma qualidade da água, não entendo porque o fizeram sangrar. Eu também sangro, entendo um pouco sobre o sofrimento. Eu choro muito e sinto que peno ao máximo quando perco meu chinelo de ir à piscina.

A piscina é água da mesma forma, eu sei. Mas não tem areia nos meus pés
pequenos, não tem animais esquisitos, tartarugas, caranguejos, não tem calor, não tem amor. A piscina quer reproduzir o mar, porém o mar nunca foi dessas coisas de se reproduzir. Você tem que o sentir para que ele te sinta. E existem milhares de mares, de tamanhos, cores, vidas, segredos tão intimidadores e tão confortantes. O mar é minha incógnita, é minha resposta, o meu amar, o meu desejo, o meu beijo, a minha graça. A piscina falha porque não foi feita com esmero o suficiente com as pessoas que a visitam. A natureza é dessas belezas que foram planejadas perfeitamente para serem imperfeitas aos nossos olhos.

E a gente daqui? Elas tem um sotaque esguio. Falam bonito, diferente de Minas Gerais. A Bahia é a baía, atracam-se os navios da paixão e lá se ficam, lá se demoram. Meu corpo infantil fica sempre pregado de sal e areia. Durmo até sem jeito. Não é disso que fomos formados? Sal e areia se coloca num coração partido, para que ele se cole, vire um coração inteiro de uma vez.

Mas aqui a comida é boa, tapioca e acarajé, lagosta e caranguejo; me faz sentir que todos os amores da Bahia são apimentados, temperados, quentes, daqueles que se morde rápido e queima a língua. Mas eu sou criança, não sei dizer direito o que é amor. Eu sei que é uma beleza triste.

Meus pais se amam, meus tios se amam e eu amo também. Amo feito criança boba que ri de tudo, deve ser porque não sou crescida. Eu tenho 8 anos e choro antes dos meus aniversários. Fico pensando: “Nossa, nossa! Eu vou fazer nove! Eu vou morrer. Estou próxima da morte!’’

A morte é uma mulher distante, meu pai vai me proteger dela. Ele pode destruir qualquer um, é bravo — Estou confusa porque essa descrição serve tanto para o morrer quanto para o meu pai — mas ele também é desses homens doces feito açúcar.

Quando acordar terei que ir embora. Eu me entristeço porque queria permanecer, mas mãe diz que dessas coisas de permanecer só é possível em lugares condizentes com a nossa renda, que a felicidade não era para sempre. Que chatice ser adulto e ter que perder o dom de viver. Mas que chatice maior ainda é ser criança e não saber o motivo pelos quais os adultos choram. Mamãe de quando em quando, deixa escapar uma lágrima pelos olhos. Ela diz: Filha, é necessário, um dia você entenderá.

Eu entendo, mamãe. Sua lágrima é salgada, é clara, corre rápido, como o mar. O seu choro é a imagem perfeita disso que adoro. Ou isso que adoro, o mar, é a imagem perfeita de minha mãe?

Enquanto eu dormia naquela noite, senti que Porto Seguro amarrava um nó no meu coração. Se a Bahia quisesse tocar a mão no meu peito, eu deixaria. Se quisesse inundar o meu quarto e me fazer afogar na sua graça, eu deixaria.

Entrando no avião de volta à casa, perguntei para minha mãe:

— Já posso namorar?

Ela respondeu:

— Só quando crescer.

Ainda sou criança, mas um dia irei ser adulta e poderei namorar o mar.

West Point, Prouts Neck - Winslow Homer

Élis Flores.

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elis flores

o espaço de tempo que existe entre o nascimento e a morte